RELATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
DE MINAS GERAIS SOBRE VISITA TÉCNICA À OCUPAÇÃO ROSA LEÃO.
Referência: Visita conjunta à Ocupação
Urbana Rosa Leão
Belo Horizonte, 07 de outubro de
2013.
INTRODUÇÃO
Aos sete dias do mês de outubro de 2013, no
período de 15 horas às 19 horas, em atendimento à determinação da Promotora de
Justiça Nivia Mônica da Silva, coordenadora do Centro de Apoio Operacional das
Promotorias de Justiça de Direitos Humanos e Apoio Comunitário (CAODH) e do
Promotor de Justiça Paulo Cesar Vicente de Lima, coordenador da Coordenadoria de Inclusão e
Mobilização Sociais (CIMOS), equipe composta por integrantes do CAODH e CIMOS,
ao final assinada, compareceu à ocupação
urbana Rosa Leão, para realização de visita técnica conjunta, com o
objetivo de conhecer a ocupação, delineando suas principais características, as
formas de relação com o poder público, e os principais problemas enfrentados
pela comunidade para efetivação de seus direitos fundamentais.
A equipe foi
recebida por coordenadores de quadra da ocupação e por representantes de grupos
de apoio, sendo realizada entre todos reunião onde foram relatados o histórico
da ocupação, o processo de organização comunitária, as dificuldades enfrentadas
pelos ocupantes para efetivação de direitos e a atuação da polícia na
área. Na sequência a equipe diligenciou
em caminhada pela ocupação para reconhecimento da área, o que permitiu a
visualização in loco do que foi descrito na reunião e o colhimento de
relatos de outros ocupantes assim como do material fotográfico que ilustra o
presente relatório.
CARACTERIZAÇÃO
DA OCUPAÇÃO
A ocupação
urbana Rosa Leão está localizada na região norte de Belo Horizonte, nas
imediações do Conjunto Zilah Spósito e do Bairro Jaqueline, em área contígua à ocupação Helena Greco
e nas proximidades das ocupações urbanas Vitória e Esperança. Relatam os coordenadores que o processo
de ocupação iniciou-se em maio de 2013, de forma “voluntária”, na medida em que
as famílias foram se apropriando espontaneamente do espaço, sem organização
prévia ou articulação por movimentos sociais ou de apoio, em razão da
necessidade premente de conseguirem um teto.
Atualmente compõe a ocupação cerca de 1400 (hum mil
e quatrocentas) famílias, vindas de
diversas regiões da capital em busca de moradia. A ocupação é composta por
pessoas que, ao longo de sua história de vida, tiveram negado o acesso à
moradia, sendo relatado que antes de ali estarem, parte delas habitava imóveis
locados, cujo custeio do aluguel comprometia uma parcela significativa da sua
renda, afetando sua sobrevivência; outra parte estava “morando de favor”,
ocupando imóvel cedido ou dividindo habitações precárias com outros grupos
familiares; havendo ainda casos de núcleos familiares que se encontravam em
situação de rua antes de ali se fixarem. Em todos esses casos fica patente a
situação de insegurança quanto à garantia da moradia.
Após se estabelecerem no local, os ocupantes
iniciaram um intenso processo de organização interna com a apoio de movimentos
sociais, grupos de extensão
universitária, arquitetos, voluntários entre outros, culminando na construção
de um projeto urbanístico para a ocupação e de uma organização coletiva da comunidade
Rosa Leão. Tal organização advém do
esforço continuado dos moradores e também da troca de saberes e experiências
com os mais diversos apoiadores.
O terreno
ocupado é composto por uma parcela de terreno público municipal e outra de
terrenos particulares cujos proprietários não foram identificados, totalizando
87.194,87 m² de área, segundo o levantamento topográfico feito por equipe de
apoiadores. Relatam os coordenadores da ocupação que uma família que já ocupava
um lote no terreno há aproximadamente 06 (seis) anos, e que o restante da área
estava há mais de 30 anos desocupada, sem cumprir sua função social.
No processo de organização da ocupação, o terreno foi dividido em 15 quadras, sendo
que cada uma delas possui um coordenador, pessoa responsável pela articulação
coletiva da ocupação e principal ator na operacionalização dos processos de
organização interna da comunidade. Duas vezes por semana são realizadas
assembleias gerais da ocupação e diariamente ocorrem reuniões das quadras e de
coordenadores, nas quais são coletivamente deliberadas as mais diversas
questões relacionadas à organização comunitária, e são dados encaminhamentos
aos projetos de estruturação da área.
Relatam os
moradores que logo após o acordo entre representantes das ocupações urbanas e
da prefeitura Municipal de Belo Horizonte, que culminou na desocupação pacífica
da sede do executivo municipal em 30 de julho de 2013, foi realizado um
pré-cadastro das famílias pela URBEL, o que ocasionou uma expectativa quanto a
permanência e a regularização da ocupação. O pré-cadastro feito pela URBEL foi
apropriado pela ocupação e incorporado às ferramentas de autogestão, servindo
como forma de identificação dos moradores da ocupação.
A ocupação
conta ainda com instrumentos de organização e gestão internas, tais como
regimento interno, listas de presença das reuniões, das assembleias, das
quadras, e cadastro de todas as famílias. Nesse cadastro, além de informações
pessoais e demográficas, constam dados
socioeconômicos, a partir dos quais são traçados os perfis das famílias que ali
residem: grande parte possui algum tipo de ocupação ou emprego, ainda que
precarizado, como empregados da construção civil, confeiteiros, diaristas, empregadas domésticas, babás,
faxineiras, etc.
Um relato elucidativo do vínculo direto e
sistemático entre precariedade das condições de trabalho e negação do acesso à
moradia, nos foi concedido por um dos coordenadores de quadra. Um senhor de
meia-idade, profissional da construção civil, emigrado do sul da Bahia para
Belo Horizonte há 20 (vinte) anos,
envolvido com a construção de casas em regime de mutirão, ao ser
questionado sobre a manutenção de suas atividades profissionais fora da
ocupação, relaciona sua adesão à estratégia de ocupação ao momento em que
percebeu que “mesmo que trabalhasse mais vinte anos construindo casas para
os outros, nunca conseguiria conquistar a minha”.
O projeto
urbanístico que vem sendo desenvolvido pela comunidade, com a colaboração de um
grupo de arquitetos e outros profissionais tem como instrumentos um mapa e uma
maquete, que permitem a fácil compreensão do planejamento de ocupação do
terreno, com a definição dos trechos que devem ser destinados à abertura de
ruas e do tamanho dos lotes, evidenciando ainda a preocupação dos ocupantes em
manter intactas as áreas de preservação ambiental e risco geológico,
identificando e vedando a utilização de áreas íngremes ou que possam oferecer
riscos de deslizamento. Essa preocupação com a manutenção de áreas de
preservação ambiental levou os coordenadores da ocupação a afirmar que esta já
atingiu seu limite quanto ao número de famílias ocupantes, não sendo hoje mais
permitida a adesão de novas famílias.
Neste
sentido, tem ocorrido enorme esforço coletivo para o reordenamento do espaço,
vez que as habitações erguidas no início do processo de ocupação em áreas de
risco ou de preservação ambiental foram removidas e realocadas em outras partes
do terreno, em locais apropriados. Essas áreas são ainda objeto de ações de
recomposição da cobertura vegetal, viabilizada pela doação de centenas de mudas
pela Universidade Federal de Minas Gerais à ocupação.
Percebe-se,
ao percorrer a ocupação, a existência de práticas construtivas que compatibilizam
a ocupação da área com a manutenção da vegetação arbórea. Cabe aqui ressaltar
que nas áreas mais planas da ocupação, adequadas à construção de moradias, há o
predomínio do que se convenciona chamar pasto sujo, tipo de vegetação
produto de ação antrópica, marcado pela predominância de gramíneas e pela
presença esparsa de árvores. A predominância deste tipo de cobertura vegetal
proporciona na área da ocupação espaços para a construção das moradias sem que
seja necessária a supressão de vegetação arbórea.
Vale
ressaltar o relato de que houve um acordo verbal com a municipalidade, através
do qual esta se comprometeu a não realizar a reintegração de posse do terreno
desde que cerca de 90 (noventa) famílias,
que estavam ocupando a margem da rua Anastácia, em área de preservação e
de risco, fossem retiradas e reassentadas dentro da própria ocupação. Os
coordenadores asseveram que a comunidade cumpriu sua parte no acordo e ainda
providenciou a recuperação ambiental do local com o plantio de mudas doadas
pela municipalidade.
As habitações que compõem a ocupação se dividem
entre barracos de lona e casas de madeirite e de tijolos. A construção
das habitações ocorre de forma gradual e, à medida que os moradores conseguem
alguma forma de renda, compram os materiais para substituir os barracos de lona
por habitações de madeirite e por casas de alvenaria. Essas construções
ocorrem sempre em regime de mutirão.
Há também equipamentos de uso coletivo, tais como o
centro de apoio, local que serve de alojamento para os apoiadores externos da
ocupação e onde são realizadas as assembleias gerais; a cozinha comunitária,
localizada atualmente no mesmo espaço do centro do apoio, sendo o local onde
são armazenadas as doações recebidas pela ocupação- e o banheiro coletivo, que
serve aos muitos ocupantes ainda privados de instalações sanitárias em suas
moradias. Há que se salientar a variedade de projetos coletivos mencionados
pelos membros da ocupação. Além da horta comunitária, que já teve seu espaço
definido e iniciada sua implantação, há ainda o projeto de se criar uma
brinquedoteca, centro cultural, creche na ocupação, e espaço de formação
profissional em panificação. A escolha por esse tipo de qualificação
profissional, se deve a presença entre os membros da ocupação de profissionais
dessa área, que se dispuseram a ministrar os cursos
Acesso Aos serviços
públicos
O acesso à
água potável e à energia elétrica é feitos de maneira informal e em apenas
alguns pontos de determinadas quadras. Mesmo nos locais onde há eletricidade,
muitas vezes não é possível realizar a ligação de geladeiras ou chuveiros. Há um esforço de se improvisar postes nas
ruas criadas para que se evite acidentes entre os ocupantes e traga maior
segurança à comunidade. No caso da água,
relatam que convivem constantemente com a falta de abastecimento. Foi
enfatizando pelos ocupantes o desejo de formalizar o acesso regular a esses
serviços públicos junto à Cemig e à Copasa.
O acesso a
equipamentos públicos, tais como escolas, creches e postos de saúde, também tem
sido precário para as famílias da comunidade Rosa Leão. Conforme relatado, os
moradores, por não terem um endereço formalizado, não conseguem ser acolhidos
no CRAS, onde há atendimento médico. Informou-se, inclusive, que duas mulheres
grávidas da ocupação, uma com 6 meses de gravidez e outra com 8 meses, tiveram
atendimento negado. Após insistirem, os apoiadores conseguiram que fosse
agendado atendimento médico para essas mulheres. Um morador ressaltou que passou por um
cateterismo e precisa consultar pelo menos duas vezes por mês com um
cardiologista sendo que há dois meses
ele não consegue o atendimento especializado que necessita. Por fim, foi
relatado que há uma criança na comunidade com paralisia cerebral e teve
atendimento negado. Foi enfatizado que há crianças diabéticas e deficientes,
além de muitos idosos, o que demanda assistência médica e social urgente.
Sobre o
acesso à educação, relatou-se as mães da ocupação enfrentam dificuldades em
matricular seus filhos nas escolas da região em razão da falta de comprovante
de endereço. Foi mencionada a falta de creches para as crianças fora de idade
escolar, cujos pais necessitam trabalhar
e não tem onde deixá-las. Foi informado que as creches públicas da região não
tem vagas e que em creches conveniadas com a prefeitura (Santa Teresinha e Ping
Poing), há enorme fila de espera, restando aos moradores a tentativa de
solucionar esse problema por meio da construção de uma creche no espaço da
própria comunidade.
Outro problema relatado se refere ao recolhimento de
lixo. Segundo os moradores, o caminhão não atende a entrada da comunidade, o
que dificulta a disposição adequada do lixo para a totalidade dos residentes na
ocupação. A situação de falta de reconhecimento do endereço também acarreta
outros problemas para efetivação de direitos, como o exemplo de um trabalhador
que não consegue receber vale-transporte da empresa onde trabalha.
Atuação da Polícia Militar
Em relação à
atuação da Polícia Militar na ocupação, foi noticiado que no dia 30 de
setembro, por volta das 22 horas, 15 (quinze) policiais militares entraram na
ocupação e cometeram atos de abuso, como torcer o braço de um indivíduo,
apontar arma de fogo, entrar na habitação de pessoas e danificar o seu
patrimônio. Foi dito que policiais militares alegaram que as incursões no local
são patrulhamentos em busca de pessoas suspeitas de crimes que, supostamente,
poderiam estar ali escondidas.
No dia 6 de
outubro, pela manhã, houve a presença ostensiva de militares da tropa de choque,
o que ocasionou inclusive na realização de um ato público por parte dos
moradores. Foi relatado também que viaturas da Polícia Militar ficam
constantemente ao redor da ocupação, estacionadas próximas às saídas
estratégicas, e ainda que helicópteros
da Polícia Militar costumam sobrevoar a comunidade, inclusive à noite, provocando um estado de terror nas famílias
que lá estão. Os moradores relatam que
diante dessas situações tem se sentido inseguros, pressionados e amedrontados.
Considerações finais
A partir da
visita realizada e dos relatos e depoimentos colhidos junto aos moradores da
ocupação Rosa Leão, pôde-se constatar que esta é uma comunidade que, embora
conviva precariamente sem qualquer apoio por parte do poder público, tenta
solucionar os problemas de forma autônoma e autogestionada, buscando se estabilizar na terra ocupada com
a qual já se criaram laços de pertença. Cabe ressaltar que as estratégias de
estabilização envolvem um destacado esforço
coletivo de organização do espaço
com respeito a princípios urbanísticos e ambientais. Nesse sentido a manutenção
e recomposição da vegetação em torno dos cursos d'água e nas áreas íngremes, a separação de áreas
destinas ao uso coletivo, a abertura de vias públicas e o cultivo generalizado
de hortas nos quintais caracterizam o projeto coletivo da ocupação Rosa Leão.
Conforme
lembrou uma das coordenadoras da ocupação, as dificuldades existem e são
várias. Contudo, diante delas os moradores buscam a organização coletiva para
poderem continuar ali e fazer da ocupação um bairro da cidade. Para a moradora,
as pessoas estão ali porque não tem outro lugar para morar. Nas suas palavras,
“são as pessoas que realmente precisam que incentivam a gente a lutar.
Há ações judiciais de reintegração de posse em
trâmite, sendo escassas as informações que a comunidade dispõe sobre elas e
sobre os autores das mesmas. Os
moradores convivem com a insegurança e o medo intenso e cotidiano de serem
despejados. Diante dessa perspectiva e da relação afetiva já criada com a área
ocupada - relação que opera-se na
conversão do mero espaço abstrato em lugar - é que se delineia o
maior temor dos integrantes da ocupação: a ameaça da desocupação. Marcada pela
experiência da convivência coletiva e da luta pela moradia, a área passa a
representar para os moradores um espaço de autonomia, coletivamente construído,
e no qual, por meio de ações conjuntas cotidianas, aquelas pessoas passam a se ver como sujeitos
de suas próprias vidas, capazes de intervir ativamente nos processos de
efetivação de seus direitos. É nesse sentido que se coloca a fala de uma
coordenadora que afirma que “Se a desocupação ocorrer o Estado vai ter que
cuidar da saúde dessas pessoas, pois vai ter muita gente caindo na
depressão”.
Belo Horizonte, 07 de outubro de 2013
Jonas Vaz Leandro Leal
Analista
do MP - Sociologia
CIMOS
Luiz
Tarcizio Gonzaga de Oliveira
Oficial
do Ministério Público
CIMOS
Eduarda
Miranda Figueiredo
Digitadora
CAO-DH
Pedro Henrique Murad
Oficial do Ministério Público
CAO-DH
Rayhanna Fernnades de Souza
Oliveira
Estagiária
CAO- DH
Ananda Martins Carvalho
Estagiária
CAO-DH