UMA ODE À INTOLERÂNCIA: AMALOU, ABRASEL/MG E SUAS
ORIENTAÇÕES FRENTE À POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA.
No
dia 02 de outubro de 2013, o jornal O Estado de Minas veiculou matéria
intitulada “Bairro de Lourdes tenta evitar presença de mendigos”, que versa
sobre o posicionamento e ações empreendidas pela Associação dos Moradores do
Bairro de Lourdes (Amalou) e pela Associação de Bares e Restaurantes de Minas
(Abrasel, MG) em relação à presença da população em situação de rua no bairro
de Lourdes, em Belo Horizonte.
As
ações empreendidas com o aval das associações ilustram e reforçam o modo
extremamente agressivo e intolerante por meio do qual a população em situação
de rua é vista e tratada por parte da sociedade brasileira. O título da matéria
já começa com um tom injurioso e difamatório, o que contribui para legitimar as
ações empreendidas por aquelas associações e, ademais, reforçar o preconceito
embutido na palavra mendigo, se considerarmos sua origem etimológica: pessoa
que possui algum defeito e que, por essa razão, é considerada inapta ao
trabalho. A palavra é derivada do latim mendum
e traz consigo a ideia de “defeito”, “vício”, que, inerentes à pessoa,
precisam ser corrigidos, eliminados.
Ao
contrário, tratar essas pessoas enquanto “pessoas em situação de rua”, desloca
o entendimento incitando-nos a lançar luz sobre os processos que os levaram a
viver nas ruas: não se trata de “mendigos”, “vândalos”, “viciados”, enfim, desestabilizadores
da ordem social. Devem ser compreendidos, portanto, os processos por meio dos
quais essas pessoas acabam fazendo das ruas seu espaço de sustento e moradia.
Em
outras palavras, muda-se a forma como se entende a situação dessa população,
não mais os compreendendo a partir de uma visão simplista que considera que
esses se encontram nessa situação “porque querem” ou “porque são vagabundos por
natureza” e outras explicações nessa direção. Trata-se, agora, de considerar os
fenômenos estruturantes que fazem com que determinadas parcelas da população situem-se
às margens da sociedade. Para compreender tais questões, é bom que se tenha
como ponto de partida a seguinte consideração do sociólogo francês Robert
Castel: “o processo através do qual uma sociedade expulsa alguns de seus
membros obriga a que seja interrogado sobre aquilo que, em seu centro,
impulsiona a sua dinâmica. É essa relação escondida do centro para a periferia
que deve ser desvendada: o coração da problemática da exclusão não está lá onde
encontramos os excluídos”.
Dito
o que está por trás, de um lado, da noção de “mendigo” e, de outro, do conceito
de “população em situação de rua”, passemos para os desdobramentos dessa
diferenciação. Mais esguichos de água nos jardins, negar alimentos (inclusive
os que estão prestes a vencer), deixar o lixo na rua no horário mais próximo da
coleta (para evitar que os catadores de materiais recicláveis façam do lixo o
seu sustento) reduzirá a população em situação de rua? Resolverá essa
resistente questão social que é a existência das pessoas em situação de rua? Não.
Tais iniciativas, incentivadas pela Amalou e pela Abrasel-MG, só ilustram a
forma agressiva e intolerante por meio do qual a população em situação de rua é
tratada principalmente nas regiões mais nobres das cidades. Ignoram o
entendimento de que se trata de um público também sujeito de direitos, como
todo ser humano. A postura dessas associações nos faz lembrar que todo direito
posiciona-se no campo dos conflitos, e que, nessas lutas para a garantia de
direitos, costumeiramente, são os interesses das elites políticas e econômicas
e daqueles situados nos estratos superiores de nossa pirâmide social que
prevalecem. Essas ações, incentivadas pela Amalou e pela Abrasel-MG, negam a
perspectiva do direito à cidade, que é um direito coletivo, de todos os
citadinos, e que não há como ignorar a existência de sujeitos específicos,
também produtores das cidades e que fazem parte dela, como é o caso da
população em situação de rua.
Ademais,
foi instituída em 2009, pelo Decreto Federal nº 7.053, a Política Nacional para
a População em Situação de Rua, que estabelece diretrizes e ações para a
construção de processos de saída das ruas. No nosso entendimento, qualquer
pessoa ou grupo de pessoas que queira se organizar junto das pessoas em
situação de rua deve o fazer para exercer sua cidadania no sentido de exigir a
efetivação de políticas públicas estruturantes e intersetoriais para essas
pessoas. E, para além da cidadania, faz-se urgente resgatar, em nossas ações
individuais e coletivas, a dimensão ética que passa, necessariamente, pelo
respeito ao outro, independentemente de sua condição social, nele reconhecendo
um ser humano, detentor de direitos e de dignidade.
Reiterando,
não há como ignorar os conflitos, os processos de produção e reprodução de
desigualdades de nossas cidades. Para que se revertam esses processos mais
amplos de precarização em curso no País, deve-se ter vontade política para
tanto. E em relação à população em situação de rua, a implementação de políticas
de moradia, geração de emprego e renda, e de saúde, considerando a
especificidade desse público, deve estar na lista das prioridades. Aí sim
estaremos contribuindo para a construção de uma sociedade justa e menos
desigual.
Belo Horizonte,
3 de outubro de 2013.
[1] Técnico Cientista Social do Centro
Nacional de Defesa dos Direitos Humanos da População em Situação de Rua e dos
Catadores de Materiais Recicláveis (CNDDH). Mestrando em Planejamento Urbano e
Regional pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ). Contato: sociologiacnddh@gmail.com
[2] Advogada do Centro
Nacional de Defesa dos Direitos Humanos da População em Situação de Rua e dos
Catadores de Materiais Recicláveis (CNDDH). Contato: juridicocnddh@gmail.com
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