Testamento-testemunho de Dom Antônio
Fragoso, ex-bispo de Crateús, CE.
Apresentação de frei Gilvander.
Em setembro de 1998, enquanto eu fazia o mestrado em
Exegese Bíblica, no Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália, tive a
alegria de encontrar no Colégio Internacional dos Carmelitas, em Roma, dom
Antônio Fragoso, que no alto dos seus 78 anos contava sobre sua atuação
missionária com um entusiasmo contagiante. Dizia se referindo a várias pessoas:
“Esse tem uma cabeça arrumada.” Eu não tinha dúvida de que estava diante de um
profeta, um homem do Deus dos pobres e dos pobres de Deus. E não sei bem
porque, dom Antônio Fragoso me entregou uma cópia de um “Testamento-testemunho
espiritual dele”, que eu guardei com muito carinho, depois digitei e o conservo
no computador e, principalmente na minha memória e no meu coração como um
bússola que me inspira. Eu já o partilhei com algumas pessoas, mas, agora,
estimulado por Manoel Soares Martins, que me pediu
cópia do “Testamento de dom Antônio Fragoso” se apresentando como “juiz de
direito aposentado e filho de Crateús, Estado do Ceará, onde o nosso eterno e
saudoso dom Antônio Batista Fragoso foi o Primeiro Bispo de nossa querida
Diocese.” Pelo pedido de Manoel, Deus conosco, e também por ter ficado
emocionado ao reler o “testamento-testemunho de Dom Antônio Fragoso”, eu estou
disponibilizando-o agora na internet a partir de www.gilvander.org.br na certeza de que
vai fazer um bem enorme a muitas pessoas que o lerão e meditarão sobre o
sentido da vida. Obrigado, dom Antônio Fragoso, que já partilha vida em
plenitude, envolvido no infinito mistério de Amor que é nosso Deus, o Deus da
vida e dos pobres. Abraço terno. Frei Gilvander Luís Moreira.
Segue, abaixo, um Testamento-testemunho de Dom Antônio Fragoso, ex-bispo
de Crateús, CE, organizado em sete partes eloqüentes.
Testamento-testemunho de Dom Antônio
Fragoso, bispo de Crateús, CE.
1. DADOS PESSOAIS
-
Antônio Batista
Fragoso.
-
Nato em
10/12/1920, dia dos Direitos Humanos, em Teixeira, Estado da Paraíba, Brasil.
-
Ordenado
sacerdote, em 2 de julho de 1944, no Seminário da Paraíba.
-
De 1947 a 1957,
Assistente da Juventude Operário Católica (JOC), para os Estados do Nordeste
Brasileiro.
-
Ordenado bispo,
em 30 de maio de 1957.
-
Bispo auxiliar,
na Arquidiocese de São Luís do Maranhão, de 1957 a 1964.
-
Bispo Diocesano
de Crateús, Estado do Ceará de 1964 a 1998.
-
Padre conciliar,
no Vaticano II, em 1962, 1963, 1964 e 1965.
-
Bispo Emérito de
Crateús, desde de 17 de fevereiro de 1998.
2. BISPO.
A JOC me abriu os olhos para a
realidade do mundo dos pobres (que, depois, chamados de Empobrecidos e,
posteriormente , Excluídos).
A Teologia dos tempos de Seminário
eu a levei a sério com a "paixão" dos tempos de juventude. Mas não
consegui ILUMINAR minhas práticas e os "sinais dos tempos", pois ela
era mais "doutrinária", dedutiva.
A metodologia Jocista - do VER,
JULGAR e AGIR - vem testada nas experiências dos Militantes e Assistentes da
JOC, me ajudou a partir da "Realidade", perceber o seu "sentido
e a presença do Reino sob sinais e a me
confrontar com uma Prática Transformadora.
A notícia da minha escolha para o
Episcopado me apanhou de surpresa, convencido que a JOC era o meu futuro. Apelei
para o Papa. A nomeação, enviada para mim, no início de dezembro de 1956, só
foi publicada em março de 1957.
É voz corrente (quem sabe desses segredos,
com segurança?) que Dom Helder Câmara "sugeriu" à Nunciatura
apostólica diversas idas e vindas da Ação Católica Especializada. Lembro-me de
que, no Vaticano II, quando Monsenhor Joseph Cardajn foi escolhido Cardeal, nós
, os Assistentes da JOC lhe oferecemos um almoço afetuoso. Éramos 18.
Bispo Auxiliar do Arcebispo Dom José
de Madeiras Delgado, tentei fazer UNIDADE com ele, mesmo se éramos diferentes, na
nacionalidade e na visão da Igreja e do Mundo.
Ele me confiou o acompanhamento da
Ação Católica Especializada (JOC, JEC, JAC, ACO) e da Pastoral Catequética com
as bênçãos e o apoio aberto dele, foi possível promover, em 1958, 1959 e 1960,
uma SEMANA CATEQUÉTICA mobilizadora, em cada uma das 60 paróquias da
Arquidiocese.
É bom ter em vista que a, então,
Arquidiocese de São Luís cobria as Paróquias
das posteriormente criadas Dioceses da
Viana, Bacobal, coroatã e Brejo.
3 - O VATICANO II.
Facto convocadas. Dependiam da
anuência do Bispo Diocesano. Eu tive a graça de ser plenamente autorizado por
Dom José de Medeiros Delgado para participar do Concílio em 1962, 1963 , em
1964 e em 1965 eu já era Bispo Diocesano de Crateús.
O Vaticano II marcou fundo a minha vida. O horizonte
eclesial se alargou às dimensões dos 4 continentes.
Foi nos oferecida a oportunidade da renovação
teológica, por meio de mais de 70 conferências-Debates de Expertos do 1o time
teológico do mundo;
Deu-se a queda das imagens tradicionais de Igreja -
Igreja Pirâmide e Igreja centro e
periferia - que foi proclamada como a comunidade dos Discípulos de Jesus, todos
fundamentalmente iguais, onde a "autoridade" se torna diaconia;
Aprofundou-se o diálogo da Igreja com as
"Realidades Terrestres";
O Vaticano II teve dificuldades de acolher o
pedido de João XXIII: apresentar ao
mundo um ROSTO NOVO DE IGREJA, sobretudo
da IGREJA DOS POBRES;
Nos bastidores do Concílio, um grupo de Bispos se
reunia no Colégio Belga e tematizava a identidade entre Jesus e os Pobres,
ensaiando a compreensão das conseqüências sociais, políticas, culturais e
místicas dessa identidade;
Ficou-nos a certeza de que o Vaticano II não era o
ponto de chegada, mas o ponto de partida de um processo exigente de conversão
pessoal e eclesial.
O Antônio Fragoso, que saiu do Concílio, não era mais
o mesmo que nele entrou, em outubro de 1962.
Nunca direi demais a Deus toda a minha gratidão por
ter sido e continuar sendo PADRE CONCILIAR.
4. EM CRATEÚS.
O Vaticano II me interpelou e se esvazia, se os
cristãos e sobretudo o Episcopado não o puserem em prática.
As tentações chegam, previstas ou inesperadas. A
"saudade das panelas do Egito", a recuperação do pré-concílio, a
"restauração" de uma modernizada neo-cristandade podem gerar o
"desencanto" até nos mais ardentes, sepultar a memória do
acontecimento, levar a proposta de "hermenêuticas" ideologizadas
(talvez, bem intencionadas).
O desafio é este: como assumir o processo conciliar,
articulando a Comunhão Evangélica de Igreja e a Ousadia profética?
A Igreja de
Crateús, situada no sertão árido nordestino (os Sertões de Crateús e dos
Inhamuns), também se sentiu desafiada e extremamente frágil para o sopro
inspirador do Vaticano II (não dando?) referencial para ninguém, mas,
expressamos o desejo de dizer "sim" ao Apelo do Concílio.
1. Buscou assumir um "rosto rural", priorizando
o anúncio da Boa Nova aos Pobres, por vezes, dando pretexto às queixas das
"classes Médias tradicionais”.
2. O Bispo com mais boa vontade do que “Know-how"
não quis revestir a "figura histórica e popular de BISPO", mas ir se
tornando companheiro e irmão.
3. Todas as decisões pastorais eram discutidas longamente
com os leigos, as Religiosas e os Padres. O Bispo não quis prevalecer-se de
seus "poderes canônicos" para destacar seu voto ou sua decisão, mas
habitualmente aceitou que o voto de qualquer dos Leigos e Presbíteros fosse
igual ao seu.
4. Desejando ser uma comunidade de discípulos, SEM PODER
como Jesus, a Diocese recusou Ter OBRAS (Colégios, Escolas, Rádio, Hospitais).
As obras, se necessárias forem, devem ser iniciativas da "comunidade"
e não do Bispo, do Padre, da "Diocese", da "Paróquia".
5. A Diocese de Crateús, muito pobre, depois de
experimentar, durante 10 anos, pedir DINHEIRO/AJUDA às "Agências
doadoras" católicas e/ou não governamentais decidiu, sem muita unanimidade
(!) não mais fazer projetos para o Exterior ou para o governo do País. A ideia
inspiradora era esta: "uma mulher, um homem, crescem quando DÃO DE SI, não
quando estendem a mão para receber".
6. A Diocese decidiu não fazer um "Seminário
menor". Até mesmo chegou a pensar que "o coração da Diocese não é o
seminário, mas a formação/educação da fé da comunidade, com seus Ministérios.
Das Igrejas vivas na base nascerão, quando o Espírito soprar, VOCAÇÕES
ORDENADAS E CONSAGRADAS suficientes.
7. Muitos Cristãos pediam "Espiritualidade",
"Mística", "Nutrição da Fé", calor do coração na
Liturgia", mas não aceitavam que a Fé movesse os Cristãos para o combate
pela Justiça, para uma Prática transformadora e radical.
8. A Diocese assumiu a responsabilidade de lutar para que
os Cristãos tivessem duas pernas sãs e articuladas: a perna da Experiência de
Deus e a perna do combate pela Justiça. Esta opção trouxe tensões e
afastamentos dolorosos.
9. Nos seus 34 anos, a Igreja de Crateús reconhece que
está só NOS PRIMEIROS PASSOS de vivência da Inspiração do Vaticano II.
5. VIOLÊNCIA E NÃO-VIOLÊNCIA.
A Igreja de Crateús não é uma ILHA,
cujas pontes para "invasão" de idéias e propostas culturais
estivessem cortadas.
A consciência da MISÉRIA (= Pobreza,
Empobrecimento, Exclusão) leva facilmente, à INDIGNAÇÃO ÉTICA.
A indignação ética é o primeiro
passo necessário para o combate pela Justiça e pode-se abrir para a
SOLIDARIEDADE ATIVA ou para VENCER A VIOLÊNCIA do Sistema com a violência
popular.
As últimas cinco décadas
"empurraram" mais no sentido de combater a violência com a violência.
Ultimamente, emergem Apelos para a
Solidariedade (= "novo nome da Paz?").
Em Crateús, fortemente marcada pela
injustiça e a opressão, a tendência dos intelectuais" e dos "Ativistas" era a
"Revolução armada". Não havia estratégias com armas, havia mais "idealismos" e discursos.
Eu fui muito motivado por homens
como Gandhi, pelo "movimento Internacional de Reconciliação" (Jean
Goas e Hildegard Gon Mayer), pela
"irmandade do servo sofredor" (Bispo do Padre Alfredinho Kunz),
pela "pressão Libertadora" (Dom Helder Câmara) pela "Firmeza
Permanente" (Dr. Mário Carvalho de Jesus).
Não consegui convencer a maioria da
Diocese de que o combate pela Justiça, NÃO VIOLENTO, inspirado na Força Libertadora
do Amor, era a Esperança. Ninguém queria a Revolução Armada, mas tinha medo de
que a "Não Violência "fosse negativa, acomodada,
"inocente".
Chego a pensar que a maioria da
população da Diocese tem práticas não-violentas, mas é carente de EDUCAÇÃO para
a ATITUDE solidária, que recusa usar as armas dos opressores.
6 – MONSENHOR BETTAZZI E PAZ CHRISTI.
Não é meu propósito falar do meu
colega do Vaticano II, Monsenhor Luigi Bettazzi, Bispo de Ivrea, e Nem da
"Fraternidade dos Pequenos Bispos", que cerca de 20 Padres
conciliares organizamos, durante o Concílio, como um pequeno grupo de Amizade e
mútuo apoio, inspirado no Irmão Carlos de Foucauld e sua Espiritualidade, dos
20, 9 já se foram para a casa do Pai. Eram do Vietnam, da Coréia do Sul, da
África, da Alemanha, da França, os outros, ainda sobreviventes, DAMOS GRAÇAS a
Deus por este grupo.
Quero falar do testemunho de
Monsenhor Bettazzi em favor da PAZ (= Pax Christi).
Monsenhor Bettazzi foi sempre um
bispo da Solidariedade ativa não violenta e da Profecia audaciosa. Nem sempre
encontrou compreensão a que tinha direito.
Lembro-me das suas posições pela
autodeterminação do Vietnã na Mídia ocidental.
Lembro-me de suas abertas e
corajosas mensagens, nos congressos da Pax Christi italiana e da Pax Christi
internacional.
Lembro-me de seus livros deliciosos
de ler, interpelantes para os que querem sair do "status quo" ou de
atitudes sectárias, especialmente o denso e profético "La Sinistra di
Dio".
Lembro-me da Visita Pesquisa à
América Central e da publicação contraditada do relatório.
Sinto-me gratificado por ter
Monsenhor Bettazzi como Amigo e Irmão e como um militante não violento da PAZ.
7 - ESPERANÇAS PARA O FUTURO.
Um homem com quase 78 anos ainda
pode ter esperanças "concretas"?
Sou filho de um sertanejo paraibano
muito pobre, que foi sempre um sonhador incorrigível, "jovem aos 90 anos
carregando utopias mobilizadoras”.
São estas algumas das minhas
esperanças:
-
Uma Igreja com
ROSTO DE POBRE, comunidade de servidores de Jesus, sem poder, vivendo a mística
do serviço de "lavar os pés" da humanidade, principalmente dos
pobres, conheço muitos testemunhos. Por isto, sei que é possível.
-
O ministério dos
Cristãos que, na Igreja Católica, unem a comunhão eclesial evangélica e a
profecia explícita. Quem não se lembra do Padre Haering, do Arcebispo John
Quinn, do Padre Tissa Balasuriya, de Monsenhor Oscar Romero, de Monsenhor Ivan
Girardi, da multidão dos catequistas e celebradores da palavra nas CEBs (Comunidades
Eclesiais de Base), dos milhões de mártires "anônimos" no combate
pela justiça?
-
As CEBs -
pequenas Igrejas Vivas na Base - de tipo rural e, no futuro, de tipo urbano em
que unem, no cotidiano "anônimo" a maior fidelidade ao Evangelho e a
teimosia profética.
-
O pluralismo de
rastos da Igreja vinda de Teologias, de Liturgias, de formas de ser PADRE
ensaiando, já na História presente, a UNIDADE NA DIVERSIDADE.
-
A invenção de realizações históricas da UTOPIA
SOCIALISTA, que os assim chamados "SOCIALISMOS REAIS" experimentaram
e traíram e a "globalização" se gloria de havê-lo sepultado
definitivamente.
-
A resistência
multissecular dos Indígenas, dos Negros, das Mulheres, dos Sem poder e que não
é resgatada pela opinião pública de hoje, mas faz tremer o sistema global que o
"ignora" e o "escanteia".
Estas ESPERANÇAS "CONCRETAS" estão fazendo o
seu caminho e NINGUÉM vai impedi-los de
florescerem e frutificarem, no tempo que o Espírito programa.
Antônio Fragoso,
Bispo Emérito de Crateús. João Pessoa, Paraíba,
Brasil, 15 de setembro de 1998.
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