A luta pela terra deixa nua a violência do poder
Por
frei Gilvander Moreira
A
opressão do latifúndio, dos latifundiários e do capitalismo tem levado, de
alguma forma, a um emudecimento dos sem-terra e ao desejo de libertar-se da
experiência de ser expropriado e ignorado nos seus direitos; tem levado à
banalização da existência humana, à perda de valores. Entretanto, na contramão
da ordem estabelecida, no Brasil, a experiência da luta pela terra marca
indelevelmente quem dela participa e suscita o ímpeto de contá-la na busca de
caminhos emancipatórios. Isso constatamos na nossa pesquisa de doutorado sobre
Luta pela terra enquanto pedagogia de emancipação humana, na FAE/UFMG,
defendida em maio de 2017. Para que o tempo volte a ser qualitativo e gere
experiências com significações e valores, urge resgatarmos a memória de lutas
que subvertem a banalização do sentido da existência humana. A experiência
humana de luta pela terra se torna mediação necessária entre o ser social e a
consciência social que influencia na atuação do sujeito social Sem Terra.
Concordamos com Thompson, quando ele afirma que “é a experiência (muitas vezes
a experiência de classe) que dá cor à cultura, aos valores e ao pensamento: é
por meio da experiência que o modo de produção exerce uma pressão determinante
sobre outras atividades...” (THOMPSON, 1981, p. 112).
A
experiência de ser camponês Sem Terra, expulsando o medo e participando de uma
ocupação de terra, resistindo na terra e participando de todas as lutas
inerentes à luta pela terra, é algo que marca indelevelmente a vida de um
camponês. Mesmo que este camponês deixe de ser um militante do MST, jamais será
a mesma pessoa de antes. Há nessa experiência algo de emancipatório que
contribui para a superação do capitalismo, uma vez que não podemos esquecer o
que Walter Benjamim afirmou: “a experiência de nossa geração: o capitalismo não
morrerá de morte natural” (BENJAMIN, 2006, p. 708).
A Constituição de 1824, do Brasil imperial, determinava
acerca do Direito de Propriedade em seu artigo 179, inciso XXII, nos seguintes
termos, com grafia da língua portuguesa da época:
“Art. 179. A
inviolabilidade dos Direitos Civis e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que
tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida
pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. XXII. É garantido o
Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem publico legalmente
verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade do Cidadão, será elle
préviamente indemnisado do valor della. A Lei marcará os casos, em que terá
logar esta unica excepção, e dará as regras para se determinar a indemnisação”
(PORTO, 1985, p. 37).
Na
prática muitas decisões do poder judiciário no Brasil relativos aos conflitos
agrários e urbanos -pedidos de reintegração de posse - são julgados como se
estivéssemos ainda regidos pela Constituição de 1824 do Brasil imperial, a que
prescrevia direito absoluto de propriedade. Esquecem geralmente os magistrados
que a Constituição de 1988 prescreve que a Propriedade tem que cumprir sua
função social, coluna mestra da propriedade. Ou seja, se a propriedade não
cumpre sua função social ela deixa de existir juridicamente.
Após as revoluções do século XVIII – a
francesa e a dos Estados Unidos -, acolhendo os interesses liberais da
burguesia nascente na Europa, a Constituição do Brasil, de 1824, garantiu
juridicamente o interesse individual absoluto do proprietário, em detrimento
dos direitos sociais da coletividade. Ao proprietário ficou assegurada a plena
liberdade de ‘uso, gozo e disposição do proprietário’,
sem função social da propriedade da terra e, com uma única exceção: a
utilização do seu imóvel pelo Estado, mediante indenização prévia. Esse
conceito de propriedade plena ficou conhecido como “absolutização” do Direito de
Propriedade. Afirmava-se, assim, a individualidade de cada proprietário e o
direito civil de propriedade inviolável e não mais o centralismo monárquico. O caput
do artigo 179 da Constituição de 1824 garantia a propriedade como
fundamento dos direitos civis dos cidadãos brasileiros, ao expressar, na grafia
da língua portuguesa da época: “A inviolabilidade
dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a
liberdade, a segurança individual, e a
propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio”.
Aqui
cabe recordar a função dupla do poder como violência na instituição do Direito,
conforme nos ensina Walter Benjamin. “A função do poder como violência na
instituição do Direito é dupla, na medida em que essa instituição se propõe ser
aquilo que se institui como Direito, como seu fim, usando a violência como
meio; mas, por outro lado, no momento da aplicação dos fins em vista como
Direito, a violência não abdica, mas transforma-se, num sentido rigoroso e
imediato, em poder instituinte do Direito, na medida em que estabelece como
Direito, em nome do poder político, não um fim livre e independente da
violência, mas um fim necessária e intimamente a ela ligado” (BENJAMIN, 2012,
p. 77).
Ao analisar a evolução histórica do
Direito de Propriedade nas constituições brasileiras, Figueira comenta sobre a
Constituição de 1824: “A Constituição do Império garantiu a propriedade de modo
absoluto e aos moldes das Constituições Francesa e Portuguesa” (FIGUEIRA, 2007,
p. 29). E, os Sem Terra, na luta pela terra, exigem que a Constituição de 1988
seja respeitada pelo poder judiciário e não a prescrita Constituição de 1824.
Referências.
BENJAMIN, Walter.
BENJAMIN, Walter. O anjo da história.
Organização e tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
____. Passagens. Organização da edição
brasileira Willi Bolle. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
FIGUEIRA,
Lúcia Valle. Função social da
propriedade urbana e o plano diretor. Belo Horizonte: Fórum, 2007.
PORTO, Walter Costa. A Constituição de 1824. Brasília:
Institutos dos Advogados do Brasil, 1985.
Obs.:
Eis, abaixo, vídeo que ilustra a luta pela terra questionando a violência do
poder: “Palavra Ética na TVC/BH:
Acampamento Andreia dos Santos, do MST, em Unaí, MG. Luta pela terra.
19/7/2017”
Padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel
em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências
Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutor em Educação
pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, CEBs, SAB e Ocupações Urbanas; professor
de “Direitos Humanos e Movimentos Populares” em curso de pós-graduação do IDH,
em Belo Horizonte, MG. e-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.freigilvander.blogspot.com.br
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