Sentença do Juiz de Casa Nova (BA) nega
reconhecimento de terra devoluta e determina o despejo de quase 400 famílias de
área que ocupam tradicionalmente há mais de 100 anos.
“Esta luta não para enquanto a justiça não
prevalecer” (Zé de Antero, trabalhador
assassinado em 31/01/2009)
No ultimo de 11 de julho de 2016, as comunidades tradicionais de fundo de pasto da região de Areia Grande, situadas em Casa Nova, BA, acordaram perplexas com a publicação da sentença proferida pelo juiz de direito da Vara Cível da Comarca, Eduardo Padilha, no bojo da Ação Discriminatória 000155-03.2008.805.0052, que, desde 2008, discute conflito envolvendo grilagem de 26 mil hectares de terras no município.
Tal decisão, desconsiderando as provas produzidas no processo e o parecer do Ministério Público, negou o pedido do Estado da Bahia de reconhecimento da terra como devoluta e determinou a expedição de mandado de imissão de posse em favor dos empresários Alberto Martins Pires Matos e Carlos Nisan Lima Silva.
Histórico do Conflito
A área em litígio integra o território
tradicional das Comunidades Melância, Riacho Grande, Salina da Brinca, Jurema,
Tanquinho, Ladeira Grande, Lagoado, Lagedo, Lagoinha, Pedra do Batista, Pilão,
sendo utilizada pelas mesmas para criação solta de caprinos e desenvolvimento
de extrativismo, em regime de fundo de pasto, desde a segunda metade do século
XIX, tendo importância fundamental para a reprodução econômica e sócio cultural
dos grupos.
Na final da década de 1970, a mesma foi alvo
de um processo escandaloso de grilagem em benefício da empresa Agroindustrial
Camaragibe S.A, que acessando recursos do Proálcool, adquiriu “títulos de
posses” na área (passados por atravessadores membros das famílias das
oligarquias regionais) e os registrou no Cartório de Registro de Imóveis de
Casa Nova como se fossem propriedade. Tal registro é completamente ilegal pois
a legislação brasileira proíbe o registro de terras que não tenham registro
anterior no cartório de imóveis. Tais terras são consideradas públicas
devolutas.
Além da fraude no registro, a empresa
abandonou o projeto de produção de álcool biodiesel e apropriou-se do financiamento
público, deixando uma dívida milionária com o Banco do Brasil, no contexto do
chamado “Escândalo da Mandioca”, de repercussão nacional.
Como forma de pagamento da dívida, o Banco do
Brasil adquiriu o direito sobre os títulos supostamente de propriedade
registrados pela empresa nas terras de Areia Grande, e, em 2004, os transferiu
para os empresários Alberto Martins Pires Matos e Carlos Nisan Lima Silva.
Em 2006, tais empresários ingressaram com uma
ação judicial (n°1353785-3/2006) contra 11 moradores de Areia Grande,
acusando-os de invasores e requerendo a imissão daqueles na posse da área, o
que foi aprovado pelo juiz de direito de Casa Nova, sem sequer ouvir o
Ministério Público.
O cumprimento da decisão causou amplo clamor
social, quando no dia 06.03.2008, a região de Areia Grande reviveu situação de
terror. Policiais e prepostos dos empresários invadiram a área ocupada
secularmente pelas comunidades, destruíram casas, chiqueiros, currais, roçados,
arvores centenárias da caatinga, milhares de metros de cercados, e exigiam
imediata retirada de cerca de 3.000 caixas de colméias de abelhas instaladas no
local há mais de 05 anos pelos apicultores das comunidades, levando a prejuízos
calculados em mais de um milhão de reais.
O cumprimento da decisão atingiu dezenas de
famílias que sequer faziam parte do processo, e assumiu grande repercussão na
Bahia e no Brasil, sendo objeto de sucessivas matérias no Jornal A Tarde,
Correio da Bahia, jornais de circulação local e na internet. O conflito também
foi pauta de audiência pública realizada pela Ouvidoria Agraria Nacional no
município de Casa Nova, com a presença de diversos órgão do Estado e levou a
deflagração, pela Coordenação de Desenvolvimento Agrário, de uma ação
discriminatória administrativa rural para investigar a grilagem, a qual
concluiu que as terras reivindicadas pelos empresários eram publicas devolutas
e que os registros de terra em nome dos mesmos eram nulos. Tais irregularidades
também foram reconhecidas pela Corregedoria do Tribunal de Justiça do Estado da
Bahia, que após realizar inspeção no Cartório de Registro de Imóveis da Comarca
determinou o bloqueio das matriculas da área em litígio.
Tal cenário levou o juiz de direito da
Comarca a suspender os efeitos de sua decisão, possibilitando aos réus e demais
moradores das comunidades o retorno à área, decisão essa que foi fortalecida
com a proposição, pelo Estado da Bahia, da Ação Judicial Discriminatória 000155-03.2008.805.0052.
Em represália, intensificaram-se as ameaças
armadas contra as famílias das comunidades, culminando, em 2009, no assassinato
do trabalhador rural Jose Campos Braga (Zé de Antero), crime que continua
impune.
A sentença proferida na Ação Discriminatória Judicial
A sentença proferida na Ação Discriminatória Judicial
Durante a tramitação
da Ação Discriminatória Judicial 000155-03.2008.805.0052 (2008 - 2016),
diversas provas foram produzidas pelo Estado da Bahia, por Alberto Martins
Pires Matos e Carlos Nisan Lima Silva e pelas Associações Comunitárias de Areia
Grande e em nenhum momento os empresários conseguiram comprovar a legalidade
dos registros que embasam o suposto direito de propriedade dos mesmos.
Provas, na verdade,
não faltam do contrário nos autos do processo: relatório da discriminatória
administrativa realizada pela CDA, certidões de registro em cartório do imóvel,
depoimento do oficial do cartório reconhecendo que registrou posse como se
fosse propriedade, decisão da Corregedoria do TJ-BA anulando as matriculas do
imóvel: todas atestam a invalidade dos registros de terra apresentados pelos
empresários.
Esse também foi o
entendimento do Ministério Público do Estado, que em parecer elaborado em 2015,
opina pelo deferimento do pedido do Estado da Bahia de reconhecimento da terra
como devoluta e pela anulação dos registros efetuados ilegalmente sobre a área.
Sobre a ocupação
tradicional da área pelas comunidades de Areia Grande, também não faltam provas
nos autos. Além dos depoimentos de testemunhas, foi juntado ao processo parecer
elaborado por antropóloga do Ministério Público Federal que elaborou estudo
sobre o modo de vida das comunidades e reconhece que a área em litigio é
ocupada, histórica e tradicionalmente por dezenas de comunidades, que fazem uso
comunitário da área, na forma de fundo de pasto.
No entanto, o Juiz
Eduardo Padilha, deliberadamente, desconsiderou todo esse conjunto de provas e
proferiu sentença afirmando que a área é propriedade privada dos empresários e
negando o pedido do Estado da Bahia.
Não mesma decisão o
magistrado determina ainda que os empresários sejam emitidos na posse na área,
com uso de força policial, por conta da Ação de Imissão de Posse de 2006. Tal
determinação viola a Lei Federal 6383 de 1976 que impõe que Ação
Discriminatória Judicial suspende todas os outros processos que discutem
direitos de posse ou propriedade sobre a área. A decisão de Eduardo Padilha faz
com que a Ação de Imissão de Posse n°1353785-3/2006 volte a ser movimentada
antes da ação discriminatória judicial chegar ao seu fim, situação que só
poderia ocorrer após a mesma transitar em julgado (não haver mais possibilidade
de recursos ou os mesmos serem julgados pelo Tribunal), o que ainda não
ocorreu.
A postura do referido
juiz, mesmo sendo completamente ilegal arbitraria, infelizmente não nos
surpreende, pois o mesmo magistrado já expressou publicamente que estava “cagando e andando” para a
Convenção n º 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Lembramos que
tal Convenção, assinada pelo Brasil em 2002, com força de norma constitucional,
por tratar de matéria de direitos humanos, reconhece diversos direitos dos
Povos e Comunidades Tradicionais. A tal convenção se somam os artigos 215 e 216
da Constituição Federal de 1988, o Decreto 6040 de 2007, os artigo 178 da
Constituição do Estado da Bahia e Lei 12920 de 2013, as duas últimas que tratam
dos direitos das Comunidades de Fundo de Pasto.
Por isso, além dos
devidos recursos legais que serão apresentados, repudiamos, fortemente, a ação
ilegal e autoritária do Juiz de direito da comarca de Casa Nova, Eduardo
Padilha. Exigimos, também, que os órgãos de Estado se abstenham de praticar
quaisquer atos de ilegalidade e violência com base nessa decisão.
Por fim, solicitamos
a mobilização da sociedade civil e dos órgãos competentes do Estado para unirem
forças no sentido de salvaguardar os direitos das Comunidades tradicionais de
Areia Grande em permanecerem em seus territórios e evitar que os episódios de
terror vivenciado pelas famílias em 2008 e 2009 se repitam.
Casa Nova, Bahia, Brasil, 14 de julho de 2016.
Assinam essa Nota Pública:
UNIÃO DAS ASSOCIAÇOES DE FUNDO DE PASTO DE
CASA NOVA – UNASFP
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA – CPT
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA – CPT
INSTITUTO DA PEQUENA AGROPECUÁRIA APROPRIADA
– IRPAA
SINDICATO DE TRABALHADORES RURAIS DE REMANSO
SERVIÇO DE ASSISTENCIA A ORGANIZAÇOES POPULARES RURAIS – SASOP
SINDICATO DE TRABALHADORES RURAIS DE REMANSO
SERVIÇO DE ASSISTENCIA A ORGANIZAÇOES POPULARES RURAIS – SASOP
SERVIÇO DE ASSISTENCIA SOCIOAMBIENTAL NO
CAMPO E CIDADE – SAJUC
ASSOCIAÇAO DE ADVOGADOS DE TRABALHADORES RURAIS
NO ESTADO DA BAHIA- AATR
ARTICULAÇÃO ESTADUAL DE FUNDO DE PASTO