Capitalismo no campo dizima os cerrados e atiça
os conflitos agrários
Frei Gilvander
Moreira[1]
No Brasil, os
agronegociantes seguem invadindo de forma obsessiva os Cerrados com “uma
prática agrária/agrícola energívora, ou seja, voraz consumidora de energia, que
vê a planura das imensas chapadas como uma bênção da natureza, pois seus
tratores, não tendo que subir e descer, poupam energia, um dos insumos mais
importantes que, para eles, significa menor custo em dinheiro e, logo, maiores
lucros acumulados” (PORTO GONÇALVES, 2014, p. 93).
Da monocultura da
cana-de-açúcar e do café, no regime do colonato e depois da parceria, surge o
boia-fria, que se submete a longas jornadas de trabalho, sem carteira assinada
e sem segurança no seu transporte até às áreas de trabalho. As extensas
plantações de soja contaminam com agrotóxicos as nascentes dos córregos e dos
rios, além de serem também responsáveis pelo confinamento dos pequenos
agricultores nos grotões das encostas dos gerais – o que era de todos -, os
“encurralados” pelas monoculturas – cultura do UM[2] -
da soja ou do eucalipto. “Os pivôs, “pivôs da Discórdia”, como os chamaram os
camponeses do Riachão, na região de Montes Claros, norte de Minas Gerais, secam
rios, lagos, lagoas, pântanos, varjões e várzeas pelo uso intensivo e pelo
enorme desperdício por evaporação da água que é captada para plantar grandes
monoculturas de soja, de eucalipto, de milho, de girassol, de algodão” (PORTO
GONÇALVES, 2014, p. 94).
A destruição é
tamanha que hoje não existe mais nenhuma faixa contínua de cerrados. Por exemplo, em Minas Gerais, de Sete Lagoas
à Chapada do Norte, por 486,4 km, o que existe é monocultura do eucalipto, um
deserto verde sem fim. Por agronegócio, entende-se a produção em larga escala,
feita em grandes extensões de terra – latifúndio -, com sofisticada tecnologia
em quase monopólio de empresas transnacionais, uso indiscriminado de agrotóxico
e, muitas vezes, com mão de obra em condições análogas à escravidão. Após o
desmatamento da maior parte dos cerrados, implantada onde existiam os cerrados,
a monocultura de eucalipto resseca a terra, seca nascentes, escorraça os
pássaros, expulsa os camponeses para as periferias das cidades, pois são
obrigados a vender suas pequenas propriedades por falta d’água. Na região noroeste
de Minas Gerais, no município de Unaí, onde é forte a monocultura do feijão, do
milho e da soja, após a pulverização de herbicidas, inseticidas e praguicidas,
feita por aviões em voos rasantes, balaios e mais balaios de pássaros mortos
podem ser recolhidos, vítimas dos venenos altamente tóxicos, tais como o Roud up. “No município de Unaí, nas
estradas no meio das lavouras, é preciso andar com os vidros do carro fechados,
porque é insuportável o mau cheiro dos venenos aplicados”, nos informa Helba Soares
da Silva, viúva do fiscal Nelson José da Silva, assassinado na Chacina de Unaí
em 28/01/2004. Há muitos municípios, em Minas Gerais, onde a monocultura do
eucalipto já invadiu e devastou mais de 70% do seu território.
Dia 22 de fevereiro
de 2002, em Andrequicé, no município de Três Marias, MG, visitamos Manuel
Nardi, conhecido como Manuelzão, o grande inspirador e personagem de João
Guimarães Rosa, homem dos cerrados. Perguntamos ao Manuelzão se o mundo estava
melhorando. Como resposta, obtivemos: “Cinquenta
anos atrás não tinha asfalto rasgando os cerrados. As estradas eram de chão
batido. A gente via fileiras de caminhões carregados de feijão, milho, arroz e
mandioca indo para a capital para matar a fome do povo lá de Belo Horizonte.
Hoje, cinquenta anos depois, a estrada está asfaltada e o que a gente vê? Um
caminhão atrás do outro, carretas e mais carretas cheias de carvão indo para a
região de Belo Horizonte para matar a fome das caldeiras das siderúrgicas.
Queimaram quase todos os cerrados. Pensam que eucalipto é salvação pra tudo.
Quem ganha com a devastação dos cerrados? Desrespeitar os cerrados é
desrespeitar o próximo, a Deus e a si mesmo”.
Mais do que omisso ou
conivente, o Estado brasileiro tem sido cúmplice, sustentador e fomentador da
iníqua estrutura fundiária reinante no Brasil. Grande parte dos conflitos de terra em
Minas Gerais acontece nos mais de 14 milhões de hectares de terras devolutas
do estado (OLIVEIRA, 2010, p. 299).
Além das demandas das famílias sem-terra, existem no estado de Minas Gerais
cerca de 800 áreas de remanescentes de quilombos que estão em processo de autorreconhecimento,
reivindicando titulação e demarcação de suas terras. Apenas entre 2004 e 2007
foram reconhecidas pela Fundação Palmares, em Minas Gerais, 81 comunidades
quilombolas.[3] Os
conflitos envolvendo comunidades quilombolas – do movimento quilombola, outro
movimento socioterritorial - na luta pela terra estão crescendo.
O estado de Minas
Gerais poderia ser também chamado de Águas Gerais, porque minas de água, ou de
minério – que estão sempre juntos -, é o que tinha em abundância nas minas e
nos gerais. Ainda tem, mas milhares de nascentes têm sido dizimadas pelo
agronegócio com hidronegócio e pelas mineradoras nas últimas décadas em uma
progressão geométrica.
Em 2015, existiam no
Brasil apenas 9290 assentamentos, em uma área de 88.269.706,92 de hectares, com
969.640 famílias assentadas (Dados do INCRA/2015).[4] As
regiões Norte e Nordeste concentravam 73,6% do total das famílias assentadas
(41,0% e 32,6%, respectivamente). Mas, enquanto o Norte conformava 76,4% da
área total dos projetos de assentamento, o Nordeste, apenas 12%. Nas demais
regiões do País estavam os restantes 24,6% de famílias assentadas, em menos de
11,6% da área reformada.
A destruição
crescente do bioma cerrado é gravíssima e coloca em xeque o futuro das próximas
gerações. É preciso, urgentemente, conter o capitalismo, sistema satânico que
ganha forma e velocidade no agronegócio e no hidronegócio e segue desrespeitando
e dizimando vidas. Esse modelo de uso abusivo da mãe terra e da irmã água já
mostrou a que veio, e tem que ser questionado e combatido até às últimas
consequências. O campo é extenso e pode
ser cenário de vida com qualidade e fartura para todas e todos, desde que as
terras e as águas sejam utilizadas com justiça agrária e hídrica, além de
responsabilidade socioambiental.
Referências
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Os anos Lula: contribuições para um balanço
crítico 2003-2010. Rio de janeiro: Garamond, p. 287-328, 2010.
PORTO GONÇALVES, Carlos Walter; CUIN, Danilo
Pereira; LEAL, Leandro Teixeira; NUNES SILVA, Marlon. Dos Cerrados e de suas
riquezas. In: Conflitos no Campo Brasil
2014. Goiânia: CPT Nacional, p. 88-95, 2014.
Belo Horizonte, MG,
16/01/2018.
Obs. 1: O vídeo, abaixo,
ilustra o texto, acima.
Palavra Ética na
TVC/BH: Pré-romarias da 20ª Romaria das águas/terra de MG de 2017.
Desertificação?
[1] Padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG;
licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo
Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália;; assessor da CPT, CEBI, SAB e
Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos”
no IDH, em Belo Horizonte, MG.
www.twitter.com/gilvanderluis –
Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Expressão de Carlos Walter Porto-Gonçalves (PORTO-GONÇALVES, 2014:
93).
[3] Cf. https://www.achetudoeregiao.com.br/mg/quilombolas.htm.
Sobre história e resistência dos quilombolas em Minas
Gerais, cf. CEDEFES (Org.). Comunidades
quilombolas de Minas Gerais no século XXI: história e resistência. Belo
Horizonte: Autêntica/CEDEFES, 2008.
[4] Dados disponíveis em http://painel.incra.gov.br/sistemas/index.php
.