Chacina dos fiscais
em Unaí: quase 12 anos depois, o que não pode ser esquecido. Justiça à vista?
Frei Gilvander Luís Moreira
Era dia 28 de janeiro de 2004, uma
quarta-feira chuvosa, 08:20hs da manhã, em uma emboscada, cinco jagunços
dispararam rajadas de tiros em quatro fiscais da Delegacia Regional do
Ministério do Trabalho, perto da Fazendo Bocaina, município de Unaí, Noroeste
de Minas Gerais. Passaram-se 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11 anos. Já foi
aprovada a Lei 12.064, que criou o dia 28 de
janeiro como Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. Mas e a Justiça?
Por onde anda? No dia 28 de janeiro de 2016 completam 12 anos da chacina. Até
agora, um dos jagunços presos morreu e outros três jagunços - Rogério Alan Rocha Rios, William Gomes de Miranda e
Erinaldo de Vasconcelos Silva - estão presos cumprindo penas, condenados
por júri popular em agosto de 2013, quase dez anos depois, pelo assassinato de quatro
funcionários do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Um dos jagunços foi condenado a 94 anos de
prisão.
Na maior chacina
contra agentes do Estado Brasileiro, foram ceifadas as vidas de Eratóstenes de Almeida Gonçalves (o
Tote), de 42 anos, João Batista Soares Lage, 50 anos, e Nelson José da Silva,
52 anos, além do motorista Aílton Pereira de Oliveira, 52
anos.
Por quê? Como servidores éticos, estavam cumprindo
seu dever: fiscalizando fazendas do agronegócio no município de Unaí. Multaram
vários fazendeiros. A família Mânica, por exemplo, foi multada em mais de 3
milhões de reais. Motivo das multas: trabalhadores em situações análogas à
escravidão, sobrevivendo em condições precárias e imersos no meio de uso
exagerado de agrotóxicos. Por isso, os fiscais foram ameaçados de morte. O
fiscal Nelson chegou a fazer um relatório alertando sobre as ameaças que vinha
sofrendo.
Uma Tese de
Doutorado, de 2007, em Psicologia Social, pela UNB, da Dra. Magali Costa
Guimarães, sob o título “Só se eu arranjasse uma coluna de ferro pra aguentar
mais...”, sobre o custo humano – o que acontece com os trabalhadores rurais -
na colheita do feijão no município de Unaí, afirma:
“Também se ouviu, por
parte dos trabalhadores, muitos comentários e queixas sobre o uso de
produtos químicos na planta (denominados por eles como ‘veneno’),
alguns relatam que o cheiro faz com que tenham dores de cabeça e mal-estar.
Outros se queixam, pois acham que, muitas vezes, os produtores não esperam o
prazo correto – período de carência – para colher (segundo alguns, de três
dias), daí acabam passando mal na hora de processar o arranquio do feijão. O ‘veneno’
aparece, inclusive, como resposta do trabalhador à pergunta: “o que em seu
trabalho não te faz sentir bem?” É o ‘veneno’, junto com outras
características das condições de trabalho, da atividade e da organização,
gerador de mal-estar no trabalho. Mas, mais do que mal-estar, os
problemas de saúde e adoecimentos ligados ao uso indevido ou à exposição a
agrotóxicos já foram identificados em diferentes estudos científicos que
revelam ser uma ocorrência bastante comum no setor agrícola. Os estudos citados
mostram que este uso e/ou exposição tem sido responsável por doenças
respiratórias, no sistema reprodutivo – infertilidade, abortos, dentre outras –
e diferentes formas de manifestação de câncer.”
Quem matou e quem
mandou matar? Um arrojado processo de investigação das Polícias Federal e Civil
apresentou um grande elenco de provas robustas, tais como: confissão dos
jagunços que estão presos e condenados, pagamento de 45 mil reais em depósito
bancário, nomes e identidades dos jagunços no livro de hotel, em Unaí, onde
estavam hospedados os fiscais, comprovando que lá dormiram também os jagunços;
depoimento do Ailton, motorista dos fiscais, que, após recobrar a consciência,
depois do massacre, ainda encontrou forças para dirigir a camionete até a
estrada asfaltada, mas morreu sendo levado para socorro em Brasília; uma série
de telefonemas entre os jagunços e mandantes, antes e depois da chacina; um
automóvel encontrado jogado dentro do lago Paranoá, em Brasília; relógio do
Erastóstenes encontrado dentro de uma fossa, na cidade de Formosa, GO etc.
No 3º aniversário
da chacina, dia 28 de janeiro de 2007, no local onde o sangue dos fiscais foi
derramado na terra mãe, o bispo dom Tomás Balduíno, da Comissão Pastoral da
Terra (CPT) alertou: “Os
fiscais são mártires da luta contra o Trabalho Escravo. A Comissão Pastoral da
Terra diz que há mais de 25 mil pessoas ainda submetidas a situação análoga à
escravidão no Brasil. Os fiscais foram vítimas do agronegócio, das monoculturas
da soja, do feijão, da cana-de-açúcar, do eucalipto. Exigimos justiça já, em
nome do Deus da vida.”
Marinês, viúva do
fiscal Erastóstenes,
com a voz embargada, em meio a lágrimas, clamou por justiça:
“Ao saber que meu
amado marido Erastóstenes tinha sido assassinado junto com João Batista, Nelson
e Ailton, uma espada de dor transpassou meu coração e continua transpassando,
porque a justiça ainda não foi feita. A dor e a angústia continuam muito
grandes diante da impunidade. Pelo amor de Deus, julguem logo os assassinos,
jagunços e mandantes. Os fiscais foram assassinados durante seu trabalho, por
trabalharem bem, por serem honestos, por não se corromperem e por cumprirem o
seu dever. Exigimos justiça! Que mais este massacre não fique na impunidade.”
A família do Ailton passou necessidades
econômicas após a morte dele. As viúvas dos fiscais fizeram “vaquinha” para
ajudar dona Marlene, viúva do Ailton. As famílias dos fiscais foram postas em
um tipo de prisão domiciliar. O medo de pessoas estranhas, a solidão, a
tristeza, a angústia, uma espada de dor transpassando o coração, insônia,
problemas de saúde, dificuldades, muitas lágrimas. Tudo isso passou a ser pão
de todo dia para as famílias.
Dona Marlene diz que gostaria de se encontrar
com os jagunços e com os supostos mandantes e perguntar a eles: “Por que vocês fizeram isso? Por qual motivo?
Vocês não tiraram a vida apenas de quatro pais de família. Vocês transtornaram
a vida de nossas famílias e de nossos amigos. Meu pai e minha mãe adoeceram e
morreram. A mãe do Ailton também. Tenho certeza que também por causa disso.”
Dona Marlene acrescenta:
“Nas festividades -
datas de Natal, Páscoa, aniversário dos filhos, na formatura dos filhos –
sentimos muito a falta do Ailton. Isso dói muito. Meu filho Ariel, dia 26 de
janeiro de 2004, completou 15 anos de idade. Nesse dia, o Ailton saiu de casa
para levar os fiscais. Dois dias após, Ailton e os fiscais foram assassinados.
Esse foi o presente de aniversário que meu filho recebeu. Por isso meu filho
não gosta de falar sobre esse assunto. Hoje, graças a Deus, já formado em
Economia, Ariel é um filho exemplar e honrado. Teve que fazer acompanhamento
psicológico para superar muitos problemas. Fomos colocados numa espécie de
prisão. Espero que também os mandantes sejam presos. Eles precisam experimentar
a solidão da prisão. No julgamento não podem condenar só os jagunços, mas
também os mandantes. Precisam condenar os pequenos e os grandes.”
Dona Marlene manda também um recado às
pessoas de boa vontade:
“Marquem logo esse
julgamento. Não tardem mais! Eu peço a todos que perderam algum parente
assassinado que venham participar do julgamento. Fiquem ao nosso lado. Espero
que todas as pessoas nos ajudem nesse julgamento. Participem. Quem passou pela
mesma dificuldade, venha participar conosco do julgamento. Assim poderemos ter
um pouco de justiça nesse nosso Brasil.”
Sobre o pai Ailton, o motorista dos fiscais,
a filha Rayanne Pereira, já formada em Biologia, diz:
“Meu pai Ailton era
um homem de um coração bondoso. Ele estava sempre disposto a ajudar as pessoas
e a socorrer quem precisava. No sepultamento do meu pai, aqui em Prudente de
Morais, havia gente demais, parecia que tinha morrido uma grande autoridade. É
que o meu pai era querido por todos aqui na cidade. Homem trabalhador, Ailton
trabalhou na Embrapa, na LBA, no DNER e, por último, no Ministério do Trabalho.
Meu pai foi um herói, inclusive, porque, mesmo baleado, dirigiu vários
quilômetros rumo ao hospital. Ao ser encontrado por policiais, ele repetia: “Socorre meus companheiros, os fiscais. Cuide
deles. Eles não podem morrer.”
Assim, meu pai pensava, primeiro, nos outros e não nele mesmo. O Ariel,
meu irmão, e eu aprendemos muitos bons valores com nosso pai e com nossa
querida mãe que teve força para erguer a cabeça e continuar cuidando de nós.
Tudo que sou devo ao meu pai e a minha mãe que me ensinaram a seguir a lado
certo da vida. Meu pai foi voluntário no asilo, ajudou a alfabetizar várias
pessoas. Ele e minha mãe sempre ajudaram muito a comunidade aqui de Prudente de
Morais.”
Morando na cidade de Unaí, Elba Soares da
Silva, viúva do fiscal Nelson, ao tentar buscar explicações para tantas
perguntas angustiantes, diz: “Eu já consegui perdoar os assassinos. Agora é
eles e Deus. Eu me perguntei muito ‘Por que Deus colocou o Nelson no meu
caminho para eu viver com ele somente quatro anos?’ Deus me deu a resposta: O
Nelson precisaria de alguém em Unaí para continuar gritando por ele.” Nelson
conheceu Elba, enquanto fiscalizava um frigorífico de Unaí, onde Elba
trabalhava. De fato, Elba nos últimos nove anos tem sido uma batalhadora
incansável para que o julgamento da Chacina de Unaí aconteça e a justiça reine.
Depois de muita luta pressionando para que os
indiciados como mandantes fossem julgados e após muitas manobras jurídicas para
retardar o julgamento dia 28 de outubro de 2015, às 08:00h, iniciou o
julgamento de dois indiciados como mandantes: Norberto Mânica e José Alberto de
Castro. Norberto Mânica foi condenado a 100 anos de prisão e José Alberto de Castro,
a 96 anos, mas recorrerão da pena em liberdade. O julgamento do fazendeiro e
ex-prefeito de Unaí pelo PSDB, Antero Mânica, iniciou dia hoje, dia 04 de
novembro de 2015. E o julgamento de Hugo Pimenta está remarcado para iniciar
dia 10 de novembro próximo.
Faz bem recordar que o fazendeiro Adriano
Chafic, mandante do massacre de 5 Sem Terra do MST, em Felisburgo, MG, após 10
anos, foi julgado e condenado a 115 anos e prisão, mas saiu do Forum Lafaiete,
em BH, livre e está livre até hoje, amparado por recursos judiciais que só
existem para os ricaços nesse país. Acontecerá o mesmo com os indiciados como
mandantes da Chacina de Unaí?
Enquanto reina a injustiça, a impunidade, o
município de Unaí se transformou em campeão na produção de feijão, no uso de
agrotóxico e no número de pessoas com câncer. Relatório do deputado Padre João
(PT) demonstra que o número de pessoas com câncer, em Unaí, é 5 vezes maior do
que a média mundial. A cada ano, 1260 pessoas contraem câncer na cidade. Aliás,
um hospital do câncer já está sendo construído na cidade, pois ficará menos
oneroso do que levar toda semana vários ônibus lotados de pessoas para se
tratarem de câncer no Estado de São Paulo. A terra, as águas e a alimentação
estão sendo contaminadas pelo uso indiscriminado de agrotóxico. Trabalho
escravo e agrotóxicos matam!
Está na Bíblia que o Deus da vida, ao ficar
indignado com o assassinato de Abel pelo seu irmão Caim, perguntava: “Caim,
cadê seu irmão Abel?” (Gênesis 4,9). Caim se escondia. Há quase 12 anos, junto
com as viúvas, os familiares, os fiscais federais e todas as pessoas que lutam
por justiça, o Deus da vida está perguntando: “Norberto Mânica, Antério Mânica,
José Alberto de Castro e Hugo Alves Pimenta, cadê nossos irmãos Nelson,
Erastóstenes, João Batista e Ailton?” Parem de se esconder atrás de
intermináveis recursos jurídicos e assumam as consequências do que vocês
fizeram.
Belo Horizonte, MG, Brasil, 04 de novembro de
2015.
Obs.: Para maiores informações,
sugiro assistir aos vídeos nos links, abaixo:
1) Domingo espetacular: A Grande Reportagem traz depoimentos
dos pistoleiros sobre a Chacina de Unaí.
2) Chacina dos
fiscais em Unaí: Entrevista com a viúva do Ailton, Marlene e filha Rayanne.
18/01/2013
3) Entrevista com Elba, viúva de Nelson, um dos 4 fiscais
assassinados em Unaí dia 28/01/2004.
4) 8 anos
do massacre de 4 fiscais do MTE, em Unaí - Entrevista com Calazans - 1a parte -
12/01/2012
5) Segunda parte de
entrevista com Carlos Calazans sobre a Chacina de Unaí.
6) Matéria 6 anos de Impunidade -
Chacina de Unaí