Por que
não abrir mão da crítica à Copa do Mundo?
Isabella Gonçalves
Miranda[1]
“Criticamos a Copa do Mundo para não se invisibilizar o legado perverso
que ela deixa para muitos brasileiros e brasileiras, para que nunca se perca a
nossa capacidade de indignação frente às injustiças.”
Coimbra, Portugal, 16 de maio de 2014.
“Acima de tudo, procurem sentir no mais profundo de vocês qualquer
injustiça cometida contra qualquer pessoa em qualquer parte do mundo. É a mais
bela qualidade de um revolucionário.” (Ernesto Che Guevara).
A Copa do Mundo e as
Olimpíadas são os mais importantes e lucrativos megaeventos do capitalismo
global. No contexto de sua preparação se radicalizam o sentido privatista de
cidade e de políticas públicas contra os quais a esquerda brasileira
historicamente se embate. No Brasil, a realização desse megaevento
desestruturou a vida de mais de 250.000 brasileiros, que tiveram seus direitos
violados: comunidades removidas, favelas militarizadas, trabalhadores
deslocados e acidentados, crianças e adolescentes em risco de exploração
sexual, população em situação de rua violentamente oprimida, manifestantes
criminalizados…
Qual então o sentido
do silenciamento da crítica à Copa do Mundo por parte de importantes
intelectuais e militantes de movimentos e partidos de esquerda?
Para responder a essa
desconcertante pergunta recorremos ao contexto de construção de uma plataforma
de governo nos últimos anos que prometeu traduzir algumas das principais pautas
políticas da esquerda no Brasil, com especial enfoque nas políticas de redução
da pobreza. Confiantes nesse projeto, movimentos sociais e organizações da
sociedade civil fizeram uma opção estratégica de confiar politicamente no
projeto levado adiante pela legenda do Partido dos Trabalhadores (PT). Por um
lado, isso gerou mais confiança política, estabilidade e cooperação na
construção de um projeto transformador de país, por outro, silenciou muitas das
críticas e lutas justas que deveriam ser feitas ao governo, por receio de a
mesma “fortalecer a direita”.
Pergunto-me, contudo,
o que ocorre a um governo que deixa de ser pressionado pelo campo popular
dentro de sistemas capitalistas?
O PT nunca deixou de
ser pressionado pela direita e hoje constatamos que para se manter no poder o
partido teve que ceder a perversas concertações políticas com setores da elite
agrária e urbana, nacional e internacional. No contexto da Copa do Mundo, a
FIFA surge como uma perversa força política transnacional, que tem levado o
país a aprofundar modelos de desenvolvimento que violam os direitos dos povos e
as soberanias locais.
A crítica à Copa do
Mundo, portanto, é uma crítica justa que não pode ser condenada e nem
silenciada, com o risco de estamos virando as costas para aqueles que foram
oprimidos pelo contexto perverso da preparação do mundial. Os Comitês Populares
da Copa, que atuam nas 12 cidades que serão sede dos jogos, integrados pela
Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (ANCOP) há quatro anos tem
feito um trabalho de denúncia e organização de grupos de atingidos pela Copa em
seu processo de resistência. Tratam-se, por exemplo, de comunidades que se
colocaram na frente da polícia e dos tratores contra os processos de remoção
que a Copa intensificou.
Compostos por
comunidades atingidas, movimentos sociais e organizações da sociedade civil, os
comitês acreditam que a crítica à Copa do Mundo se faz não apenas justa, como
cada vez mais necessária.
Vivemos em um cenário
onde predomina um clima de insatisfação com a Copa do Mundo no Brasil. A maior
parte dos brasileiros já se deu conta de que o Mundial não trará um legado
positivo para a população. Há pouco mais de 30 dias para o mundial nas ruas as
pessoas falam da Copa com ressentimento e, quando evocam a frase “imagina na
Copa”, sempre seguem com algum comentário desanimador.
Atualmente a Copa do
Mundo politizou o debate nacional sobre diversas questões estruturais no país,
desde a questão do debate sobre as prioridades de investimento do orçamento
público até discussões sobre a democracia e as políticas urbanas. Esse debate é
extremamente salutar e revela a insatisfação de grande parte da população com a
condução dos processos políticos no país.
Tal debate certamente
influenciará o contexto eleitoral em outubro de 2014 e, por isso, tem razão os
intelectuais e militantes que argumentam sobre a possibilidade de perdas
eleitorais pela realização da Copa do Mundo. Não tem razão, no entanto, em
apostar no silêncio ou mesmo na celebração do Mundial como medida de proteção
ao governo federal. Se a crítica hoje é um dado, é necessário disputá-la no
campo popular!
Para tal, é preciso
combater algumas das falácias produzidas sobre aqueles que lutam contra a Copa
do Mundo no Brasil:
Em primeiro lugar, é
falsa a ideia de que as mobilizações contra a Copa são promovidas pela direita
ou por setores políticos cuja crítica é vazia de conteúdo. Se é verdade que
existem setores que buscam se aproveitar do contexto político gerado pela Copa
para atacar o governo, eles são um grupo minoritário, embora expressivo em
termos de acesso aos meios de comunicação e capacidade de despertar atenções
sobre suas pautas.
No campo popular, se
organizam nas 12 cidades-sede Comitês Populares da Copa, movimentos sociais e
organizações políticas que tem protagonizado expressivas críticas à Copa. Em
Belo Horizonte, as ocupações urbanas ameaçadas de despejo lançaram o slogan “Se
Tiver Despejo, não vai ter Copa” e mais recentemente o MTST, maior movimento
social de luta pela moradia no Brasil, realizou uma ocupação chamada “Copa do
Povo” como parte da luta contra a cidade de exceção promovida pelo mundial.
Além desses, coletivos artísticos urbanos, movimentos pela tarifa zero e o
passe livre, bairros e favelas de todo o Brasil se organizam para contestar o
Mundial.
A crítica à Copa do
Mundo que constroem esses grupos não se centra em questões vazias que visam
incidir negativamente sobre o governo federal, tais como a pauta da corrupção,
apresentada de forma moralizante pelos grandes meios de comunicação. Tratam-se
de questionamentos importantes sobre as violações de direitos, sobre a
intensificação de um modelo neoliberal de cidade, sobre a inversão de
prioridades na utilização de recursos públicos etc. Pautas caras a todo o campo
popular.
Em segundo lugar, é
falso dizer que a mídia nacional está a favor das críticas à Copa ou daqueles
que se manifestam contra a Copa. Nos últimos meses os grandes meios de
comunicação tem reforçado a criminalização dos protestos e jogado toda a
opinião pública contra as formas de contestação mais variadas. Em uma edição
recente da revista Veja os Comitês Populares da Copa foram colocados como
ameaças ao lado de organizações terroristas internacionais. É preciso perceber
que essa mesma mídia é financiada por empresas patrocinadoras da Copa, que
lucram enormemente com a sua realização.
Se as manifestações
de rua tomarem grandes proporções no período da Copa do Mundo é claro que
haverá interesses da direita em pautar as críticas que emergem das ruas. Também
é verdade que esses setores farão o uso da mídia para disputar essa crítica,
portanto, estaremos em um cenário de grandes desafios. Por isso mesmo é preciso
hoje mais convergência na construção de uma crítica sóbria, justa e necessária
à Copa do Mundo pelos mais variados setores da esquerda, independentemente de
opções eleitorais divergentes.
Na conjuntura atual é
muito difícil prever o que serão as mobilizações na Copa do Mundo ou mesmo como
será a conjuntura eleitoral, mas de algo podemos estar certos, a nossa
fragmentação e desarticulação alimenta os interesses daqueles que desejam ver
reproduzidas as mais variadas formas de exclusão social e política que seguem
marcando o cotidiano da vida das pessoas nas cidades e no campo brasileiro.
O contexto das
Jornadas de Junho nos leva a refletir que embora tenham participado milhares de
pessoas, com uma pauta de reivindicações extremamente diversa, foram
principalmente pessoas organizadas em espaços de articulação e deliberação
“face a face” que construíram contornos políticos à esquerda para as ações
coletivas naquele mês e nos que se seguiram. Até certo ponto estreito e
disputado, elas e eles foram sujeitos decisivos na convocação dos protestos e
na construção de contrainformação midiática, discursos e narrativas sobre o
significado político de estar nas ruas, travando uma difícil disputa com os
grandes meios de comunicação e outros grupos sociais e políticos. Como
consequência as Jornadas de Junho fizeram emergir importantes pautas políticas
como a redução da tarifa, a desmilitarização das polícias e a reforma política,
além de ter alimentado o desejo de lutar por uma sociedade melhor.
Por que não abrimos
mão da crítica à Copa do Mundo? Porque a Copa do Mundo tem causado sofrimento
humano injusto e violações de direitos que nos desumanizam e porque acreditamos
que a luta é a mais efetiva e democrática forma de transformação dessas mesmas
condições de opressão.
Criticamos a Copa do
Mundo para não se invisibilizar o legado perverso que ela deixa para muitos
brasileiros e brasileiras, para que nunca se perca a nossa capacidade de
indignação frente às injustiças. Lutamos para que os direitos das populações
sejam reparados, e para que cesse o processo de higienização e militarização
das cidades em prejuízo aos grupos mais vulneráveis. Lutamos para que o modelo
de cidade impulsionado por esse megaevento não se transforme no cotidiano de
produção do espaço urbano brasileiro.
Criticamos a Copa,
assim como todos os megaprojetos de desenvolvimento que interpõe os interesses
do capital aos direitos e dignidade das pessoas. Repudiamos a forma como o
governo brasileiro tem facilitado esses megaprojetos no Brasil e em outros
países do Sul.
Criticamos a Copa do
Mundo da FIFA, não o futebol em geral, esporte que desperta tantas emoções e
alegrias. A FIFA é hoje, em nível mundial, um dos símbolos mais evidentes do
que o capitalismo tem de pior: pulsão desenfreada pela mercantilização de todas
as esferas da vida; uma política internacional imperialista e corrupta;
dominação e desprezo pelas populações locais; pressão pela instauração de um
estado de exceção, cujo objetivo último é destruir a democracia para assegurar
a acumulação sem fim.
Por isso, no dia 15
de Maio se iniciou a agenda de lutas unificada contra a Copa do Mundo. Essa
agenda, amplamente debatida no I Encontro de Atingidos da Articulação Nacional
dos Comitês Populares da Copa, questiona de forma incisiva o atual modelo
neoliberal de políticas públicas no campo e na cidade e a criminalização do
dissenso e do protesto, que atualmente se intensifica no país, com a Lei Geral
da Copa e a ativação de legislações retrógradas, tal como a Lei de Segurança
Nacional. (Cf. o Manifesto da ANCOP sobre o 15 de Maio)
Acreditamos que o
silenciamento e a submissão nunca podem ser efetivos instrumentos na construção
de uma política progressista e popular. A crítica é uma parte fundamental do
processo democrático. Quando sóbria e consequente, ela ganha um alto poder de
impulsionar transformações importantes na sociedade. Se estivermos abertos para
avaliar as potencialidades desse contexto de intensificação do debate
democrático e da politização de questões estruturais, talvez possamos
transformá-lo em um importante momento para o impulso de lutas sociais históricas
no país, lutas que não se iniciam na Copa e nem se encerram nela.
[1]
Isabella G.
Miranda é militante do Comitê Popular dos Atingidos pela Copa e integra a
Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa.