Gilvander é frei e padre da Ordem dos carmelitas, Doutor em Educação pela FAE/UFMG; bacharel e licenciado em Filosofia pela UFPR, bacharel em Teologia pelo ITESP/SP, mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas, em Minas Gerais.
terça-feira, 11 de julho de 2017
segunda-feira, 10 de julho de 2017
domingo, 9 de julho de 2017
sábado, 8 de julho de 2017
Apóstolo Paulo, trabalhador e agente de pastoral emancipadora: subsídio para o Mês da Bíblia sobre 1ª Carta aos Tessalonicenses
Apóstolo
Paulo, trabalhador e agente de pastoral emancipadora[1]: subsídio para o Mês
da Bíblia sobre 1ª Carta aos Tessalonicenses
Por frei Gilvander Luís Moreira[2]
CANTO DA 1ª CARTA AOS TESSALONICENSES
(Música: ‘Quero ouvir teu apelo, Senhor’- Ir. Míria
T Kolling. Letra: Marysa M. Saboya)
3. Sem
fronteiras tu és, Missionário!
E dedicado Pastor das igrejas,
Que qual “mãe” tu geraste e guardaste.
Paulo
Apóstolo, bendito sejas!
Mas isso não é tudo:/ Foste um
trabalhador
E, mesmo evangelizando,/ Comeste
o pão do suor!
Na contramão do império,/
Valorizaste o pobre,
O escravo e as mulheres/ E não
quiseste ser nobre.
3.1. Preliminares
As cartas do apóstolo Paulo foram escritas na
década de 50 do primeiro século da era cristã. Leituras fundamentalistas –
literalistas - cometem injustiças contra o apóstolo Paulo maltratando-o e
caluniando-o como “legalista, misógino, antissocial, conservador...”. Essas
acusações são injustas e geralmente são feitas por pessoas que o conhecem ‘por
ouvir dizer’, através de leituras litúrgicas escolhidas sob intenções que
buscam afirmar o status quo religioso.
Por volta de meados do século XX, as
convicções de que o livro de Atos dos Apóstolos constituía a biografia mais
segura da vida, práxis e ensinamento de Paulo ruíram-se. Os Biblistas criaram o
Princípio de Knox que podemos resumir nos seguintes termos: os Atos dos
Apóstolos podem ser utilizados para complementar os dados das cartas, jamais
para corrigi-los. Logo, quando encontramos contradições históricas entre
narrativas de Atos dos Apóstolos e narrativas das Cartas Paulinas devemos dar
mais consistência histórica ao narrado pelas Cartas Paulinas, pois Atos dos
apóstolos não é um livro de história das primeiras comunidades cristãs, mas um
livro de Teologia da História das Primeiras Comunidades Cristãs.
Resgatar o ensinamento e o testemunho do apóstolo
Paulo e da Comunidade Cristã de Tessalônica – uma grande cidade - pode oxigenar
a nossa vida cristã. Paulo, ao lado de muitas mulheres, dos Helenistas - como
Estevão, Filipe, Barnabé – de Silvano, Timóteo e ... inculturou o evangelho do
Movimento Popular religioso-político de Jesus Cristo no meio urbano – nas
periferias das grandes cidades -, onde várias idolatrias grassavam. Paulo e seu
grupo romperam muitas barreiras. Paulo foi um grande profeta, apaixonado por
Jesus de Nazaré e pelo seu projeto de libertação integral de todos. E acima de
tudo Paulo era um entusiasmado pelo testemunho libertador das primeiras
comunidades cristãs, quando ainda eram ecumênicas, inculturadas, faziam opção
pelos pobres, valorizavam a liderança das mulheres e acolhiam os clamores dos
injustiçados da periferia, sendo de fato, ‘luz, sal e fermento’ no mundo do
Império Romano.
Levando no coração e na memória os clamores
da classe trabalhadora e da classe camponesa, atentos à palavra das mulheres
lutadoras e das pessoas ecumênicas, dos profetas e profetisas do presente, se
lidos a partir do seu contexto histórico e captando suas intenções, os escritos
paulinos inspiram-nos: a) a testemunhar inculturação nas grandes selvas de pedra
que são as grandes cidades; b) a resgatar a força da profecia que consola os
aflitos, mas incomoda os opressores; c) na construção de comunidades – e de uma
sociedade com campo e cidade - que sejam espaço de acolhida de todas as pessoas
e todos os seres vivos a partir dos injustiçados; d) a superar os
fundamentalismos e os (neo)paganismos atuais; e) a inserirmo-nos no mundo dos
pobres se comprometendo com suas causas/lutas pelos seus direitos.
O apóstolo Paulo observou que o Concílio de
Jerusalém (At 15,1-35), realizado por volta do ano 50 do primeiro século da era
cristã, tinha aceitado uma reivindicação vital para as igrejas da periferia:
abolir a circuncisão. Paulo enfatizou que a igreja-mãe – a de Jerusalém - tinha
feito um único pedido: “Não esqueçam os pobres” (Gal 2,10).
Importante recordar que Paulo não era um dos
doze apóstolos. Ele foi reconhecido pelas primeiras comunidades cristãs como
apóstolo, não como aquele que um título ou exerce um poder sobre a comunidade,
mas como missionário autêntico, porta voz e testemunha do Evangelho de Jesus
Cristo. Diz Paulo: “Deus nos achou dignos
de confiar-nos o Evangelho e assim o anunciamos” (1 Ts 2,4). Paulo é autônomo
– não independente - na sua atividade missionária, não é um mero funcionário de
uma instituição. Por isso ele cultiva liberdade de espírito, coragem e
intrepidez na defesa do Projeto de Jesus Cristo que quer vida e liberdade em
abundância para todos e tudo.
Primeiro escrito de Paulo e primeiro do Novo
Testamento, os cinco capítulos que compõem a Primeira Carta aos Tessalonicenses
revelam características da atuação do apóstolo Paulo e de suas companheiras e
companheiros que demonstram como Paulo, trabalhando, anunciava o evangelho o
Evangelho de Jesus Cristo, que é ótima notícia para os oprimidos, mas péssima
notícia para os opressores. Observe-se que a Carta não é de Paulo aos
Tessalonicenses, mas de “Paulo, Silvano e Timóteo à comunidade de Tessalônica”
(1 Ts 1,1a). É um coletivo que escreve e evangeliza. Referem-se a Deus como Pai
(1 Ts 1,1b.3a) e a Jesus como Cristo e Senhor (1 Ts1,1b.3b). Isso, de saída,
revoluciona várias coisas:
a) Insufla na comunidade que Deus não é
aquele tremendão, ‘todo poderoso’, distante e juiz castigador, mas Deus é Pai
de infinito amor, está próximo, em nós, no outro e em tudo. O Deus de Paulo
considera todos e tudo como filhos e filhas. Essa imagem de Deus cultiva a
fraternidade;
b) Afirma que Jesus é Cristo, filho de Deus, ungido:
a luz e a força divina estão no humano, em Jesus e em todo ser humano;
c) Paulo, Silvano e Timóteo tiveram a ousadia
de defender que Jesus é Senhor (kyrios,
em grego), como aparece várias vezes na 1ª Carta aos Tessalonicenses[3]. Isso
é subversão político-religiosa, pois na época, em pleno Império Romano,
‘Senhor’ era o Imperador, que era considerado um deus. Logo, afirmar que Jesus
é Senhor destrona os poderosos da terra a começar do imperador. O ensino e o
testemunho das primeiras comunidades cristãs, sob a liderança do apóstolo
Paulo, de Barnabé e muitos/as outros/as missionárias/os buscavam implodir o
culto dominante, pois afirmavam: “Não é o
Império que salva - há um novo defensor dos pobres: Jesus Cristo! Quem é senhor
não é o imperador, mas Jesus Cristo”. Por tudo isso, vários cristianismos
originários foram acusados de violadores dos “decretos de César” (Cf. At 17,7),
e, portanto, subversivos.
Especificamente nos textos 1 Ts 2,1-13.17-19;
3,1-11; 4,10b-12; 5,12-13, o apóstolo Paulo demonstra seu jeito libertador de
ser e de atuar como missionário, mostra como ser liderança que inspira e produz
outras lideranças libertadoras. A dedicação de Paulo ao trabalho manual é algo
eloquente e profético.
Para interpretarmos de uma forma sensata e
libertadora os textos da 1ª Carta das Tessalonicenses é preciso lermos nas
linhas e nas entrelinhas, além de considerar o texto no seu contexto e
pretexto. É o que veremos a seguir.
3.2. Características
do ser e do agir de Paulo, trabalhador e agente de pastoral que busca emancipar
o povo das comunidades
Não basta ser qualquer tipo de pessoa cristã
e nem qualquer tipo de agente de pastoral. Não basta ter fé em Deus e em Jesus
Cristo, mas é preciso ter a fé de Jesus Cristo. Não basta amar Jesus, mas é
preciso se comprometer com o projeto de Jesus, que é um projeto de libertação
integral das pessoas e da sociedade. O ensinamento e a práxis do apóstolo Paulo
segundo a Primeira Carta aos Tessalonicenses revelam várias características que
podem nos inspirar na nossa atuação pastoral e no nosso trabalho. Ei-las,
abaixo.
3.2.1. Paulo alimenta
as relações fraternas
Eloquente é a forma como o apóstolo Paulo
inicia o 2º capítulo da Carta aos Tessalonicenses: “Irmãos, vocês nos acolheram e bem sabem que não
foi em vão. Apesar de maltratados e insultados em Filipos, como sabem,
encontramos em nosso Deus a coragem de anunciar a vocês o Evangelho de Deus em
meio a forte oposição” (1Ts 2,1-2). Paulo conclama a todos para a prática
de relações fraternas: “Irmãos, ...”,
palavra que aparece dezenove vezes na carta[4]. Ele
não se refere à comunidade como clientes, nem senhores, nem homens e mulheres, nem
como ricos e pobres, mas como “irmãos”, pois ele busca cultivar a dignidade
humana de todos/as, sem discriminação. Ninguém é melhor que ninguém. O apóstolo
Paulo não chega sozinho em Tessalônica, mas com um grupo, busca evangelizar em
mutirão. Ele sabe que juntos e atuando de forma organizada, pode superar muitas
injustiças, pois atuações isoladas têm efeitos efêmeros.
Paulo intui o sentido mais profundo de tudo:
“Não foi em vão” a acolhida oferecida. Paulo via a mão de Deus atuando em todos
os acontecimentos, desde os mais simples.
3.2.2. Paulo era homem corajoso em meio a perseguições em contexto
violentador
Paulo chega à comunidade como um perseguido e
ameaçado de morte: “maltratados e
insultados em Filipos” (1 Ts 2,2a). Parte dos judeus – os saduceus e os
fariseus enriquecidos e moralistas – perseguiram até à morte Jesus de Nazaré e
muitas outras pessoas que abraçaram o Evangelho do Nazareno. Além disso, perseguem
Paulo e seus companheiros tentando impedir que eles anunciem o Evangelho de
Jesus Cristo aos pagãos. Querem privatizar Deus e controlá-lo.
Em Tessalônica também quem adere ao Evangelho
é perseguido (1 Ts 1,14-15). Portanto, perseguidos e injustiçados acolhem quem
está sendo perseguido e injustiçado. São os oprimidos dão as mãos para juntos
se libertarem. Paulo cultiva a coragem de anunciar o Evangelho de Jesus Cristo
em ambiente hostil onde campeia injustiças e violências. Paulo não tem medo e
sabe que a luta coletiva em prol de uma causa justa expulsa o medo e infunde
coragem para propor caminhos emancipatórios e denunciar as engrenagens que
violentam o povo. Para Paulo, fé não é crença em doutrinas ou dogmas, mas é uma
posição de coragem, cabeça erguida – postura existencial - diante da vida e dos
problemas. Segundo a Bíblia, fé é sinônimo de coragem. Quem tem fé tem coragem.
Quem não tem fé tem medo, e vice-versa. Não cultivamos nossa fé apenas por
orações, mas pela prática da solidariedade e pelo compromisso com a justiça na
luta ao lado dos oprimidos. Bom remédio para melhorar nossa fé é a luta
coletiva em prol de direitos sociais do povo injustiçado. Quanto mais a gente
participa de lutas concretas menos medo temos e mais coragem adquirimos. Por
isso é que normalmente se houve no meio dos Sem Terra e dos Sem Casa, os que
estão na luta por direitos: “Não temos medo. Perdemos o medo na hora que
entramos nessa terra abandonada que Deus nos prometeu”.
3.2.3. Paulo é sincero e não exalta a si mesmo
Diz Paulo: “Nós nunca usamos de bajulação” (1 Ts 1,5). Se na Carta está escrito
isso é sinal de que havia muitos líderes religiosos bajuladores e, assim,
traidores do evangelho de Jesus Cristo. Ser sincero (sem cera) na atuação em
prol do Evangelho era uma característica da atuação de Paulo. Quantos padres,
pastores e líderes religiosos que atualmente amoldam seu discurso e prática
para agradarem a quem está no poder e, consequentemente, receber benesses!
Muitos/as missionários/as foram incompreendidos e perseguidos por suas
comunidades, porque falavam a verdade e denunciando as injustiças e, por isso,
deixaram de receber presentes e ficaram falando ‘pras paredes’. Vários foram
expulsos de suas comunidades, inclusive. Em uma sociedade desigual como a nossa
– sociedade capitalista – um dos termômetros para aferirmos se estamos sendo
coerentes com o Evangelho de Jesus Cristo é: estamos sendo perseguidos pelos
poderosos ou estamos sendo elogiados por eles e por todos? Se estivermos
agradando a ‘gregos e troianos’, ou seja, a opressores e aos oprimidos, pode
saber que estamos falsificando o Evangelho proposto por Jesus, projeto que lhe
custou a vida sob pena de morte.
3.2.4. Paulo não fica restrito a uma comunidade, mas, como
peregrino, mantém comunicação com todas as comunidades alimentando-as através
de cartas
Paulo atuou como missionário na comunidade
cristã na periferia de Tessalônica. Criou laços de amizade, admiração, respeito
e amor com os integrantes da comunidade, mas teve que continuar sua missão em
outros territórios. Distante, Paulo sente saudade, prova de que ama quem está “distante
dos olhos, mas perto do coração” (1 Ts 2, 17). Saudade que não é sofrer, mas é
a certeza de que ama as companheiras e os companheiros de missão que estão
distantes, vivendo em outras comunidades e batalhando em prol da justiça do
reino de Deus. Um jeito que Paulo descobre de continuar a missão sem a presença
física permanente é escrever cartas. Assim, Paulo valoriza a microcomunicação. Atualmente,
provavelmente Paulo reforçaria sua atuação missionária enviando cartas,
mensagens, fotos e vídeos através da internet, inclusive.
3.2.5. Paulo alimenta a perseverança. “Não desistam da luta!”
“Que
ninguém fique abalado com as presentes tribulações” (1 Ts 3,3a), conclama o
apóstolo Paulo na primeira Carta endereçada à Comunidade Cristã da periferia da
grande cidade de Tessalônica, carta levada por Timóteo, companheiro de Paulo na
missão. ‘Tribulações’ diz respeito a repreensão, opressão e repressão.
Repreensão é pressão psicológica, censura, constrangimento, retirada de
liberdade. Opressão é pressão econômica: retirada dos meios econômicos
necessários para se viver com dignidade. Isso o sistema capitalista faz
diariamente ao sugar a força de trabalho pagando apenas um mísero salário e os
frutos do trabalho ficando para o proprietário dos meios de produção (terra,
indústria, fábrica etc.) gerando mais-valia e acumulação de capital. Repressão
é pressão política: prender, torturar, matar, eliminar a pessoa. Portanto,
Paulo anima a resistência diante de tudo isso, não apenas diante de angústias
pessoais.
O sistema capitalista e as tendências
religiosas que privatizam a fé e a relação com Deus estimulam aos quatro ventos
o individualismo e o egocentrismo, vírus que dilaceram o tecido social. Esquecem
que Deus ajuda quem luta em comunidade, em mutirão e de forma organizada. Se
vigora o ‘cada um pra si”, Deus não ajuda. Só perde quem não se engaja nas
lutas sociais ou delas desistem. Quem persevera na luta coletiva por direitos
humanos fundamentais conquista direitos, mais cedo ou mais tarde. Isso é o que
Paulo diz aos tessalonicenses.
3.2.6.Paulo reconhece a fé (= coragem), o amor mútuo e a
gratidão da comunidade
“A fé (= coragem) que vocês têm é um consolo para nós na tribulação” (1 Ts 3,7), reconhece feliz da vida o apóstolo
Paulo ao obter notícias da comunidade de Tessalônica por intermédio do
companheiro Timóteo. E também “o amor mútuo e a gratidão de vocês por
nós” (1 Ts 3, 6). “Vocês aprenderam
do próprio Deus a se amarem uns aos
outros” (1 Ts 4,9). Claro que ninguém é perfeito e não há comunidade
perfeita. Muitas vezes dói muito nos/nas missionários/as perceber as
contradições nas comunidades: ingratidão, acomodação, individualismo,
mesquinhez, etc. Entretanto, assim como Deus disse a Abraão, após esse
pechinchar muito: “E se houver apenas dez
pessoas justas na cidade?” (Gen 18,32a). Deus respondeu: “Por amor às dez pessoas eu não destruirei a cidade” (Cf. Gen
18,32b).
Devemos perceber com olhar benevolente que no
meio do povo, nas comunidades, sempre há pessoas que cultivam uma fé
inabalável, uma coragem infinita para lutar, uma capacidade de amar o próximo
sem igual e uma eterna gratidão. Essas pessoas são ‘minorias abraâmicas’, são
‘boas samaritanas’, e, por serem e agirem assim, alimentam todos/as que
participam da caminhada do reino de Deus começando aqui e agora. Porém, não
esqueçamos: opção pelos pobres deve ser vivenciada por todas as pessoas cristãs
não porque os pobres são santos, puros e perfeitos, mas porque são oprimidos e
injustiçados.
3.2.7. Paulo trabalha, mas questiona o trabalho escravizante
No Brasil há mais farmácia que padaria e há mais
igrejas do que farmácia. Péssimo sinal. Atualmente muitos líderes religiosos –
padres, pastores, etc. – vivem à custa dos fiéis das suas igrejas. Pior, muitos
acumulam dinheiro usando indevidamente o nome de Deus. Isso se realiza através
da Teologia da Prosperidade, que privatiza Deus e interpreta
fundamentalisticamente os textos bíblicos como se Deus fosse um quebra galho
para resolver problemas individuais. Entretanto, o apóstolo Paulo, pelo seu
ensinamento e principalmente pelo seu testemunho, questiona os líderes
religiosos que não trabalham para seu autossustento e, pior, acumulam riquezas
usando em vão o nome de Deus.
Paulo é missionário, mas acima de tudo um
trabalhador que gera subversão no mundo do trabalho. Diz Paulo: “Irmãos, vocês ainda se lembram dos nossos trabalhos e fadigas. Pregamos o
Evangelho a vocês trabalhando de noite e de dia, a fim de não sermos
peso para ninguém” (1 Ts 1,9). “Que
seja para vocês uma questão de honra ... trabalhar
com as próprias mãos” (1 Ts 4,11). Para não ser peso para a comunidade,
Paulo dá muito valor aos trabalhos manuais e, por isso, vai contra a corrente
da cultura grega, trabalhando ‘dia e noite’. Paulo é, acima de tudo, um
trabalhador que anuncia o evangelho. Paulo parece que foi mais reconhecido
pelas comunidades cristãs porque trabalhava em trabalho manual para o próprio
sustento do que pela história do seu processo de conversão de perseguidor a
missionário perseguido.
O fato de Paulo trabalhar em serviço manual
se torna mais testemunho do Evangelho de Jesus Cristo se recordarmos que o
Império Romano - ambiente da comunidade cristã de Tessalônica – era constituído
por uma sociedade de classes. À classe dos trabalhadores escravizados, seja por
guerras, seja por dívidas ou por linhagem, etc., era reservado os trabalhos
manuais, trabalhos pesados que exigiam grande emprego de força física. Para
agravar a opressão o Império Romano se movia nas ondas da cultura grega que,
segundo o filósofo Aristóteles, considerava a escravidão como algo natural.
Trabalho manual – trabalhos pesados - era coisa de escravos, não de pessoas
livres e cidadãs. Para compreendermos melhor o testemunho do apóstolo Paulo que
enfatiza um dos princípios cristãos, que é ‘trabalhar com as próprias mãos para
o próprio sustento’, temos que entender bem as relações de trabalho e capital
na nossa sociedade capitalista. E também nossa relação com o mundo do trabalho.
É o que segue.
3.3. Pano de fundo para compreendermos melhor Paulo como
trabalhador e agente de pastoral emancipadora
Para compreendermos bem o ser e o agir do
apóstolo Paulo faz bem recordarmos como foi nossa infância e adolescência e a
nossa história de trabalho no mundo. Tomo a liberdade de socializar aqui um
pouco da minha relação com o mundo do trabalho, na minha infância e
adolescência, na esperança de suscitar que cada leitor/a faça memória da sua
relação com o mundo do trabalho desde sua tenra idade.
Sou o que faço como práxis e faço o que faço, em grande parte, porque
nasci em uma família sem-terra. Na minha infância, por pertencer à classe do
campesinato trabalhando no sistema de parceria, experimentei o que significa
ser expropriado. Comecei a sentir na própria pele a injustiça quando, junto com
minha família, ao tocar lavoura no regime à meia, via o patrão-fazendeiro levar
50% da nossa colheita e quase a outra metade também para pagar a dívida que
tínhamos acumulado do plantio à colheita comprando na venda da sede da fazenda
o que era necessário para nossa subsistência, o que não produzíamos com nosso
trabalho: sal, açúcar, café, querosene, remédios, botina, enxada, foice,
machado e algo mais necessário à casa ou ao nosso trabalho. Indignado ao ver o
patrão levar a quase totalidade da nossa produção, gritava dentro de mim: “Isso
não é justo. Deus não quer isso” (MOREIRA, 2014: 64). O fazendeiro ficar com
quase toda nossa produção só porque dizia ser o dono da terra?! Eu desconfiava
que isso não fosse justo. O suor derramado no trabalho “de sol a sol” era muito
para ficar só com um pouquinho da produção. O fazendeiro, por ser dono da
terra, entrava com a semente e nós com o trabalho e na colheita, metade para
ele e metade para nós.
Experiência semelhante ocorre com a classe trabalhadora na cidade, onde o/a
trabalhador/a recebe como salário apenas migalhas do que produz. “Tá vendo
aquele edifício, moço! Ajudei a levantar ...” A quase totalidade da produção
do/a trabalhador/a é retida pela empresa, se tornando o principal produto que
gera lucro e acumulação de capital. Eis um exemplo: Após mais de dez
anos de luta pela terra, João Martins Pereira, hoje é um Sem Terra assentado no
Assentamento Nova Conquista II, nas terras da ex-usina Ariadnópolis, em Campo
do Meio, sul de Minas. Por ter sido expulso na própria terra, João teve que
trabalhar em uma fábrica de cardã, barra de direção e caixa de direção em
Guarulhos, SP. Ele fabricava de 20 a 30 cardãs e cerca de 200 barras de
direção, por mês. Seus patrões eram dois sócios e com o êxito do negócio
abriram mais três fábricas. Um mandava fazer uma coisa e o outro mandava fazer
outra coisa. João resolveu pedir demissão por dois motivos: a) O valor de venda
de duas a três peças das duzentas que produzia mensalmente era o suficiente
para pagar o salário mínimo que ele ganhava. “Com os trezentos reais que eu
ganhava não dava nem para pagar as minhas despesas de sobrevivência. Tive que
exigir vale transporte. Descobri que eu estava enriquecendo os patrões e
morrendo aos poucos, sendo explorado” (JOÃO MARTINS PEREIRA, Sem Terra
assentado no PA Nova Conquista II, em entrevista, dia 02/3/2016). Por causa
dessa experiência de expropriação e de exploração, João se engajou na luta pela
terra e hoje tem saúde, felicidade e continua na luta solidário com os
sem-terra que ainda não conquistaram a terra.
Durante o império romano, na língua latina, o
termo que fazia referência a trabalho era e ainda é tripalium, que significa três paus para torturar escravos. Na língua grega existem dois termos
para se referir a trabalho: doulos e poiesas. O termo doulos se refere ao trabalho enquanto servidão, análogo à situação
de escravidão, trabalho fruto de força de trabalho vendida no mercado para
viabilizar mais-valia, dizemos em linguagem do materialismo histórico-dialético.
O termo poiesas se refere ao trabalho
criativo, prazeroso, no qual a trabalhadora e o trabalhador produzem e gozam os
frutos do seu trabalho. Trabalho no sentido de poiesas é o que o profeta Isaías na Bíblia anuncia como utopia em
uma sociedade com “novos céus e nova terra”: “Os homens construirão casas e as habitarão, plantarão videiras e
comerão os seus frutos. Já não construirão para que outro habite a sua casa,
não plantarão para que outro coma o fruto” (Isaías 65,21-22a).
Com a instituição da propriedade privada dos
meios de produção se instaurou um processo de confronto na dependência entre os
seres humanos que passaram a viver em condições desiguais, forçados à divisão
do trabalho.
A origem primeira dos capitalistas está na
expropriação das terras das populações camponesas e na formação das grandes
propriedades territoriais. Assim se substituiu o servo pelo parceiro
arrendatário e se ofereceu à indústria na cidade massas contínuas cada vez mais
numerosas de proletários de origem camponesa.
O operário jogado na rua, após ser expropriado da sua terra, “se vê
obrigado a comprar o valor de seus meios de subsistência, sob a forma de um
salário, que lhe será pago por seu novo patrão, o capitalista industrial”
(MARX, 1982: 181). Antes, na posse de uma pequena gleba de terra, o camponês
produzia na terra os meios de subsistência de si mesmo e de sua família e ainda
com algum excedente podia trocar com outro produtor o que lhe faltava. Mas, na
cidade, sem-terra e sem-moradia, tem que comprar tudo para sobreviver e, assim,
é impingido a vender-se paulatinamente vendendo sua força de trabalho.
Dentro da lógica e estrutura do sistema do
capital, o/a trabalhador/a não pode ter outra mercadoria para vender e nem
possuir nada do que é preciso para a realização de sua força de trabalho. Sem a
propriedade da terra ou de outro meio de produção, o/a trabalhador/a não terá
outra opção a não ser se entregar às relações impostas pelo mercado no modo de
produção capitalista, exceto sobreviver na informalidade de pequenas relações
comerciais clandestinas.
Na realidade brasileira, sob o sistema do
capital, com nuances de diferença, mas com muitas semelhanças em relação ao
Imperialismo Romano, atualmente o que predomina é o trabalho no sentido de tripalium ou doulos: trabalho escravo, sendo renda capitalizada, em uma espécie
de Servidão Moderna[5], enquanto apenas
uma minoria tem garantido seu direito de trabalhar no sentido de poiesas, trabalho que dignifica a pessoa
humana, pois é criativo e dá asas à criatividade. Segundo Karl Marx, trabalho é
toda ação humana transformadora da natureza.
O apóstolo Paulo buscava a emancipação das
pessoas, da comunidade e da sociedade. Uma pessoa emancipada se gere por
relações autônomas e não heterônimas. Isto é, caminha com as próprias pernas,
pensa com a própria cabeça, não é dominada e nem alienada como massa de manobra
de quem está no poder do status quo opressor.
Emancipar-se exige (com)viver, (inter)agir, trabalhar e criar se guiando por
‘normas’ próprias, o que implica desvencilhar-se das normas de outro, seja
especificamente o patrão que compra a força de trabalho do/a trabalhador/a
pagando apenas o mínimo para que a/o trabalhador/a não morra e possa continuar
servindo-lhe como mercadoria e produzindo acima de tudo mais-valia, seja
obedecendo às normas e leis do modo de produção capitalista imposto pelo capital
e pelos capitalistas.
Atualmente há trabalho análogo à situação de
escravidão não apenas na agricultura sob o regime do agronegócio no campo, mas
principalmente nas grandes cidades sob a intensificação do regime de trabalho.
“O produtivismo, o trabalho por metas, a intensificação do ritmo de trabalho, a
produção o mais rápido possível, a terceirização e a precarização das condições
de trabalho estão desumanizando milhões de pessoas. Aumenta-se assustadoramente
o número de adoecimentos por trabalho extenuante” (MOREIRA, 2016: 204).
Na
luta pela terra, muitas mulheres trabalham muito e são protagonistas. Entre
elas Ricarda Maria Gonçalves da Costa é exemplo de protagonismo de trabalhadora
na luta pela terra. Ricarda narra um pouco da sua história e do que significa
para ela a luta pela terra. Ela diz:
“No êxodo rural da
década de 1960, eu fui expulsa da terra. Saí da região de Novo Horizonte, perto
de Catanduva, SP. Meus pais foram meeiros, mas sem condições de viver. Foi
muito sofrido a gente ser expulso da terra. Saímos de costa lamentando nossa
saída da terra. Em São Paulo, eu fiquei 30 anos lutando para voltar para a
terra. Trabalhando como metalúrgica, eu me envolvi com a luta do sindicato dos
metalúrgicos e no sindicalismo passei a entender porque a gente é oprimida.
Quanto mais a gente lutava, mais a gente era perseguida. Na luta sindical
passamos a entender como é o processo de opressão da classe trabalhadora e da
classe camponesa. Tive que ir trabalhar na área hospitalar e depois tive que
virar mascate, pois a gente não encontrava mais empresa que nos aceitasse. Vim
para São José dos Campos, SP, e, ao contemplar a Serra do Mar e a Serra da
Mantiqueira, eu pensava: ‘Um dia eu pulo essa montanha e vou conquistar uma
terra.’ Um dia, em um evento religioso da renovação carismática da Igreja
Católica, ouvi falar de Campo do Meio, sul de Minas. Eu sou muito religiosa e
sempre orava: “Senhor Deus da vida, eu quero voltar para uma terra, mas onde eu
possa levar tua palavra”. Vim para Campo do Meio, porque ouvi falar que tinha
uma usina de açúcar e álcool parada aqui, onde se arrendava terra para
trabalhar. Tentei arrendar terra na ex-usina Ariadnópolis, mas a mulher do
gerente me negou. Tive que subarrendar de outra arrendatária, mas logo chegou o
MST e iniciamos a luta pela terra aqui nas terras da Ariadnópolis. Nossa
emancipação passa necessariamente pela posse da terra, pela democratização da
terra. Sou feliz quando estou cumprindo minhas tarefas no Movimento, mas o que
mais me dá satisfação é quando eu estou lidando com a mãe terra. Em contato com
a terra a gente ganha energia positiva e saúde, porque a gente alimenta sem
agrotóxico. É indescritível o prazer que a gente sente ao ver um pé de andu
todo carregado, feijão que a gente plantou. Aqui, a gente come o fruto saudável
da semente que a gente planta sem nenhum agrotóxico. No campo, nós não somos
reduzidos a mercadoria. Aqui, a gente produz e goza os frutos do nosso
trabalho. Aqui, os calos em minhas mãos – “veja aqui em minhas mãos!” -, o meu
trabalho é em prol de mim mesma e de meus companheiros e companheiras. Aqui na
roça, se eu canso, paro e descanso, e depois volto a trabalhar feliz. Eu
acredito que a sociedade muda pelo prazer de estar em relação com a terra, o
que é uma dádiva. Lá na cidade, um dia escrevi uma poesia que dizia: As
empresas metalúrgicas me engolem às 06h00 da manhã, sem eu ver o sol nascer, e
me vomitam às 18h00 ou às 20h00, sem eu ver o sol se por, sendo que eu nasci
livre no campo, vendo o sol nascer, vendo o verde da natureza, sentindo o
cheiro e o calor da mãe terra. Nas empresas metalúrgicas, a gente era reduzida
à escravidão. Quando eu ia fazer os cálculos entre o que a gente recebia como
salário e o que os empresários lucravam, eu percebia o tamanho da nossa
exploração lá nas empresas metalúrgicas. Aqui na terra, a gente trabalha feliz.
Aqui na luta pela terra está nosso caminho de emancipação, que nos dá saúde e
libertação. Para convencer uma fatia maior de trabalhadores e camponeses para
engrossar a luta pela terra, a gente tem que integrar a nossa luta com o
urbano, pois muitos trabalhadores urbanos nos veem segundo a mídia que nos
mostra como se a gente fosse marginal. Temos que mostrar o resultado do nosso
trabalho, o companheirismo existente entre nós, o respeito que existe entre nós
e convidar o povo da cidade para vir nos visitar e nos conhecer. Em Campo do
Meio, eu fui acolhida pela renovação carismática, mas quando eu fui para o MST,
algumas amigas se distanciaram de mim quando me viram andando com o boné do MST
e empunhando a bandeira do Movimento. Hoje nós conquistamos respeito, porque
dia 25 de setembro de 2015, mostramos lá na cidade de Campo do Meio o decreto
do governador de Minas, Fernando Pimentel, desapropriando as terras da
Ariadnópolis para nós. Eu fiz um agradecimento em cima do caminhão de som. As
assentadas, como a Lúcia e a Obed, continuam lutando por nós que estamos
acampadas. Mesmo depois de assentada, eu nunca vou parar de lutar pela terra,
pelos sem-terra e em defesa de todo o povo oprimido. Formação permanente do
povo é necessária. Todos precisam entender que somos da classe oprimida. Temos
que exercitar no nosso dia a dia a pedagogia do oprimido. Na luta pela terra,
freando o agronegócio e a superexploração das empresas na cidade, nós estamos
salvando o planeta
(RICARDA MARIA GONÇALVES DA COSTA, Sem Terra há 14 anos acampada no Acampamento
Rosa Luxemburgo, integrante da coordenação da Feira da Agricultura Camponesa de
Campo do Meio, em entrevista a frei Gilvander, dia 02/3/2016).”
A
Sem Terra Ricarda demonstra pelo trabalho e pelo que ensina o que o apóstolo
Paulo defende na 1ª Carta aos Tessalonicenses relativo à importância e ao jeito
de se trabalhar pelo próprio sustento e para não ser peso para os outros. No
final da 1ª carta aos tessalonicenses, Paulo adverte: “Não esqueçam as
profecias!” (1 Ts 5,20). O mesmo nos disse Dom Hélder Câmara e Dom Luciano
Mendes: “Não deixem a profecia cair!. Não esqueçam os pobres!”. Ouçamos as
profetisas e os profetas, quem consola os aflitos e incomoda os injustos.
Referências
MARX,
Karl. O Capital. Edição resumida. 7ª
edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.
MOREIRA,
Gilvander Luís. Laudato si´ e as lutas dos movimentos socioambientais. In:
MURAD, Afonso; TAVARES, Sinivaldo Silva (Org.). Cuidar da Casa Comum: chaves de leitura teológicas e pastorais da
Laudato Si´, p. 197-217. São Paulo: Paulinas, 2016.
MOREIRA, Gilvander Luís. Jesus de
Nazaré e as CEBs: da Solidariedade à luta por Justiça. Por uma pedagogia
emancipatória, p. 64-74. In: FERRARO, Benedito; DORNELAS, Nelito (Org.). CEBs: raízes e frutos ontem e hoje.
Goiânia: Scala Editora, 2014.
Belo Horizonte, MG, 08 de julho de 2017.
[1] Artigo
do livro COSTA, Julieta Amaral da; Moreira, Gilvander Luís; LEITE, Iêda Santos;
DINIZ, Lúcia; SABOYA, Marisa Mourão; PEIXOTO, Western Clay. Comunidade de Tessalônica: fermento do
Reino na grande Cidade – uma leitura da 1ª Carta aos Tessalonicenses feita pelo
CEBI-MG. Belo Horizonte: CEBI-MG, 2017, p. 39-50.
[2]
Padre carmelita, mestre em Exegese Bíblica, doutor em Educação na FAE/UFMG, da coordenação
da CPT/MG, assessor do CEBI, de CEBs, do SAB e de Movimentos Sociais Populares
de luta pela moradia; e-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.freigilvander.blogspot.com.br
- www.gilvander.org.br – www.twitter.com/gilvanderluis -
facebook: Gilvander Moreira III
[3] Cf. 1 Ts 1,1.3.6.8; 2,15.19; 3,11. 12.13.
[4] Cf. 1 Ts 1,4; 2,1.9.14.17; 3,2.7;
4,1.6.10a.10b.13; 5,1.4.12.14.25.26.27.
[5] Filme disponível
na internet no seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=Ybp5s9ElmcY
, acesso em 15/11/2015, às 21h28.
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