Carta aberta aos
juízes:
o preço de um despejo
sem alternativa digna.
Gilvander Luís Moreira[1]
Belo
Horizonte, MG, Brasil, 13 de junho de 2014.
Srs.
Juízes, desembargadores e ministros do poder judiciário brasileiro, já que é
tão difícil falar com vocês diretamente, o jeito é escrever-lhes uma Carta Aberta,
pois o que está ocorrendo é muito grave. Espera-se de um juiz que ele faça
justiça, mas as decisões judiciais - regra geral - estão abarrotando as prisões
com jovens, negros e pobres. Prisão em massa de uma só classe: a trabalhadora. É
direito penal máximo para os pobres e direito civil empresarial máximo para os
enriquecidos. Cadê os direitos fundamentais da pessoa humana? Virou lugar comum
juízes apressadamente conceder liminares de reintegração de posse sobre
Ocupações coletivas urbanas ou do campo. Só em Minas Gerais há mais de 250
liminares de reintegração de posse para serem cumpridas, na quase totalidade
versando sobre propriedades que estavam abandonadas, ociosa, sem cumprir função
social.
Simplesmente
a regra é “reintegre-se ficando autorizado o uso da força policial.” Isso sem
garantir os inúmeros direitos fundamentais de milhares de pessoas. A
Constituição Federal de 1988 não tem como fundamento a dignidade humana (art.1º)?
Não prescreve a Constituição a função social para propriedades do campo e na
cidade? (art. 5º. XXIII, art. 283 e 286 da CF)? Não determina direito à
moradia, à saúde, à educação, a paz? Não é objetivo da CF/88 superar a miséria
e as desigualdades (Art. 3º)?
Mas,
muitos juízes estão tão distantes da realidade dos pobres que mandam retirar
centenas de pessoas de uma ocupação coletiva como se fossem entulho que lá
estivesse.
Considerando
que a maioria dos juízes “não tem tempo” para ir visitar as ocupações, ouvir os
clamores dos pobres, vamos descrever um pouco o preço de um despejo sem alternativa
digna. Vale recordar que alternativa digna não é levar as famílias para abrigo
público, ou para bolsa moradia, ou inscrever as famílias em uma fila de
política habitacional que não existe ou se existe, não anda.
Tomemos
como exemplo o despejo de 300 famílias da Ocupação Santa Cruz, em Montes
Claros, MG, dia 05 de junho de 2014. Usaram 250 policiais da tropa de choque e
de vários outros batalhões da Polícia Militar de Minas Gerais; quatro tratores,
inclusive um de esteira; vários caminhões, mais de quarenta viaturas,
helicóptero, cavalaria, cães, inúmeros aparelhos de comunicação etc.
Senhores
juízes, quanto custa preparar e realizar uma operação como essa? Quanto em
alimento, água, combustível e arsenal bélico? Não sabemos quanto custa, mas
sabemos que quem paga é o povo, através de uma pesadíssima carga tributária
jogada principalmente nas costas da classe trabalhadora. É daqui que vem
orçamento para custear o Estado que golpeia quem o sustenta financeiramente: o
povo injustiçado. Quantos milhares de famílias ficaram sem segurança pública,
porque um enorme contingente policial foi deslocado para despejar quem luta
para sair da cruz do aluguel?
Só
na Ocupação Santa Cruz, destruíram 80 casas de alvenaria. Em média as famílias
tinham investido cerca de 8 mil reais em cada casa. 80 casas vezes 8 mil reais
é igual 640.000,00 (Seiscentos e quarenta mil reais), valor equivalente ao que
os turistas da COPA gastarão em Belo Horizonte. Mais da metade desse dinheiro,
cerca de 400 mil reais, foi conseguido em empréstimo para descontar durante 4
ou 5 anos na aposentadoria de um salário mínimo. Ou seja, 80 famílias perderam
640 mil reais e perderam suas casas. Ficaram sem casas e com uma dívida que
durante uns 4 ou 5 anos comerá parte da migalha de aposentadoria que recebem.
Se o povo tivesse uma aposentadoria equivalente à dos juízes e desembargadores,
o prejuízo seria menor.
Mas
não é só esse o preço de um despejo sem alternativa digna, que é reassentamento
prévio, conforme já vem sendo feito por determinação de alguns juízes em
Pernambuco e no Rio Grande do Sul.
Centenas
de famílias foram jogadas novamente na cruz do aluguel, que é furto diário no
prato dos pobres. Ou foram jogadas nas costas de parentes que normalmente já
pagam aluguel também. É cruz em cima de cruz. “A gente toma café da manhã com aluguel, almoça aluguel, janta aluguel e
dorme com aluguel. Não suportamos mais isso”, desabafou dona Maria, da
Ocupação Tomás Balduíno, de Ribeirão das Neves, MG.
Não
esqueçamos que há um preço muito maior do que o prejuízo econômico: um despejo
sem alternativa digna mata o sonho de conquistar moradia própria e digna, sonho
de décadas. Imaginem quantas lágrimas! Quanta decepção nas autoridades! Quanta
frustração diante do poder representado pelos governantes. Onde fica a
legitimidade da força do Estado brasileiro? Quantos traumas indeléveis nas
centenas de crianças que veem um exército armado até os dentes diante de si derrubando
suas casinhas e expulsando-as do lugar onde elas brincavam e corriam à vontade?
Após
um despejo, com a indignação gerada, como em uma encruzilhada, duas estradas se
abrem: Por um lado, a maioria do povo despejado se reúne e trata de organizar a
luta para dar a volta por cima, assim como fizeram a Ocupação Zilah
Sposito/Helena Greco, que, após ter 15 casas demolidas inclusive com gás
lacrimogêneo em crianças, reergueu-se e, hoje, já tem mais de 170 casas de
alvenaria construídas. Ou como a Ocupação Eliana Silva, no Barreiro, em Belo
Horizonte, que, três meses após ser despejada por 400 policiais reocupou outro
terreno e hoje já tem mais de 300 casas de alvenaria construídas. Ou ainda como
as duas Ocupações da Fazenda Baixa Funda, em Manga, MG, que já passou por 12
despejos e sempre o povo volta a reocupar a terra. Mas por outro caminho, outras
pessoas ficam revoltadas e são jogadas na criminalidade. Assim, despejos
forçados fomentam a violência social.
Quem
puder ler e ouvir, que veja, que ouça e faça diferente dentro e fora do Poder
Judiciário!
Mas
assino embaixo do que afirma um juiz justo: Gerivaldo Neiva, no poema ao povo
do Pinheirinho, Não os perdoem: eles sabem o que fazem!
“... Ei, Justiça, cadê você que não responde e aceita
impassível tantos absurdos?
Não percebes o que estão fazendo com teu nome santo?
Em teu nome, atiram, ferem, tiram a casa e roubam os sonhos e nada
dizes?
Tira esta venda, vai!
Veja o que estão fazendo em teu nome! Revolte-se!
E o pior dos absurdos: estão dizendo teus os atos do Juiz e do Poder que
ele representa!
Vais continuar impassível?
E mais absurdos: estão te transformando em merdas de leis.
Acorda, vai!
Chama o povo, chama o Direito das ruas e todos os oprimidos do mundo e
brada bem alto:
- Não blasfemem mais com meu nome! Não sou o
arbítrio e nem a ganância! Não sou violenta, nem cínica e nem hipócrita! Não
sou o poder, nem leis, nem sentenças e nem acórdãos de merda!
Diz mais, vai! Brada mais alto ainda:
- Eu sou o sonho, sou a utopia, sou o justo, sou a
força que alimenta a vida, sou pão, sou emprego, sou moradia digna, sou
educação de qualidade, sou saúde para todos, sou meio ambiente equilibrado, sou
cultura, sou alegria, sou prazer, sou liberdade, sou a esperança de uma
sociedade livre, justa e solidária e de uma nação fundada na cidadania e dignidade
da pessoa humana.
Diz mais, vai! Conforta-nos:
- Creiam em mim. Um dia ainda estaremos juntos.
Deixarei de ser o horizonte inatingível para reinar no meio de vós! Creiam em
mim. Apesar da lei, do Poder Judiciário e das sentenças dos juízes, creiam em
mim e não perdoem jamais os que matam e roubam os sonhos em meu nome, pois
eles sabem o que fazem!”
[1] Frei e padre carmelita; bacharel e licenciado em
Filosofia pela UFPR, bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências
Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutorando em
Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, SAB, PJR e Via Campesina, em
Minas Gerais; e-mail: gilvanderlm@gmail.com
–www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
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