Ocupação Esperança, em Belo Horizonte, MG: 2.000 famílias na luta por moradia. Dona Maria Imaculada luta e resiste. BH, 02/02/2014.
Gilvander é frei e padre da Ordem dos carmelitas, Doutor em Educação pela FAE/UFMG; bacharel e licenciado em Filosofia pela UFPR, bacharel em Teologia pelo ITESP/SP, mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas, em Minas Gerais.
segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014
Ocupação Esperança, em Belo Horizonte, MG: "É melhor sobreviver debaixo da lona preta do que debaixo do aluguel." BH, 02/02/2014.
Ocupação Esperança, em Belo Horizonte, MG: "É melhor sobreviver debaixo da lona preta do que debaixo do aluguel." BH, 02/02/2014.
domingo, 2 de fevereiro de 2014
Ocupação Rosa Leão, em Belo Horizonte, MG: 1.500 famílias na luta por moradia. Fé libertadora, solidariedade, poesia, cantoria na luta por moradia. Que beleza! BH, 01/02/2014.
Ocupação Rosa Leão, em Belo Horizonte, MG: 1.500 famílias na luta por moradia. Fé libertadora, solidariedade, poesia, cantoria na luta por moradia. Que beleza! BH, 01/02/2014.
quarta-feira, 29 de janeiro de 2014
A arapuca da COPA, artigo de Mauro Santayana, no Jornal HOJE EM DIA, 29/01/2014, p. 17.
A arapuca
da COPA.
Mauro Santayana – santayana.mauro@gmail.com
Pudesse voltar atrás,
e talvez o presidente Lula não tivesse apresentado a candidatura do país à COPA
do Mundo de 2014. Os problemas que o Brasil tem enfrentado são tantos – e a
resistência a tudo que cheire a Panem et Circenses tão grande, nos dia de hoje,
que até a capital da Suécia, uma das nações mais ricas e civilizadas do mundo,
acaba de recusar, com certeza alertada pelo que está ocorrendo em nosso país, o
polêmico privilégio de sediar as Olimpíadas de Inverno de 2022, com a
justificativa de economizar recursos públicos.
Com sua ingenuidade,
lassidão e “salto alto” – pura arrogância e soberba, segundo seus inimigos -, o
PT não percebeu, em 2007, que, em política, toda vitória aparente pode ser
usada contra o vitorioso, até prova em contrário. Que o mel que se oferece hoje
ao povo, pode se transmutar rapidamente em fel, quando não se presta atenção
aos detalhes. E que – como no caminho da Chapeuzinho para a casa de sua avó –
existem mais percalços que se possa imaginar entre o sonho e a realidade.
Considerando-se os
recursos que envolvia, e sua importância estratégica para o governo e a nação,
a Copa deveria ter sido tratada – sem licitação ou terceirização – do planejamento
à execução, como uma operação de Estado.
Se o governo tivesse
constituído uma estatal binacional com a China, aproveitando a experiência de
Pequim na organização das Olimpíadas, os estádios, por exemplo, estariam
prontos em poucos meses e seu custo não seria de um centavo a mais que o
previsto. Na comunicação, a Copa continua sendo tratada como festa e não como
um projeto nacional com investimento, retorno, criação de empregos e renda
definida, e os altos e baixos na relação com a Fifa beiram o improviso.
Enquanto isso, cidadãos
voltam às ruas, e com eles, episódios absurdos e constrangedores, como o protagonizado
por soldados da PM contra um manifestante em São Paulo.
Os soldados
envolvidos poderiam alegar que estavam sendo ameaçados, se estivessem correndo
do rapaz – como foi o caso do coronel agredido por manifestantes em junho – e não
o contrário.
Cercado por homens
fardados, armados e perigosos, que o perseguiam, com a evidente intenção de agredi-lo,
e – como se viu pelo vídeo – provavelmente, matá-lo, era o rapaz – mesmo que
estivesse portando um estilete – que estava em situação de legítima defesa, e
não os soldados. Nunca é demais repetir, enganam-se aqueles que pensam que os
protestos conta a Copa irão beneficiar, de alguma forma, a oposição.
Primeiro, porque nos
estados que comanda e que sediarão jogos, a oposição – a exemplo do próprio
governo – virou vidraça para as pedras – que não possuem rumo certo ou filiação
partidária – da ala mais radical dos manifestantes.
E, também, porque a
oposição não pode fingir apoiar os “anti-Copa”, enquanto sua polícia persegue e
acua, agride, ataca e atira em quem protesta contra o evento, como vimos em São
Paulo.
Obs.: Texto publicado no Jornal HOJE EM DIA,
29/01/2014, Opinião, p. 17.
segunda-feira, 27 de janeiro de 2014
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), teimosas flores de mandacaru. Artigo de frei Gilvander Moreira. BH, 27/01/2014.
Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs), teimosas flores de mandacaru.
Gilvander
Luís Moreira[1]
Que
beleza espiritual, ética e profética, o 13º Intereclesial das CEBs –
Comunidades Eclesiais de Base -, na Diocese de Crato, no Ceará, em cinco
cidades – Juazeiro do Norte, Crato, Barbalha, Caririaçu e Missão Velha -, de 7
a 11 de janeiro de 2014, com o tema “Justiça e Profecia a serviço da vida” e o
lema “CEBs romeiras do reino no campo e na cidade.” Participaram mais de 5 mil
pessoas, entre as quais, leigos/as, freiras, freis, padres e bispos, 4.065
representantes de CEBs do Brasil, dezenas de convidados internacionais, mais de
mil pessoas nas equipes de serviços. O povo ficou hospedado nas casas de mais
de 2 mil famílias.
Foi
inspirador andar nas terras de Padre Cícero, do beato Zé Lourenço e da beata
Maria de Araújo; e experimentar a religiosidade do povo, a acolhida, o sorriso,
a criatividade infinita e a resistência inquebrantável do povo do cariri,
região do “coração
alegre e forte do Nordeste”.
De
1975 a 2014 perfazem 39 anos de intereclesiais das CEBs. Quase 40 anos de
caminhada libertadora das Comunidades Eclesiais de Base, essas sementeiras de
movimentos sociais populares, realizando encontros paroquiais, diocesanos,
estaduais e “nacionais”. Como romeiras do reino do Deus da vida, sob a luz e o incentivo
do papa Francisco, com a exortação apostólica Alegria do Evangelho, as CEBs
brasileiras podem estar diante do rio Jordão, após os muitos anos de deserto
sob os pontificados de João Paulo II com início em 1978 e Bento XVI que o
sucedeu até 2013. Pela 1ª vez na história dos intereclesiais de CEBs, o papa
enviou uma mensagem animadora aos 4.065 representantes de CEBs reunidos neste
13º Intereclesial. Disse Francisco, na Mensagem: “Como
lembrava o Documento de Aparecida, as CEBs são um instrumento que permite ao
povo “chegar a um conhecimento maior da Palavra de Deus, ao compromisso social
em nome do Evangelho, ao surgimento de novos serviços leigos e à educação da fé
dos adultos (D.A, n.178). As Comunidades de Base trazem um novo ardor
evangelizador e uma capacidade de diálogo com o mundo que renovam a Igreja.”
O grito maior do 13º Intereclesial das CEBs foi por
Justiça e Profecia a serviço da vida. Que a justiça de vocês seja maior do que
a justiça dos capitalistas, dos fundamentalistas, dos proselitistas, dos
adeptos do ídolo capital, diria Mateus nos dias de hoje. “Não deixe morrer a
profecia”, alertava dom Hélder Câmara. É hora de resgatarmos e sermos, na
prática, encarnação das três eloquentes metáforas do Evangelho: ser luz no
mundo das relações e instituições humanas, luz que revele as trevas do mercado
idolatrado, do agronegócio que envenena a comida do povo com agrotóxico e fere
de morte a nossa mãe Terra e toda a biodiversidade. Ser sal na comida, isto é,
em tudo aquilo que alimenta a vida do povo a partir dos injustiçados. Evitar
que as podridões da democracia representativa, do Estado, de pessoas alienadas
e de segmentos de igrejas falsifiquem o evangelho do galileu de Nazaré. Ser o
fermento nas massas das cidades empresas e dos campos do agronegócio, eis a
missão profética das CEBs atualmente.
É hora de assumirmos compromisso com a herança
espiritual e profética dos mártires das Comunidades Eclesiais de Base, tais
como “Zé Maria, assassinado com oito tiros,
animador da CEB de Limoeiro do Norte, CE, na Chapada do Apodi, presidente da
Associação dos trabalhadores rurais, que denunciam as intoxicações de
trabalhadores e até de crianças e a poluição provocada pelas nuvens de
agrotóxico despejadas pelos aviões das produtoras de frutas, sobre os abacaxis,
as mangas e as bananas, sobre o açude, o campo de bola e a escola, seguindo o
capricho dos ventos...”[2]
É hora de retomar a práxis libertadora da fé
cristã, sob a reflexão da Teologia da Libertação. É hora de reconhecer e fortalecer
as CEBs ecológicas da/na Amazônia, as CEBs da Convivência com o semiárido do/no
Nordeste, as CEBs urbanas das periferias das metrópoles brasileiras, as CEBs
abertas ao ecumenismo e os vários outros tipos de CEBs existentes dentro e fora
do Brasil. É hora de pedir perdão ao povo das religiões de matriz afro-brasileiras,
tais como o candomblé e a umbanda, ainda, injustamente discriminados por
posturas moralistas e fundamentalistas de certos católicos, evangélicos e (neo)
pentecostalistas.
Libertador
será o dia em que pela nossa forma de viver e conviver possamos gritar, sem
nenhum ruído, que somos terra, que somos água, que somos negros, índios,
mulheres, homossexuais, deficientes, sem-terra, sem-casa, pessoas em situação
de rua, catadores de materiais recicláveis, presos, candomblecistas e
umbandistas. Isto porque somos filhos/as do mesmo Pai, Deus, mistério de amor
que nos envolve, e da mesma mãe, a terra. Somos todos esses, porque “mexer com qualquer
um desses grupos é mexer conosco”. A causa/luta deles deve ser a nossa
causa/luta. Nada nos deve ser indiferente. Ser luz, sal e fermento, eis nossa
tarefa.
Os 72 bispos presentes no 13º intereclesial, em uma
mensagem às CEBs e ao povo, disseram: “Muito
nos sensibilizaram os gritos dos excluídos que ecoaram neste 13º intereclesial:
gritos de mulheres e jovens que sofrem com a violência e de tantas pessoas que
sofrem as consequências do agronegócio, do desmatamento, da construção de
hidrelétricas, da mineração, das obras da copa do mundo, da seca prolongada no
nordeste, do tráfico humano, do trabalho escravo, das drogas, da falta de
planejamento urbano que beneficie os bairros pobres; de um atendimento digno
para a saúde...”
Os 72 bispos, 72 verdadeiros discípulos de Jesus de
Nazaré e do seu Evangelho, nos dias atuais, disseram ainda: “Reconhecemos nas CEBs o jeito antigo e novo
da Igreja ser, muito nos alegraram os sinais de profecia e de esperança
presentes na Igreja e na sociedade, dos quais as CEBs se fazem sujeito. Que não
se cansem de ser rosto da Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído
pelas estradas e não de uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se
agarrar às próprias seguranças, como nos exorta o querido Papa Francisco (cf.
EG 49). Para tanto, reafirmamos, junto às Cebs, nosso empenho e compromisso de
acompanhar, formar e contribuir na vivência de uma fé comprometida com a
justiça e a profecia, alimentada pela Palavra de Deus, pelos sacramentos, numa
Igreja missionária toda ministerial que valoriza e promove a vocação e a missão
dos cristãos leigos (as), na comunhão.”
Sensibilizou a muitos o grito dado por algumas mães
de santo do candomblé que só tiveram acesso ao microfone, na Celebração
Ecumênica, após insistirem para falar. Protestaram: “Saudamos a todos/as os presentes, mas viemos aqui para denunciar que os
católicos da região do cariri estão nos discriminando. Sofremos muito com isso.”
Ficou no ar o clamor. Feliz quem ouvir.
Representantes da CEB da comunidade do Jardim
Fortim, no Litoral Leste do Estado do Ceará, nos disseram: “Somos Pescadores e
Pescadoras e lutamos para defender o nosso território. Desde 2012 realiza em
todo o Brasil uma Campanha pela regularização do Território das Comunidades
Tradicionais Pesqueiras. Essa campanha foi lançada em Brasília (DF), em
Junho/2012 e busca a assinatura de 1% dos eleitores brasileiros, por isso temos
que conseguir mais de 1.406.466 assinaturas. Queremos que exista (e seja
cumprida) uma lei de iniciativa popular que proponha a regularização do
território das comunidades tradicionais pesqueiras (Depoimento de Maninha,
Maria Eliene).”
Irmã Tea Frigerio, assessora das CEBs e membro da
equipe de reflexão do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI), destacou a
importância da realização do Intereclesial na terra do padre Cícero. “Aqui se
encontram duas realidades fortemente significativas para a Igreja do Brasil: a
religiosidade popular que sustenta a vida do povo nos seus sofrimentos e as
CEBs, mandacaru que resiste como modo de ser Igreja.” “Esses dois braços do povo
brasileiro expressam duas maneira de viver a fé: a Romaria de padre Cícero dá
voz à fé do povo pobre e excluído e as CEBs que fazem memória de um jeito
diferente de ser Igreja. Estes dois braços se encontraram para se fortalecer e
se enriquecer reciprocamente”, afirmou Tea.
Frei Betto, lembrou que “as CEBs, quando estavam
muito vivas e apoiadas pela hierarquia da Igreja, nos anos 70 e 80, provocaram
o crescimento de fiéis católicos. Depois que houve a vaticanização da Igreja na
América Latina, com João Paulo II, as CEBs se fragilizaram, a Igreja
começou a se encher de movimentos e os fiéis começaram a migrar para as igrejas
evangélicas.” “Está provado historicamente que quanto mais CEBs, mais fiéis e
quanto menos CEBs, menos fiéis”, complementou frei Betto.
Irmã Anette Dumoulin, religiosa belga
que se dedica a acolher os romeiros em Juazeiro do Norte, defendeu uma nova
formação dos seminaristas e padres. Segundo ela, “se o padre não aceita
partilhar como pastor no meio do seu povo, as CEBs vão continuar sofrendo
muito. Nós precisamos transformar a formação dos seminaristas para ter novos
tipos de padres, que saibam lavar os pés de suas ovelhas como Jesus fez. Se os
seminários continuam a formar padres que são chefes, donos, nós não vamos
conseguir que as CEBs vivam a realidade do novo céu e de uma nova terra”,
argumenta.
Dom Fernando Panico, bispo de Crato,
anfitrião do 13º Intereclesial, bradou na celebração de abertura do 13º
Intereclesial: “As CEBs são o jeito da Igreja ser. As CEBs são o jeito
“normal” da Igreja ser.”
O índio Anastácio profetizou: “Roubaram nossos frutos,
arrancaram nossas folhas, cortaram nossos galhos, queimaram nossos troncos, mas
não deixamos arrancar nossas raízes.”
O
Nordeste tem vivido nos últimos anos uma das maiores estiagens e as
conseqüências desta seca são muitas na vida do povo empobrecido, sobretudo os
camponeses e os que têm na roça a única alternativa de sobrevivência. Mas, uma
coisa é certa: basta que a chuva caia um pouco para o mandacaru florir e
revelar em uma ousada profecia que a vida é mais forte que a morte. Como as
flores dos mandacarus do Nordeste, o povo presente no 13º Intereclesial das CEBs sinalizou para o Brasil e
para o mundo que o projeto de Jesus Cristo, jovem camponês da periferia, profeta
mártir de Nazaré, está vivo no meio dos pobres.
Gravamos e disponibilizamos em www.youtube.com mais de 7 horas de momentos
marcantes do 13º Intereclesial. Quem quiser assistir, busque no www.youtube.com “XIII Intereclesial das CEBs, em
Juazeiro do Norte, CE”.
Belo Horizonte, MG, Brasil, 27 de janeiro de 2014.
Frei Gilvander – www.gilvander.org.br
– www.freigilvander.blogspot.com.br
No facebook: Gilvander Moreira
[1]
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; natural
de Rio Paranaíba, MG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em
Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto
Bíblico de Roma, Itália; doutorando em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT
(Comissão Pastoral da Terra), CEBI (Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos), SAB
(Serviço de Animação Bíblica) e Via Campesina; conselheiro do Conselho Estadual
dos Direitos Humanos de Minas Gerais – CONEDH; Além de acompanhar pastoralmente
a luta pela terra no Estado de MG, acompanha, nos últimos 10 anos, a luta por
moradia em BH e várias outras cidades de MG; e-mail: gilvanderlm@gmail.com –
www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br -
www.twitter.com/gilvanderluis - Facebook: Gilvander Moreira
[2]
VV.AA. Justiça e Profecia a serviço da
vida, Texto-base do 13º Intereclesial, CEBs, Romeiras do Reino no Campo e
na Cidade, 7 a 11/01/2014, p. 343.
sexta-feira, 24 de janeiro de 2014
Jesus de Nazaré: jovem camponês da periferia, mártir e portador de uma pedagogia emancipatória. Artigo de frei Gilvander Moreira. BH, 24/01/2014.
Jesus
de Nazaré: jovem camponês da periferia,
mártir e portador de uma pedagogia emancipatória.
Gilvander Luís Moreira[1]
“O camponês de Nazaré, nessa luta nos
reuniu. Vem conosco caminhar, pela Terra Livre Brasil...” (Hino do 3º Congresso da PJR)
“Jovem da roça
também tem valor!” (Grito da PJR desde 1985.)
1
- A partir da roça, do campo.
Nasci na roça, no
campo. Fiz muitos calos nas mãos no cabo da enxada tocando roça à meia ao lado
do papai José Moreira. Na hora da colheita, quando via o fazendeiro levar no
caminhão a metade da nossa safra e quase toda a outra metade também, porque
contraíamos dívida na sede da fazenda onde comprávamos, do plantio à colheita,
açúcar, café, sal, remédios etc, dentro de mim, ainda criança, gritava uma voz:
“Deus não quer isso. Isso não é justo.”
Trago na minha memória essa indignação diante da opressão do latifúndio e dos
latifundiários. Saí da roça, mas a roça não saiu de mim. Meu sacerdócio e meu
jeito de ser frade carmelita estão intimamente conectados com a luta dos camponeses
por terra, pão e dignidade.
2
- Juventude camponesa em Recife.
O III Congresso da
Pastoral da Juventude Rural (PJR – www.pjr.org.br), em Recife, PE, de 14 a 19
de janeiro de 2014, reuniu mais de 1.500 jovens camponeses de todo o Brasil.
Além das reflexões, troca de experiência, convivência, noites culturais etc, foi
momento propício também para beber da herança espiritual profética de frei
Caneca, padre Ibiapina, Padre Cícero, beato Zé Lourenço, padre Henrique, frei
Jessé, Dom Hélder Câmara, Francisco Julião, cacique Chicão Xucuru, dentre
tantos outros lutadores do povo. Frei Jessé e padre Henrique foram
homenageados. Frei Cícero dos Santos Jessé (1954 a 1995), uma vida a serviço da
Juventude Camponesa. Frei Jessé foi assessor da PJR por vários anos. Ao adoecer
dizia: “Não deixem de fazer nada porque
estou ausente.” Padre Antonio Henrique Pereira Neto (1940 a 1969), mártir
da juventude que ousa viver a sua fé no mundo. Chamado por dom Hélder, padre
Henrique, além de secretário do Dom, foi também assessor da Juventude. Chamado
de subversivo, em 26 de maio de 1969, foi torturado e assassinado pela ditadura
civil-empresarial-militar. Antes de completar 29 anos tombou por sua opção
pelos pobres e pelos jovens, mas frei Jessé e padre Henrique, assim como todos
os mártires da caminhada, continuam conosco, presente, presente, presente.
A cidade de Recife nos
convida a recordar: a) frei Caneca, o carmelita da Confederação do Equador, fuzilado
dia 13 de janeiro de 1824, após ter sido preso em 1817 e ter ficado vários anos
no cárcere, em Salvador, Bahia. Frei Caneca, ao lado de outros 50 padres,
esteve à frente da Confederação do Equador que lutava pela independência do
Pernambuco, contra a violência da monarquia. Lutava por vida e liberdade para
todos; b) Dom Hélder Câmara, o dom do amor, da paz e da justiça; d) Pernambuco
também foi palco das Ligas Camponesas que, sob a liderança de tantos como o
advogado Francisco Julião, se espalharam pelo país, com mais de 2.000 já
organizadas quando se instaurou a ditadura. As Ligas camponesas lutando por
reforma agrária na lei ou na marra.
3
– Deus na história, o divino no humano.
O Deus do cristianismo é um Deus da história,
quer dizer, age nas entranhas dos fatos e dos acontecimentos. O Deus da vida,
mistério de infinito amor, não faz mágica. Desde que Deus, por infinito amor à
humanidade, encarnou-se, o divino está no humano.
O Concílio de Calcedônia, no ano de 451,
reconheceu Jesus Cristo com “natureza” divina e humana. O
apóstolo Paulo reconhece que Jesus é o Cristo, filho de Deus, mas “nascido de
mulher” (Gal 4,4), ou seja, humano como nós desenvolveu seu infinito potencial
de humanidade. “Jesus, de tão humano, se tornou divino,” dizia o papa João
XXIII.
“Não é ele o filho de Maria e José, o carpinteiro (Mt
13,55)?”. Progressivamente, na Galileia, Samaria
e Judéia, Jesus se revela, à primeira vista, em aparentes contradições, mas, no
fundo, com tal equilíbrio que chama a atenção de todos. Assim, ele testemunha
que Deus é mais interior a nós do que imaginamos. A mística “encarnatória”
revela a pessoa humanamente divina e divinamente humana. “Quem me vê, vê o
Pai (Jo
14,9)”.
Jesus, antes de se tornar mestre, foi
discípulo, mas como mestre continuou aprendendo. Antes de ensinar, aprendeu
muito com muitos: com Maria e José, com o povo da sinagoga, com os vizinhos,
amigos, com os acontecimentos históricos, com a natureza etc.
Somos discípulos/as de um jovem camponês,
da periferia, que foi condenado à pena de morte pelos podres poderes da política,
da economia e da religião. Somos discípulos de um mártir. Feliz quem não
esquece a vida, o testemunho e o ensinamento dos mártires.
Jesus compreende a mulher acusada de
adultério, mas ferve o sangue de ira santa contra os vendilhões do templo.
4 – Jesus, a
Juventude Camponesa e a PJR.
Em sintonia com a Campanha da
Fraternidade de 2013 - Fraternidade e Juventude -, como instrumento inspirador
para a Juventude Camponesa e para a Pastoral da Juventude Rural, apresentamos
Jesus de Nazaré, o jovem de Nazaré que se tornou Cristo, messias, filho de Deus.
Jovem, camponês, da periferia, Jesus, no meio de muitos jovens, apresenta uma
Pedagogia que emancipa e liberta. Hoje, os/as jovens estão sendo
marginalizados, violentados em sua dignidade, milhares assassinados anualmente.
As prisões estão abarrotadas de jovens das periferias. Os modelos de educação
hegemônicos mais fazem adestramento, capacitação profissional para encaixar os
jovens na máquina mortífera que é o mercado endeusado. No meio dessa realidade
conflituosa, faz bem nos inspirar na pedagogia de Jesus, um jovem camponês da
periferia, que humaniza pelo seu ensinamento e testemunho.
5 – Treze
características da pedagogia emancipatória de Jesus de Nazaré.
Jesus não nos salva automaticamente, mas
testemunha um jeito de viver, melhor dizendo, um jeito de conviver que é libertador
e salvador. Vital é prestarmos atenção no jeito e como Jesus ensina e atua. Faz
bem prestarmos atenção no processo pedagógico efetivado por Jesus. Trata-se de
uma Pedagogia emancipatória com muitas características, entre as quais,
destacamos treze.
5.1) A
partir da periferia. O Evangelho de
Lucas interpreta a vida, ações e ensinamentos de Jesus ao longo de uma grande
caminhada da Galileia até Jerusalém, ou seja, da periferia geográfica e social
ao centro econômico, político, cultural e religioso da Palestina. A Palavra, em
Lucas, é a palavra de um leigo, de um camponês galileu, “alguém de Nazaré”,
pessoa simples, pequena, alguém que vem da grande tribulação. Não é palavra de
sumo sacerdote, nem do poder.
5.2)
Prioriza a formação. Nessa grande
viagem, subida para Jerusalém, Jesus prioriza a formação dos discípulos e
discípulas. Ele percebe que não tem mais aquela adesão incondicional da
primeira hora. Jesus descobriu que para consolar os aflitos era necessário
também incomodar os acomodados e denunciar pessoas e estruturas injustas e
corruptas. Assim, o jovem de Nazaré começou a perder apoio popular. Era
necessário caprichar na formação de um grupo menor que pudesse garantir os
enfrentamentos que se avolumavam. Jesus sabia muito bem que em Jerusalém estava
o centro dos poderes religioso, econômico, político e judiciário. Lá travaria o
maior embate.
5.3) Não foge
do combate. O Evangelho de Lucas diz:
Jesus, cheio do Espírito, em uma proposta periférica alternativa, vai, em uma
caminhada, de Nazaré a Jerusalém; ou seja, vai da periferia para o centro,
caminhando no Espírito. Em Jerusalém acontece um confronto entre o projeto de
Jesus e o projeto oficial. Este tenta matar o projeto de Jesus (e de seu
movimento) condenando-o à morte na cruz. Mas o Espírito é mais forte que a
morte. Jesus ressuscita. No final do Evangelho de Lucas, Jesus diz aos
discípulos: “Permaneçam em Jerusalém até
a vinda do Espírito Santo” (Lc 24,49).
5.4) Sempre
em movimento. Seguir Jesus exige uma
dinâmica de permanente movimento. A sociedade capitalista leva-nos a buscar
segurança, o que é uma farsa. É hora de aprendermos a seguir Jesus de forma
humilde e vulnerável, porém mais autêntica e real. Isso não quer dizer distrair
com costumes e obrigações que provêm do passado, mas não ajudam a construir uma
sociedade justa, solidária e sustentável ecologicamente.
5.5) Anda na
contramão. Seguir Jesus implica andar
na contramão, remar contra a correnteza de tantos fundamentalismos e da
idolatria do consumismo. Exige também rebeldia, coragem, audácia diante de
costumes que entortam o queixo e de modas que aniquilam o infinito potencial
humano existente em nós.
5.6) Sabe a hora de conviver e a hora de lutar. O Evangelho de Lucas apresenta dois envios de
discípulos para a missão. No primeiro envio (Lc 10,1-11), Jesus indicou aos
discípulos que fossem despojados e desarmados para o campo de missão. Assim
deve ser todo início de missão: conhecer, conviver, estabelecer amizades, cativar,
assumir a cultura do outro, tornar-se um/a irmã/ão entre as/os irmã/ãos para
que seja reconhecido como “um dos nossos”. No segundo envio (Lc 22,35-38), em
hora de luta e combate, Jesus sugere que os discípulos devem ir preparados para
a resistência. Por isso “pegar bolsa e
sacola, uma espada – duas no máximo.” (Lc 22,36-38). Durante a evolução da
missão, chega a hora em que não basta esbanjar ternura, graciosidade e
solidariedade. É preciso partir para a luta, pois as injustiças precisam ser
denunciadas. Ao tomar partido e “dar nomes aos bois” irrompem-se as divisões e
desigualdades existentes na realidade. Os incomodados tendem naturalmente a
querer calar quem os está incomodando. É a hora das perseguições que exigem
resistência. Confira a trajetória de vida dos/as mártires da caminhada: Padre
Josimo, Padre Ezequial Ramin, Chico Mendes, Margarida Alves, Sem Terra de
Eldorado dos Carajás, Irmã Dorothy, Santo Dias, Chicao Xucuru, Padre Gabriel,
padre Henrique etc.
5.7) Resiste, o que não é violência, mas legítima defesa. Diante de qualquer tirania e de um Estado
violentador, vassalo do sistema capitalista que sempre tritura vidas e pratica
injustiças, é dever das pessoas cristãs resistirem contras as opressões
perpetradas contra os empobrecidos, os preferidos de Jesus. Lucas, em Lc
22,35-38, sugere desobediência civil – econômica, política e religiosa. Em uma
sociedade desigual, esse é “outro caminho” a ser seguido (cf. Mt 2,12) por nós,
discípulos e discípulas de Jesus, o rebelde de Nazaré.
5.8) Não trai sua origem. Jesus, o jovem de Nazaré, se tornou
Cristo, filho de Deus. Como camponês, deve ter feito muitos calos nas mãos, na
enxada e na carpintaria, ao lado de seu pai José. Os evangelhos fazem questão
de dizer que Jesus nasceu em Belém, (em hebraico, “casa do pão” para todos),
cidade pequena do interior. “És tu Belém
a menor entre todas as cidades, mas é de ti que virá o salvador”, diz o
evangelho de Mateus (Mt 2,6), resgatando a profecia de Miquéias (Miq 5,1). Segundo
Lucas, Jesus inicia sua missão pública
em Nazaré, sua terra de origem, em uma sinagoga, onde aprendeu muita coisa
libertadora. Jesus
se orgulhava de ser jovem camponês. Valorizava a cultura camponesa. Percebia
que a cidade, muitas vezes, mata os profetas, mata os jovens, como o jovem de
Naim (Lc 7,11-17).
5.9) Pedagogia
da partilha de pães, que liberta e emancipa. A fome era um
problema tão sério na vida dos primeiros cristãos e cristãs, que os quatro
evangelhos da Bíblia relatam Jesus partilhando pães e saciando a fome do povo.[2]
É óbvio que não devemos historicizar os relatos de partilha de pães como se
tivessem acontecido tal como descrito. Os evangelhos foram escritos de quarenta
a setenta anos depois. Logo, são interpretações teológicas que querem ajudar as
primeiras comunidades a resgatar o ensinamento e a práxis original do jovem galileu. Não podemos também restringir o sentido
espiritual da partilha dos pães a uma interpretação eucarística, como se a fome
de pão se saciasse pelo pão partilhado na eucaristia. Isso seria
espiritualização do texto. Eucaristia, celebrada em profunda sintonia com as
agruras da vida, é uma das fontes que sacia a fome de Deus, mas as narrativas
das partilhas de pães têm como finalidade inspirar solução radical para um
problema real e concreto: a fome de pão.
A
beleza espiritual das narrativas de partilha de pães – o correto é partilha de
pães e não multiplicação de pães - está no processo seguido: uma série de
passos articulados e entrelaçados que constituem um processo libertador. O
milagre não está aqui ou ali, mas no processo todo. Ei-lo em várias
características:
5.10.1) Cidade, lugar de violência?
O evangelho de Mateus mostra que o povo faminto “vem das cidades”. As cidades,
ao invés de serem locais de exercício da cidadania, se tornaram espaços de
exclusão e de violência sobre os corpos humanos. Faz bem recordar que Deus criou – e
continua criando -, nas ondas da evolução, tudo “em seis dias e no sétimo dia descansou.” Conta-se que alguém teria
perguntado a Deus porque ele resolveu descansar após o sexto dia. Deus teria
dito que já tinha criado tudo com muito amor e para o bem da humanidade e de
toda a biodiversidade. Quando viu que faltava criar a cidade, o Deus criador
concluiu que era melhor descansar.
5.10.2) Ir para o meio dos excluídos e injustiçados.
“Jesus atravessa para a outra margem do
mar da Galileia” (Jo 6,1), entra no mundo dos gentios, dos pagãos, dos
impuros, enfim, dos excluídos e injustiçados. Jesus não fica no mundo dos
incluídos, mas estabelece comunicação efetiva e afetiva entre os dois mundos, o
dos incluídos e o dos excluídos. Assim, tabus e preconceitos desmoronam-se.
5.10.3) Nunca perder a capacidade de se comover e de se
indignar. Profundamente comovido, porque “os pobres estão como ovelhas sem pastor” (Mc 6,34), Jesus percebe
que os governantes e líderes da sociedade não estavam sendo libertadores, mas
estavam colocando grandes fardos pesados nas costas do povo. Com olhar altivo e
penetrante, Jesus vê uma grande multidão de famintos que vem ao seu encontro,
só no Brasil são milhões de pessoas que têm os corpos implodidos pela bomba
silenciosa da fome ou da má alimentação.
5.10.4) Postura crítica. Jesus não
sentiu medo dos pobres, encarou-os e procura superar a fome que os golpeava e
humilhava. Apareceram dois projetos para resgatar a cidadania do povo faminto.
O primeiro foi apresentado pelo discípulo Filipe: “Onde vamos comprar pão para alimentar tanta gente?” (Jo 6,5). No
mesmo tom, outros discípulos tentavam lavar as mãos: “Despede as multidões para que possam ir aos povoados comprar alimento.”
(Mt 14,15). Filipe está dentro do mercado e pensa a partir do mercado. Está
pensando que o mercado é um deus capaz de salvar as pessoas. Cheio de boas
intenções, Filipe não percebe que está enjaulado na idolatria do mercado.
5.10.5) Postura criativa. O segundo
projeto é posto à baila por André, outro discípulo de Jesus, que, mesmo se
sentindo fraco, acaba revelando: “Eis um
menino com cinco pães e dois peixes” (Jo 6,9). Jesus acorda nos discípulos
e discípulas a responsabilidade social, ao dizer: “Vocês mesmos devem alimentar os famintos” (Mt 14,16). Jesus quer
mãos à obra. Nada de desculpas esfarrapadas e racionalizações que tranquilizam
consciências. Jesus pulou de alegria e, abraçando o projeto que vem de André
(em grego, andros = humano), anima o
povo a “sentar na grama” (Jo 6,10).
Aqui aparecem duas características fundamentais do processo protagonizado por
Jesus para levar o povo da exclusão à cidadania, da injustiça à justiça. Jesus
convida o povo para se sentar. Por quê? Na sociedade escravocrata do império
romano somente as pessoas livres, cidadãs, podiam comer sentadas. Os escravos
deviam comer de pé, pois não podiam perder tempo de trabalho. Deviam engolir rápido
e retomar o serviço árduo. Um terço da população era escrava e outro terço, semiescrava.
Logo, quando Jesus inspira o povo para sentar-se, ele está, em outros termos,
defendendo que os escravos têm direitos e devem ser tratados como cidadãos.
5.10.6) Organização é o segredo da pedagogia de Jesus.
Jesus estimula a organização dos famintos. “Sentem-se,
em grupos de cem, de cinquenta, ...”
(Mc 6,40). Assim, Jesus e os primeiros cristãos e cristãs nos inspiram que o
problema da fome e todos os outros problemas sociais só serão resolvidos, de
forma justa, quando o povo marginalizado e injustiçado se organizar e partir
para lutas coletivas.
5.10.7) Gratidão. “Jesus
agradeceu a Deus...” A dimensão da mística foi valorizada. A luz e a força
divinas permeiam e perpassam os processos de luta. Faz bem reconhecer isso.
Vamos continuar cantando com Manelão - cantor e compositor das Comunidades
Eclesiais de Base que já partilha vida em plenitude - cantos revolucionários,
tal como: É madrugada, levanta povo!
/ A luz do dia vai nascer de novo! / Rompe as cadeias, abre o coração,/ Vamos dar as mãos, já é o reino do povo!
/ O povo agora é Senhor da história,
/ Somos rebentos desta nova era. / A liberdade, a fraternidade. / São as bandeiras desta nova terra!
5.10.8) Não ser paternalista.
Quem reparte o pão não é Jesus, mas os discípulos. Jesus provoca a
solidariedade conclamando para a organização dos marginalizados como meio para
se chegar à cidadania de e para todos. Dar pão a quem tem fome sem se perguntar
por que tantos passam fome é ser cúmplice do capital que rouba o pão da boca da
maioria.
5.10.9) Reaproveitar. “Recolham os pedaços que sobraram, para não se desperdiçar nada.”
(Jo 6,12). Economia que evita o desperdício. Quase 1/3 da alimentação produzida
é jogada no lixo, enquanto tantos passam fome. É hora de reduzir o consumo.
Reaproveitar, reciclar. Nada deve se perder, mas ser tudo transformado. Em uma
casa ecológica tudo é reaproveitado, inclusive as fezes são consideradas
recursos, pois viram adubo fértil e orgânico. Envolvidos pela crise ecológica,
com aquecimento e escurecimento global é hora de reduzir, reutilizar, reciclar
reaproveitar, recusar, recuperar e repensar.
5.11) Participar da vida pública transformando a
sociedade (Lc 10,38-42).
Seguindo para Jerusalém, Jesus entra na casa de duas mulheres, Marta e
Maria (Lc 10,38-42). Tradicionalmente, a narrativa de Lc 10,38-42 tem sido
interpretada como uma oposição entre vida ativa e vida contemplativa. Ao longo
dos séculos e ainda hoje, muitos usam e abusam de Lc 10,38-42 para justificar a
vida contemplativa em detrimento da vida ativa, mas essa interpretação não tem
consistência exegético-bíblica. Não há nenhuma referência no texto que diga que
Jesus estivesse rezando ou orando com Maria. Para entender bem Lc 10,38-42 é
preciso considerar algumas coisas.
Primeiro, nas
duas perícopes anteriores, Lucas revelou uma oposição, um contraste: humildes X
entendidos (Lc 10,21-24) e samaritano X sacerdote e levita (Lc 10,29-37). Em Lc
10,38-42 também há uma oposição, um contraste: Maria X Marta. A postura de
Maria é elogiada por Jesus e a postura de Marta é censurada: “Marta, Marta! ... uma só coisa é necessária...”
(Lc 10,41-42).
Segundo,
precisamos considerar a situação das mulheres na época de Jesus e do evangelho
de Lucas (anos 80/90 do 1º século). As mulheres eram - não todas, é óbvio -
propriedades do pai e, depois de casadas, dos maridos; não participavam da vida
pública, deviam ficar restritas ao lar; não aprendiam a ler e a escrever; não
recebiam os ensinamentos da Torá, a Lei. Encontra-se escrito no
Talmud dos Judeus (Escritura não-sagrada): “Que
as palavras da Torá sejam queimadas, mas não transmitidas às mulheres”. A
oração que muitos judeus piedosos rezavam dizia: “Louvado sejas Deus por não ter-me feito mulher!” O machismo e o
patriarcalismo campeavam.
Ao sentar-se
aos pés de Jesus, para ouvir-lhe os ensinamentos, Maria reivindica para si o
direito de ser discípula. Ela reclama para si o direito de ser cidadã no
sentido pleno. “Sentar-se aos pés”
era a atitude dos discípulos dos rabis, os mestres.
Em Lc 10,38-42,
Maria faz desobediência civil e religiosa, pois fica aos pés de Jesus
ouvindo-o. Somente os homens judeus podiam ficar aos pés de um mestre e se
tornarem discípulos. Maria ouve Jesus e, provavelmente, dialoga com Jesus e o
interroga. Assim Maria se torna discípula.
Um judeu entrar
em uma casa onde só havia mulheres também era algo censurável pela sociedade.
Jesus desobedece a essa regra moral e entra na casa de duas mulheres. Assim,
Jesus vai formando seus discípulos e discípulas enquanto caminha para
Jerusalém.
5.12) Ser simples como as pombas e esperto como as
serpentes.
Após uma longa marcha da Galileia a
Jerusalém, da periferia à capital (Lc 9,51-19,27), Jesus e seu movimento estão
às portas de Jerusalém. De forma clandestina, não confessando os verdadeiros
motivos, Jesus e o seu grupo entram em Jerusalém, narra o Evangelho de Lucas
(Lc 19,29-40). De alguma forma deve ter acontecido essa entrada de Jesus em
Jerusalém, provavelmente não tal como narrado pelo evangelho, que tem também um
tom midráxico, ou seja, quer tornar presente e viva uma profecia do passado.
Dois discípulos recebem a tarefa de viabilizar
a entrada na capital, de forma humilde, mas firme e corajosa. Deviam arrumar um
jumentinho – meio de transporte dos pobres -, mas deviam fazer isso
disfarçadamente, de forma “clandestina”. O texto repete o seguinte: “Se alguém
lhes perguntar: “Por que vocês estão desamarrando o jumentinho?”, digam
somente: ‘Porque o Senhor precisa dele’”. A repetição indica a necessidade de
se fazer a preparação da entrada na capital de forma discreta, clandestina,
sutil, sem alarde. Se dissessem toda a estratégia, a entrada em Jerusalém seria
proibida pelas forças de repressão.
Com os “próprios mantos” prepararam o
jumentinho para Jesus montar. Foi com o pouco de cada um/a que a entrada em
Jerusalém foi realizada. A alegria era grande no coração dos discípulos e
discípulas. “Bendito o que vem como rei...”
Viam em Jesus outro modelo de exercer o poder, não mais como dominação, mas
como gerenciamento do bem comum.
Ao ouvir o anúncio dos discípulos – um
novo jeito de exercício do poder – certo tipo de fariseu se incomoda e tenta
sufocar aquele evangelho. Hipocritamente chamam Jesus de mestre, mas querem
domesticá-lo, domá-lo. “Manda que teus
discípulos se calem.”, impunham os que se julgavam salvos e os mais
religiosos. “Manda...!” Dentro do paradigma “mandar-obedecer”, eles são os que
mandam. Não sabem dialogar, mas só impor. “Que se calem!”, gritam. Quem anuncia
a paz como fruto da justiça testemunha fraternidade e luta por justiça, o que
incomoda o status quo opressor. Mas
Jesus, em alto e bom som, com a autoridade de quem vive o que ensina,
profetisa: “Se meus discípulos (profetas)
se calarem, as pedras gritarão.” (Lc 19,40). Esse alerta do galileu virou
refrão de música das Comunidades Eclesiais de Base: “Se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão. Se fecharem uns poucos caminhos, mil trilhas
nascerão... O poder tem raízes na areia, o tempo faz cair. União é a
rocha que o povo usou pra construir...!”
Dia 10 de abril de 1996, milhares de
trabalhadores rurais do MST, em marcha, estavam chegando a 22 capitais do
Brasil. Na chegada a Belo Horizonte, após marcharem de Governador Valadares à
capital mineira, 500 Sem Terra foram bloqueados pela tropa de choque da polícia
militar de Minas Gerais. Vinte Sem Terra foram presos; outros vinte,
hospitalizados. O governador de Minas havia dado ordens para proibir a entrada
do MST em Belo Horizonte, porque três dias após, dia 13 de abril de 1996, a
Fiat faria o lançamento de um novo modelo de automóvel, o Fiat Pálio, na Av. Afonso
Pena, em Belo Horizonte. 700 jornalistas internacionais estariam presentes. Os
gritos do MST por reforma agrária poderiam aparecer na imprensa internacional,
o que seria mosca na sopa. Mesmo reprimidos, conseguimos entrar em Belo
Horizonte no dia seguinte contando com o apoio do povo de BH. Um Sem Terra
disse: “Quando os oprimidos hebreus
tentaram fugir da opressão do imperialismo egípcio tiveram que enfrentar o Mar
Vermelho. Na chegada de Belo Horizonte, um Mar de policiais queria fazer um Mar
Vermelho com nosso sangue. Feriram-nos, mas conseguimos entrar na capital.
Assim foi com Jesus de Nazaré também.”
5.13)
Intransigência diante da opressão econômica e política. Os quatro evangelhos da Bíblia (Mt 21,12-13; Mc 11,15-19; Lc 19,45-46 e Jo
2,13-17) relatam que Jesus, próximo à maior festa judaico-cristã, a Páscoa,
impulsionado por uma ira santa, invadiu o templo de Jerusalém, lugar mais
sagrado do que os templos da idolatria do capital que muitas vezes tem a cruz
de Cristo pendurada em um ponto de destaque. Furioso como todo profeta, ao
descobrir que a instituição tinha transformado o templo em uma espécie de Banco
Central do país + sistema bancário + bolsa de valores, Jesus “fez um chicote de
cordas e expulsou todos do templo, bem como as ovelhas e bois, destinados aos
sacrifícios. Derramou pelo chão as moedas dos cambistas e virou suas mesas. Aos
que vendiam pombas (eram os que diretamente negociavam com os mais pobres
porque os pobres só conseguiam comprar pombos e não bois), Jesus ordenou: “Tirem estas coisas daqui e não façam da casa
do meu Pai uma casa de negócio.” Essa ação de Jesus foi o estopim para sua
condenação à pena de morte, mas Jesus ressuscitou e vive também em milhões de
pessoas que não aceitam nenhuma opressão.
Enfim,
jovens como Jesus de Nazaré, exercitemos pedagogias que libertam e emancipam.
Belo Horizonte, MG, Brasil, 24 de
janeiro de 2014.
Frei Gilvander
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e
bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em
Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma; doutorando em
Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, SAB e Via Campesina; conselheiro
do Conselho Estadual dos Direitos Humanos de Minas Gerais – CONEDH; e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br
– www.gilvander.org.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
- facebook: Gilvander Moreira
[2] Cf. Mt 14,13-21; Mc 6,32-44; Lc 9,10-17 e Jo 6,1-13.
quinta-feira, 23 de janeiro de 2014
Plebiscito Popular sobre o sistema político brasileiro: reforma política, com Ricardo Gebrim, no 3º Congresso da Pastoral da Juventude Rural (PJR), em Recife, dia 18/01/2014 (1a parte).
Plebiscito Popular sobre o sistema político brasileiro: reforma política, com Ricardo Gebrim, no 3º Congresso da Pastoral da Juventude Rural (PJR), em Recife, dia 18/01/2014 (1a parte).
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