sábado, 3 de junho de 2017

No Brasil, quem gera violência e quem a combate? Por frei Gilvander

No Brasil, quem gera violência e quem a combate?
Por frei Gilvander Luís Moreira[1]



Em junho de 2013, nos primeiros dias dos justos e necessários protestos na capital de São Paulo, do Movimento Passe Livre, a TV gLobo e a mídia em geral rotularam inúmeras vezes os manifestantes de vândalos, Black bloc e arruaceiros, atitude criminalizadora. Dia 15 de maio de 2017, em Brasília, as forças policiais do Estado brasileiro reprimiu, com requintes de crueldade, mais de 200 mil pessoas que protestavam legitimamente contra os desmontes das leis trabalhistas e previdenciárias, exigiam Fora Temer e cobraram Diretas já. A frase inicial nos jornais televisivos era: “A manifestação começou pacífica, mas terminou em violência”. E a partir daí mostravam cenas selecionadas para induzir o povo a pensar que de fato se tratava de ações de violentos.
Em junho de 2013, quando as manifestações se espalharam pelo país, a mídia começou a fazer uma distinção: “O movimento é pacífico, mas tem uns vândalos no meio que promovem quebradeira”. Os donos do poder midiático, principal “partido” no Brasil, querem domesticar a classe trabalhadora e o campesinato, além de manietar as manifestações somente a “paz e amor”, o que não estremecerá o status quo podre do sistema capitalista, ora vigente no Brasil. É hora de resgatarmos a história a partir dos oprimidos e fazermos algumas reflexões.
Quem eram os Povos Vândalos? “Os Vândalos eram um povo germânico oriental que penetrou no Império Romano durante o século V e criou um estado no norte da África ocupando a cidade de Cartago, antiga cidade fenícia que fora ocupada pelos romanos desde o fim das Guerras Púnicas. A localização de Cartago às margens do Mediterrâneo era estratégica para os Vândalos. Ali centralizaram seu Estado, e logo após se estabelecerem, saquearam Roma no ano de 455”[2].
“Ao longo da marcha para o oeste, os Vândalos atingiram a margem do Danúbio e alcançaram o rio Reno, onde entraram em combate com os francos. Aproximadamente vinte mil vândalos morreram no choque entre esses dois povos, sendo que os francos só foram derrotados quando os alanos entraram no combate para auxiliar os vândalos. Em ações ousadas, os Vândalos saquearam Roma durante duas semanas no ano de 455 e foram capazes de resistir ainda a uma frota enviada pelo Império Romano para combatê-los”[3].
Portanto, a história demonstra que os Vândalos eram um povo digno que lutou aguerridamente contra o imperialismo romano. Logo, não é justo criminalizar os Vândalos e acusá-los de violentos. Eles lutavam por direitos.
Ontem, o império romano. Hoje, o império do capital, liderado pelos capitalistas. Assim como os Vândalos lutavam contra a opressão do Império Romano, hoje milhões de brasileiros, nas ruas, lutam não apenas por migalhas, mas por direitos. Vândalos, hoje, são os que revelam a infinita indignação que toma conta do povo diante da superexploração da dignidade humana e de toda a biodiversidade e diante de um Estado cúmplice do sistema do capital e dos capitalistas. Em junho de 2013, a revolta iniciou com a luta por transporte público de qualidade e foi somada a inúmeras pautas populares pelas ruas do Brasil. A luta segue e irá muito longe. Não se encerrará sem a superação do modelo econômico e político que desgoverna o Brasil e esfola a classe trabalhadora, a classe camponesa, a mãe terra, a irmã água e toda a biodiversidade.
Quem são os violentos hoje no Brasil? Nunca devemos esquecer o alerta de Bertold Brecht que diz: "Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem". Rotular é tentar invisibilizar e mais: rotular e criminalizar são retóricas do poder. É preciso sempre buscar as causas profundas que geram os conflitos.   Em uma sociedade que a corrupção é apenas a ponta do iceberg da superexploração que o capitalismo e os capitalistas, com as empresas cada vez maiores e transnacionais perpetram contra o povo, tendo um Estado cúmplice da classe dominante violentos são:
a)   Os políticos, salvo raras exceções, que não representam o povo, mas, via de regra, defendem interesses de grandes empresas e latifundiários;
b)   Os juízes do Poder Judiciário que não respeitam os princípios constitucionais de respeito à dignidade humana, republicanismo, função social da propriedade, criminalizam os movimentos sociais populares e absolutizam o direito a propriedade para apenas alguns. Julgam como se ainda estivéssemos sob os ditames da Constituição de 1924, a que prescrevia direito absoluto a propriedade;
c)   Os administradores públicos, promotores e juízes que abarrotam as prisões, verdadeiros campos de concentração, jogando lá somente os pobres, negros e jovens;
d)   Os grandes empresários que lucram, roubam e saqueiam a  classe trabalhadora pagando míseros salários e, com intensificação do trabalho e do produtivismo, arrebentam com a saúde dos trabalhadores, empurrando-os para a via crucis do SUS que é mantido, de propósito, na UTI para que grandes empresas dos planos de saúde acumulem um exagero de capital;
e)   As grandes mineradoras que, como em Conceição do Mato Dentro, MG, causam uma devastação socioambiental sem precedentes na história. Com coração de pedra, vão dizimando as nascentes de água e deixando para trás terra arrasada: crateras e um rastro de destruição;
f)    Os grandes empresários do transporte público privatizado que lucram bilhões carregando o povo trabalhador como se esse fosse gado para ser transportado em condições indignas e por preço que esfola o povo diariamente;
g)   os banqueiros que cometem cotidianamente o pecado da usura e especulando com o dinheiro do povo engordam seu poder econômico à custa de muito sangue humano;
h)  Os latifundiários que não cumprem a função social da propriedade e seqüestram a terra em poucas mãos gananciosas expulsando milhões de camponeses para as periferias das cidades;
i)    Os dirigentes da classe dominante que há séculos vêm pisando, humilhando e violentando a classe trabalhadora e a classe camponesa. Eis um exemplo: na época da escravidão formal, um cortador de cana cortava de três a quatro toneladas de cana por dia. Hoje, um bóia-fria dos canaviais paulistas corta de doze a quatorze toneladas por dia. Por isso, de 2004 a 2006, mais de vinte trabalhadores morreram por exaustão no trabalho.

É contra esses violentos que a classe trabalhadora e camponesa se rebelam e estarão nas ruas até que seus direitos sejam conquistados e efetivados. A luta é por justiça social, por justiça agrária, por justiça ambiental e por direitos humanos. Feliz quem dela participar e também contribuir para que espertalhões de plantão não venham golpear o povo já tão oprimido, mas que está se levantando.
Resistir não é violência, é legítima defesa. Diante de qualquer tirania e de um Estado violentador, cúmplice do sistema capitalista que sempre tritura vidas e pratica injustiças, é dever ético das pessoas resistir contras as opressões perpetradas contra os/as trabalhadores/ras e camponeses/sas. O Evangelho de Lucas, em Lc 22,35-38, sugere desobediência civil – econômica, política e religiosa -, ao propor: “quem não tiver espada, venda o manto e compre uma” (Lucas 22,36). Em uma sociedade estruturalmente desigual, esse é o “outro caminho” proposto pelo Evangelho de Mateus (Mateus 1,12) a ser seguido por nós, discípulos e discípulas de Jesus, o rebelde de Nazaré.
Os quatro evangelhos da Bíblia[4] relatam que Jesus, próximo à maior festa judaico-cristã, a Páscoa, impulsionado por uma ira santa, ocupou o templo de Jerusalém -, o que, metaforicamente, representaria hoje, o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto, o Supremo Tribunal Federal e o conglomerado da mídia brasileira - e expulsou os promotores de injustiça e de violência que lá se encontravam. Como todo profeta, ao descobrir que a instituição tinha transformado o templo em uma espécie de Banco Central do país + bancos + bolsa de valores, Jesus fez um chicote de cordas e expulsou todos do templo, bem como as ovelhas e bois, destinados aos sacrifícios. Derramou pelo chão as moedas dos cambistas e virou suas mesas. Aos que vendiam pombas (eram os que diretamente negociavam com os mais pobres porque os pobres só conseguiam comprar pombos e não bois), Jesus ordenou: “Tirem estas coisas daqui e não façam da casa do meu Pai uma casa de negócio” (João 2,16). Portanto, importante ter bem claro quem gera violência e quem a combate neste país.

Belo Horizonte, MG, Brasil, 03 de junho de 2017.




[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutor em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, SAB e Movimentos Populares Urbanos de luta por moradia; e-mail: gilvanderlm@gmail.com –www.freigilvander.blogspot.com.br -  www.gilvander.org.br  – www.twitter.com/gilvanderluis  – Facebook: Gilvander Moreira III
[3] Antônio Gasparetto Júnior. In: http://www.infoescola.com/povos-germanicos/vandalos  , acesso em 21/6/2013.
[4] Mateus 21,12-13; Marcos 11,15-19; Lucas 19,45-46 e João 2,13-17.

Ocupação William Rosa - Uma história de luta por moradia.

sexta-feira, 2 de junho de 2017

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Dandara: “Saia da Escravidão você também!” E Pimentel premiando a especulação?

Dandara: “Saia da Escravidão você também!” E Pimentel premiando a especulação?

 “Eu acho que todo mundo tem que ter a sua autonomia. Se você depender dos outros, você vira o quê? Escravo!” (Seu Orlando)
Na madrugada do dia 09 de abril de 2009, cerca de 150 famílias sem-teto, organizadas pelas Brigadas Populares e pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Teto (MST), com o apoio da CPT, ocuparam uma área de 315 mil m², no bairro Céu Azul, região da Nova Pampulha, em Belo Horizonte, MG, propriedade que não cumpria há décadas a função social. Quatro dias depois, em função do enorme déficit habitacional que assola as cidades brasileiras, havia um mar de barracas de lonas composto por mais de 1.000 famílias dispostas a lutar pelo direito à moradia.
No mesmo ano que surge a comunidade-ocupação Dandara surge o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). Ali já ficava claro o embate entre dois projetos de cidade contrapostos. De um lado, um programa habitacional que transforma moradia em mercadoria a ser produzida em aliança entre Capital-Estado como forma de movimentar a economia em um contexto de crise econômica, privilegiando construtoras e seus lucros. De outro lado, famílias sem-teto que construíram uma comunidade auto-organizada com planejamento popular, com muita luta e consciência coletiva de que é justo insurgir contra uma situação de opressão da classe trabalhadora que vive superexplorada nas periferias urbanas.
Dandara surge no primeiro ano do (des) Governo do Prefeito-empresário de BH, Márcio Lacerda, que por todas as vias buscou deslegitimar e despejar a ocupação, mas foi derrotado em suas pretensões. Na gestão empresarial da cidade de Belo Horizonte, Lacerda (2009-2016), a comunidade travou várias lutas importantes e formou uma grande rede de apoio: participou ativamente do movimento Fora Lacerda, realizou cinco grandes marchas percorrendo mais de 25 km até o centro de BH, ocupou o prédio da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Regional, Política Urbana e Gestão Metropolitana (SEDRU), acampou 5 semanas na luta contra despejo: 3 semanas na porta da prefeitura de BH, uma na Praça 7 e outra semana na porta da Regional da Prefeitura no Barreiro, ocupou juntamente com outras ocupações urbanas a sede da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) nos influxos das Jornadas de Junho de 2013, realizou uma campanha internacional contra o despejo, recebeu um grande abraço solidário, dentre outras várias ações.
Para indignação nossa, aconteceu que à surdina, sem alarde, na calada dos jogos palacianos, a Comunidade Dandara foi declarada pelo governador Fernando Pimentel (PT) como área de interesse social para fins de desapropriação de pleno domínio por via do Decreto Estadual 196, de 20 de abril 2016. Na sequência, em junho de 2016, o Governo Pimentel ajuizou uma ação de desapropriação (PROCESSO: 5087851-24.2016.8.13.0024), com pedido de liminar de imissão na posse em face da CONSTRUTORA MODELO LTDA, objetivando a imissão na posse provisória, mediante depósito no percentual de 80% do valor estimado para o imóvel, no valor de R$ 51.012.168,34 (cinquenta e um milhões, doze mil, cento e sessenta e oito reais e trinta e quatro centavos). Ou seja, uma área que estava servindo à especulação imobiliária, abandonada há mais de 30 (trinta) anos, pela qual a Construtora Modelo não tinha pago nem um centavo, com mais de 2 milhões de reais em dívida de IPTU, em clara afronta ao principio constitucional da função social da propriedade, irá gerar para os cofres de uma construtora o importe de mais de R$ 60.000.000,00 (sessenta milhões de reais)! É a completa transgressão da responsabilidade do Poder Público já que uma empresa privada está se apropriando indevidamente da riqueza urbana produzida coletivamente numa completa imiscuidade entre o público e o privado.
Ressalte-se que a Construtora Modelo não comprovou a posse do terreno em momento algum do processo judicial. Ou seja, a Construtora Modelo tinha praticamente perdido o processo no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), mas o Governador Pimentel, sem conversar com a coordenação da Comunidade Dandara, nem com Brigadas Populares e nem com a Comissão Pastoral da Terra, agracia a Construtora com mais de sessenta milhões de reais. Isso é inadmissível, ainda mais em contexto de endividamento do Estado e de falta de recursos para investir nas áreas sociais, pagar professores, etc. Por isso repudiamos esse Decreto de desapropriação e a ação de desapropriação, sem conversar com os legítimos interessados, visando repassar dinheiro público para uma construtora que tinha perdido inclusive a propriedade, pois propriedade que não cumpre sua função social deixa de existir. Repudiamos o Governador Pimentel por premiar a Construtora que estava especulando com terrenos e deixando o povo crucificado pela cruz do aluguel.
Essa mesma gestão estadual pretende aprovar na Assembleia Legislativa de Minas Gerais o Projeto de Lei 4.135/2017 que cria e transfere para um fundo financeiro cerca de 6.000 imóveis Estaduais com o objetivo de administrá-los a partir da lógica mercantil do lucro e da especulação imobiliária. Essa administração não está ao lado dos trabalhadores e nem do direito à cidade. Não concordamos com a forma de desapropriação da comunidade-Dandara e sabemos que a conquista da terra só foi possível graças à luta, suor e trabalho dos moradores e movimentos sociais.
Importante afirmar que nesses 08 (oito) anos de luta Dandara se consolidou e hoje já tem rede de água e saneamento sendo instalada pela COPASA, com mais de 1.500 casas – moradias adequadas – se tornou referência para muitas outras ocupações: Irmã Dorothy, Rosa Leão, Esperança, Vitória, Guarani Kaiowá, Eliana Silva, Nelson Mandela, Paulo Freire, Tomás Balduíno, Novo Horizonte, Lampião e tantas outras comunidades. Dandara se construiu como um dos maiores paradigmas de consolidação do direito à moradia e à cidade ao afirmar a autonomia do poder popular que constrói novas geografias, novas formas políticas e um novo projeto de cidade livre das amarras da opressão!
Dandara venceu a escravidão, o prefeito Márcio Lacerda e o projeto mercadológico do MCMV afirmando-se como território insurgente, de resistência, autonomia política e (re)existência! Viva a luta popular! Viva Dandara!

Belo Horizonte, MG, 02 de junho de 2017

Por uma cidade aonde caibam muitas cidades!

Pátria-Mátria Livre – Venceremos!

Assinam essa Nota:

Brigadas Populares – Minas Gerais
Comissão Pastoral da Terra (CPT)
Rede de Apoio e Solidariedade da Comunidade Dandara