Tributo a frei Henri des
Roziers: continuaremos sua luta.
Por Sônia Maria Alves da Costa[1]
O falecimento do frei Henri Gui
Emile Burin des Roziers, neste domingo, 26 de novembro de 2017, deixa muita
tristeza pela perda de um grande mestre e excepcional amigo, exemplo de vida
para muitas/os lutadoras/es do povo, cuja vida foi dedicada de maneira abnegada
à luta contra todas as formas de injustiça e grande parte de sua vida
empenhada à defesa das classes trabalhadora e camponesa no norte do Brasil,
inicialmente em 1979 no antigo norte de Goiás, na cidade de Porto Nacional e em
seguida no município de Gurupi, atual estado de Tocantins e também no Sul do
Pará, nos últimos anos, uma das regiões emblemáticas e de intensa injustiça
agrária e existência de trabalho escravo, uma das mais violentas do país, de
onde ele saiu em 2013, muito a contragosto, para fazer um tratamento de saúde,
já gravemente doente e retornou ao seu país de origem, sua cidade Natal, Paris.
A cada visita de uma brasileira ou de um brasileiro ele repetia que “queria
voltar para morrer no Pará”! Eu me recordo muito bem dessa frase firme dele,
com a mesma firmeza com que conduziu sua luta pelos Direitos Humanos, na
Europa, na América Central e em muitas outras fronteiras de luta e
especialmente no Brasil, onde dedicou décadas de luta ao povo injustiçado do
Norte do nosso país, onde ele se sentia muito realizado, mesmo
diante das graves e constantes ameaças de morte que recebia. Foi uma
grande luta para ele aceitar a proteção da Polícia Federal 24 horas por dia em
um dos momentos mais críticos de sua permanência no Pará. Ele alegava que se o
povo a quem defendia não tinha o mesmo tipo de proteção, por que ele deveria
merecê-la?
Eu não tenho o dom da poesia, mas
penso que um poema de Bertolt Brecht ilustra a missão exercida pelo frei
Henri: “Há homens que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano
e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que
lutam toda a vida e estes são imprescindíveis”. Frei Henri se tornou uma pessoa
imprescindível para os camponeses, para os milhares de trabalhadores submetidos
ao trabalho escravo contemporâneo, para a CPT, para a RENAP, enfim, para o povo
lutador brasileiro e de muitos outros países.
Frei Henri era extremamente
comprometido com a luta, muito exigente, mas de uma humanidade indescritível,
daquelas pessoas que te proporcionava muito prazer em dividir uma taça de vinho
e discutir sobre a vida e a conjuntura do país e, com a mesma determinação,
segui-lo andando a pé por diversos quilômetros até uma ocupação de camponeses
Sem Terra, no meio da mata ou virar a noite elaborando peças processuais ou
ainda escrevendo notas de repúdio para autoridades pelo tombamento de mais uma
vítima pelo braço armado dos latifundiários e pela omissão-cumplicidade do
Estado! Egresso da Sorbonne, Doutor pela Universidade de
Cambridge, recebeu dezenas de prêmios nacionais e internacionais, em Direitos
Humanos, mas valorizava muito mais cada vitória resultante da sua luta em
defesa do povo empobrecido a quem defendia na condição de incansável advogado,
porque era uma pessoa muito simples.
Ele foi inspiração para muitas
pessoas e eu tive a felicidade de conhecê-lo na minha adolescência, por uma
feliz coincidência de morar vizinha ao escritório da Comissão Pastoral da Terra
(CPT), na cidade de Gurupi, onde, inicialmente participei de reuniões organizadas por ele com as pessoas da vizinhança para
celebrar e para conversar sobre a realidade, em algumas noites, para conhecer
um pouco a realidade local e compartilhar sua vida e luta. Dessa forma, alguns
anos depois, inspirada pelo seu exemplo de vida, decidi estudar Direito.
Resumidamente, por pertencer a uma família nobre da França, frei Henri abdicou
da vida naquele país, para se dedicar à luta pelos Direitos Humanos e chegou ao
Brasil no fim do ano de 1978, ainda durante a Ditadura Militar e permaneceu por
aqui até o ano de 2013.
Sua história de compromisso com
os camponeses injustiçados inspirou a mim e a muitas outras/os lutadoras/es do
povo e eu tive a felicidade de trabalhar quase uma década ao lado dele e foi o
melhor estágio que eu poderia ter tido na vida para o exercício da advocacia
popular, mas sei que não interessa a minha vida, apenas cumpre registrar essa
importante e valiosa contribuição na minha formação jurídica, desde a escolha
do curso e a opção da atuação profissional, que poderia ter trilhado outros
caminhos, mas eu tenho imensa satisfação e serei eternamente grata
por essa oportunidade na vida.
No escritório da Comissão Pastoral da Terra (CPT)
Araguaia-Tocantins, onde fui trabalhar alguns anos após conhecê-lo, foi onde
tive acesso à livros importantes, tais como “Brasil: Nunca Mais”, “1968: o ano
que não terminou”, “Olga” e muitos outros, mas especialmente foi onde conheci a
dureza dos conflitos agrários e a sangrenta e implacável perseguição aos
trabalhadoras/res rurais do norte do então Estado de Goiás, Sul do Pará e Sul
do Mato Grosso, grande região abrangida pela atuação da CPT Araguaia-Tocantins
naquela época. Ali fiz descobertas sobre a gravidade da violência perpetrada
pelo latifúndio contra aquelas famílias de posseiras e posseiros
centenários, cujos pais ou avós já viviam por ali, forjando sua sobrevivência
da maneira possível, sem a presença do Estado, sem nenhuma política pública, pessoas
simples que viviam em uma região isolada, mas que foram marcadas de maneira
indelével pela violência do Estado, dos latifundiários e dos grileiros que pela
ganância ceifaram centenas de vidas e tornaram outras tantas escravas em nome
do “desenvolvimento”, apenas para um reduzido grupo de exploradores violentos,
para quem a vida dessas pessoas não importava.
Nesse cenário de verdadeiro massacre durante
décadas sem trégua e sem poderem se defender diretamente, frei Henri, advogado
lutador e extremamente corajoso e comprometido com as causas do povo violentado
daquela região de intenso conflito agrário, proporcionava, de maneira
incansável, todos os dias da semana, alguma esperança de justiça, ainda que temporária
para continuar a luta. Muitas vitórias importantes foram conquistadas, muitos
assentamentos de Reforma Agrária, mesmo tendo que computar nessa luta desigual
muitas vidas ceifadas, mas sem perder a capacidade de indignação e retirando
energia no combate intenso e incansável de lutar pela justiça.
Esse legado de compromisso com causa do povo camponês
expropriado da região norte do nosso país, fez com que o frei Henri des Roziers
se tornasse exemplo para o seguimento de muitas advogadas e muitos advogados
populares que entraram e seguiram na luta, mesmo com a mudança de cenário, sem
mudar a difícil realidade dessa população que permanece na luta incansável até
os dias atuais, inspiradas e inspirados nos seus ideais de luta, cujo exemplo
não nos deixa perder a capacidade de indignação e seguir na luta sem desanimar
e tentando também envolver outras lutadoras e lutadores nessa difícil – mas
necessária - missão de lutar pela justiça, ainda que ela continue extremamente
seletiva e classista, mas proporcionando as esses sujeitos de direito uma
esperança e força para continuar lutando pelo justo, com o Direito que lhes
pertence, na luta pela dignidade, embora seja difícil alcançá-lo, em face da
imensa desigualdade social e a nefasta estrutura agrária e injusta concentração
de riqueza e renda em nosso país capitalista, que não permite esquecer que os
constantes golpes políticos e de outras variadas formas nos atingem, mas pelo
seu exemplo de luta frei Henri e de tantas outras e outros lutadoras e
lutadores, continuamos o nosso embate, com coragem e determinação para construir
o nosso país e defender “todos os direitos para todos”!
Brasília,
Brasil, 26/11/2017.
[1] Advogada Popular, membro da RENAP (Rede Nacional de
Advogadas e Advogados Populares – www.renap.org.br
), do Coletivo Feminista Marietta Baderna, IPDMS, FIAN e Doutoranda em Direito
na UnB e advogada voluntária no Projeto Maria da Penha/NPJ/UnB; email: soniacosta0807@gmail.com