segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Tributo a frei Henri des Roziers: continuaremos sua luta.

Tributo a frei Henri des Roziers: continuaremos sua luta.
Por Sônia Maria Alves da Costa[1]

O falecimento do frei Henri Gui Emile Burin des Roziers, neste domingo, 26 de novembro de 2017, deixa muita tristeza pela perda de um grande mestre e excepcional amigo, exemplo de vida para muitas/os lutadoras/es do povo, cuja vida foi dedicada de maneira abnegada à luta contra todas as formas de injustiça e grande parte de sua vida  empenhada à defesa das classes trabalhadora e camponesa no norte do Brasil, inicialmente em 1979 no antigo norte de Goiás, na cidade de Porto Nacional e em seguida no município de Gurupi, atual estado de Tocantins e também no Sul do Pará, nos últimos anos, uma das regiões emblemáticas e de intensa injustiça agrária e existência de trabalho escravo, uma das mais violentas do país, de onde ele saiu em 2013, muito a contragosto, para fazer um tratamento de saúde, já gravemente doente e retornou ao seu país de origem, sua cidade Natal, Paris. A cada visita de uma brasileira ou de um brasileiro ele repetia que “queria voltar para morrer no Pará”! Eu me recordo muito bem dessa frase firme dele, com a mesma firmeza com que conduziu sua luta pelos Direitos Humanos, na Europa, na América Central e em muitas outras fronteiras de luta e especialmente no Brasil, onde dedicou décadas de luta ao povo injustiçado do Norte do nosso país, onde ele se sentia muito realizado, mesmo diante das graves e constantes ameaças de morte que recebia. Foi uma grande luta para ele aceitar a proteção da Polícia Federal 24 horas por dia em um dos momentos mais críticos de sua permanência no Pará. Ele alegava que se o povo a quem defendia não tinha o mesmo tipo de proteção, por que ele deveria merecê-la?  
Eu não tenho o dom da poesia, mas penso que um poema de Bertolt Brecht ilustra a missão exercida pelo frei Henri: “Há homens que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis”. Frei Henri se tornou uma pessoa imprescindível para os camponeses, para os milhares de trabalhadores submetidos ao trabalho escravo contemporâneo, para a CPT, para a RENAP, enfim, para o povo lutador brasileiro e de muitos outros países.
Frei Henri era extremamente comprometido com a luta, muito exigente, mas de uma humanidade indescritível, daquelas pessoas que te proporcionava muito prazer em dividir uma taça de vinho e discutir sobre a vida e a conjuntura do país e, com a mesma determinação, segui-lo andando a pé por diversos quilômetros até uma ocupação de camponeses Sem Terra, no meio da mata ou virar a noite elaborando peças processuais ou ainda escrevendo notas de repúdio para autoridades pelo tombamento de mais uma vítima pelo braço armado dos latifundiários e pela omissão-cumplicidade do Estado! Egresso da Sorbonne, Doutor pela Universidade de Cambridge, recebeu dezenas de prêmios nacionais e internacionais, em Direitos Humanos, mas valorizava muito mais cada vitória resultante da sua luta em defesa do povo empobrecido a quem defendia na condição de incansável advogado, porque era uma pessoa muito simples.
Ele foi inspiração para muitas pessoas e eu tive a felicidade de conhecê-lo na minha adolescência, por uma feliz coincidência de morar vizinha ao escritório da Comissão Pastoral da Terra (CPT), na cidade de Gurupi, onde, inicialmente participei de reuniões organizadas por ele com as pessoas da vizinhança para celebrar e para conversar sobre a realidade, em algumas noites, para conhecer um pouco a realidade local e compartilhar sua vida e luta. Dessa forma, alguns anos depois, inspirada pelo seu exemplo de vida, decidi estudar Direito. Resumidamente, por pertencer a uma família nobre da França, frei Henri abdicou da vida naquele país, para se dedicar à luta pelos Direitos Humanos e chegou ao Brasil no fim do ano de 1978, ainda durante a Ditadura Militar e permaneceu por aqui até o ano de 2013.
Sua história de compromisso com os camponeses injustiçados inspirou a mim e a muitas outras/os lutadoras/es do povo e eu tive a felicidade de trabalhar quase uma década ao lado dele e foi o melhor estágio que eu poderia ter tido na vida para o exercício da advocacia popular, mas sei que não interessa a minha vida, apenas cumpre registrar essa importante e valiosa contribuição na minha formação jurídica, desde a escolha do curso e a opção da atuação profissional, que poderia ter trilhado outros caminhos, mas eu tenho imensa satisfação e serei eternamente grata por essa oportunidade na vida. 
No escritório da Comissão Pastoral da Terra (CPT) Araguaia-Tocantins, onde fui trabalhar alguns anos após conhecê-lo, foi onde tive acesso à livros importantes, tais como “Brasil: Nunca Mais”, “1968: o ano que não terminou”, “Olga” e muitos outros, mas especialmente foi onde conheci a dureza dos conflitos agrários e a sangrenta e implacável perseguição aos trabalhadoras/res rurais do norte do então Estado de Goiás, Sul do Pará e Sul do Mato Grosso, grande região abrangida pela atuação da CPT Araguaia-Tocantins naquela época. Ali fiz descobertas sobre a gravidade da violência perpetrada pelo latifúndio contra aquelas famílias de posseiras e posseiros centenários, cujos pais ou avós já viviam por ali, forjando sua sobrevivência da maneira possível, sem a presença do Estado, sem nenhuma política pública, pessoas simples que viviam em uma região isolada, mas que foram marcadas de maneira indelével pela violência do Estado, dos latifundiários e dos grileiros que pela ganância ceifaram centenas de vidas e tornaram outras tantas escravas em nome do “desenvolvimento”, apenas para um reduzido grupo de exploradores violentos, para quem a vida dessas pessoas não importava.
Nesse cenário de verdadeiro massacre durante décadas sem trégua e sem poderem se defender diretamente, frei Henri, advogado lutador e extremamente corajoso e comprometido com as causas do povo violentado daquela região de intenso conflito agrário, proporcionava, de maneira incansável, todos os dias da semana, alguma esperança de justiça, ainda que temporária para continuar a luta. Muitas vitórias importantes foram conquistadas, muitos assentamentos de Reforma Agrária, mesmo tendo que computar nessa luta desigual muitas vidas ceifadas, mas sem perder a capacidade de indignação e retirando energia no combate intenso e incansável de lutar pela justiça.
Esse legado de compromisso com causa do povo camponês expropriado da região norte do nosso país, fez com que o frei Henri des Roziers se tornasse exemplo para o seguimento de muitas advogadas e muitos advogados populares que entraram e seguiram na luta, mesmo com a mudança de cenário, sem mudar a difícil realidade dessa população que permanece na luta incansável até os dias atuais, inspiradas e inspirados nos seus ideais de luta, cujo exemplo não nos deixa perder a capacidade de indignação e seguir na luta sem desanimar e tentando também envolver outras lutadoras e lutadores nessa difícil – mas necessária - missão de lutar pela justiça, ainda que ela continue extremamente seletiva e classista, mas proporcionando as esses sujeitos de direito uma esperança e força para continuar lutando pelo justo, com o Direito que lhes pertence, na luta pela dignidade, embora seja difícil alcançá-lo, em face da imensa desigualdade social e a nefasta estrutura agrária e injusta concentração de riqueza e renda em nosso país capitalista, que não permite esquecer que os constantes golpes políticos e de outras variadas formas nos atingem, mas pelo seu exemplo de luta frei Henri e de tantas outras e outros lutadoras e lutadores, continuamos o nosso embate, com coragem e determinação para construir o nosso país e defender “todos os direitos para todos”! 

Brasília, Brasil, 26/11/2017.



[1] Advogada Popular, membro da RENAP (Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares – www.renap.org.br ), do Coletivo Feminista Marietta Baderna, IPDMS, FIAN e Doutoranda em Direito na UnB e advogada voluntária no Projeto Maria da Penha/NPJ/UnB; email: soniacosta0807@gmail.com