domingo, 24 de setembro de 2017

Mateus 20,1-16: parábola dos trabalhadores da vinha, justiça anticapitalista.

Mateus 20,1-16: parábola dos trabalhadores da vinha, justiça anticapitalista.
Por frei Gilvander Luís Moreira[1]


Enquanto tomava café da manhã em uma lanchonete na beira de uma estrada, voltando de um curso bíblico do CEBI na cidade de Coluna, MG, - o assunto tinha sido as Primeiras Comunidades Cristãs e nossa prática cristã -, vi e ouvi em uma TV um integrante da alta hierarquia da igreja católica tecer comentários sobre o Evangelho lido, hoje, dia 24 de setembro de 2017, segundo o calendário litúrgico, salvo exceções, em todas as celebrações da igreja católica. Trata-se do Evangelho de Mateus 20,1-16: a parábola dos trabalhadores da vinha. Achei horrorosa a interpretação feita: fundamentalista, espiritualizante e retirando toda eloqüência do contexto histórico abordado pela parábola. Senti-me impelido a socializar outra interpretação de Mt 20,1-16 na perspectiva das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e das Pastorais Sociais. Ei-la, abaixo.
A parábola narrada em Mateus 20,1-16 é a dos trabalhadores na vinha. Diz que “um pai de família saiu cedo para contratar trabalhadores para sua vinha” (Mt 20,1). Tornou-se dono de uma vinha, mas continuava sendo acima de tudo pai. Começou a contratar trabalhadores por volta das 6 horas da manhã. Contratou outros às 9 horas, outros às 12, às 15 horas, etc. Combinou que pagaria um denário para cada um. À tarde, à busca de mais trabalhadores, observou que muitos ainda continuavam na praça porque ninguém os tinha contratado (Mt 20,7). Os últimos contratados trabalharam apenas uma hora. Como prescreve a Bíblia, ao final do dia de trabalho, o salário deve ser pago (Tiago 5,4). O pai e dono da vinha disse ao seu administrador para pagar um denário para cada um, conforme o combinado, começando pelos últimos. Os contaminados pelo espírito da meritocracia do capitalismo reclamaram: “Não é justo os que trabalharam apenas uma hora receber valor igual a nós que trabalhamos mais” (Mt 20,12). Eis, em síntese, o relato da parábola.
Por que o pai e dono da vinha agiu de forma justa? O dono da vinha disse àqueles que foram contratados para o trabalho às nove horas da manhã: “Vão para minha vinha, e eu lhes pagarei o que for justo” (Mt 20,4). Assim como Noé e José, o pai e dono da vinha da parábola primava por ser justo, mas não justiça legalista do status quo. Segundo a parábola todos recebem igualmente. Os que trabalharam o dia inteiro e os que trabalharam uma hora apenas. Que justiça é essa, que incomoda quem tem o espírito/ideologia do capitalismo na cabeça? Para se entender a parábola, contudo, é necessário prestar atenção ao diálogo de Mt 20,6-7. O dono da vinha pergunta aos trabalhadores que se encontram na praça às cinco horas da tarde: “Por que vocês estão aí o tempo todo sem fazer nada?” E a resposta vem na hora: “Porque ninguém nos contratou”. Desemprego já existia naquela época... Assim como nas cidades há sempre o local onde se podem contratar trabalhadores: um ponto de encontro entre desempregados e quem precisa de trabalhadores, na praça estava quem procurava emprego. Se fossem irresponsáveis, estariam em casa dormindo. Mas se está na praça, significa que estão procurando emprego. Podemos imaginar quem teria sido deixado lá na praça, sem ser contratado: as pessoas enfraquecidas, quem sabe alguns doentes, quem sabe deficientes ou idosos (hoje, diríamos, jovens inexperientes, adultos com idade avançada já sem a força da juventude, homossexuais, negros, analfabetos, os “despreparados para o mercado”, etc)...
Como praticar uma justiça que não reproduza os esquemas de discriminação e marginalização? O pagamento igual justamente vem nessa direção: quem trabalhou menos tem as mesmas necessidades que as demais pessoas! Todos têm família e despesas semelhantes. No Brasil devemos lutar para que todos recebam um salário – renda mínima -, independentemente se estão ou não trabalhando. A radicalidade desta parábola faz pensar em tantas práticas que se apresentam como justas. Em uma sociedade forjada em cima de desigualdades para se conquistar igualdade é preciso tratar de forma desigual os desiguais. Para as comunidades do Evangelho de Mateus o desafio era praticar uma justiça maior: a partir da misericórdia. É o que se define no julgamento decisivo: veja Mt 25,31-46: “Eu estava com fome, nu, preso...”! Será justo quem se comprometer com a causa dos famintos, dos encarcerados, dos injustiçados.
Os ensinamentos de Jesus se distinguem dos ensinamentos dos fariseus ritualistas, dos escribas e saduceus. A justiça do reino de Deus – Deus da vida para todos e tudo - pretende superar aquela dos fariseus, escribas e saduceus, e acolher quem estava sendo injustiçado. Para isso foi necessário romper com esquemas já estabelecidos, formas comuns de se viver e interpretar a Lei. Isso para ser fiel àqueles que as comunidades tinham certeza de que estavam presentes nos pequeninos.
Segundo cálculos de alguns estudiosos, um trabalhador como aquele da parábola de Mt 20,1-16, que recebeu um denário por um dia de trabalho, levaria mais de quinze anos para conseguir juntar um único talento! As parábolas devem ser interpretadas como parábolas, mas não podemos esquecer que são construídas com tijolos da realidade histórica. Por isso as parábolas falam de desemprego (veja Mt 20,1-16) e de trabalho duro (Mt 13,1-9.24-33.47-50).
Enfim, a parábola narrada em Mateus 20,1-16 é mais um dos textos em que as primeiras comunidades cristãs expressam sua compreensão e experiência de justiça, que não mede as pessoas pelo que elas produzem – não se mede por meritocracia -, mas por aquilo de que precisam. Se todas têm necessidades iguais, logo o salário deve ser igual para todos, independentemente se foi contratado antes ou depois, se produziu mais ou menos. Quem está contaminado pelo espírito do capitalismo – sistema satânico e máquina de moer vidas – não consegue entender a parábola dos trabalhadores da vinha: parábola anticapitalista que aponta para a construção de uma sociedade verdadeiramente justa a partir das necessidades das pessoas e não a partir do mérito que muitas vezes é construído à custa do sangue de outros.
Belo Horizonte, MG, 24/9/2017.



[1] Padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutor em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; e-mail: gilvanderlm@gmail.com –www.freigilvander.blogspot.com.br -  www.gilvander.org.br  – www.twitter.com/gilvanderluis  – Facebook: Gilvander Moreira III

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