A luta pela terra na
região de Governador Valadares, no Vale do ex-rio Doce, de 1940 a 1964: Francisco
Raimundo da Paixão, o Chicão, um camponês imprescindível.
“A revolução que estava programada para o dia
1º de abril, começou dois dias antes em Governador Valadares”. A frase, dita
pelo coronel Altino Machado – ex-delegado de polícia, proprietário rural e um
dos principais coordenadores do movimento paramilitar de Governador Valadares –
dá ideia de como os acontecimentos no imediato pré-golpe transformaram a
chamada Princesinha do Vale em palco privilegiado da radical polarização que
então tomou conta da cena política nacional. A notícia da entrega de títulos da
fazenda do Ministério da Agricultura aos trabalhadores rurais do município
espalhava-se pela cidade. Seus habitantes eram convocados a assistir ao comício
de comemoração, que seria realizado no dia 31 de março de 1964, na própria
fazenda, e para o qual cerca de vinte mil camponeses eram esperados. Um comando
fora especialmente criado para organizar o evento, sob a coordenação do líder
sindical Francisco Raimundo da Paixão, o “Chicão”. Para a manifestação, haviam
recebido recursos da própria Superintendência de Reforma Agrária (SUPRA)25.
Cogitava-se a presença do presidente deste órgão federal, João Pinheiro Neto,
bem como de políticos de toda a região, representantes da CGT, do ministro da
Agricultura, do governador mineiro, e quiçá do presidente da República e do
deputado Leonel Brizola. Diante de tamanha repercussão, os fazendeiros da
região partiram para o conflito aberto: no dia 30 de março atacaram a sede do
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Governador Valadares, que funcionava na
sapataria do Chicão. O confronto desenrolou-se em tiroteio e houve diversos
feridos, como a esposa e a filha de cinco anos do líder camponês (baleada com
um tiro na boca), e uma morte, a de um fazendeiro, genro de um importante líder
ruralista do Vale do Rio Doce. Como resultado, a comemoração camponesa foi
abortada e uma manifestação dos familiares dos latifundiários foi realizada
como prenúncio. Faixas com dizeres moralizantes reproduziam os ideais da Marcha
com Deus pela Pátria e a Família. Ao mesmo tempo, na periferia da cidade, uma
centena de membros dos setores subalternos do campo fazia vigília na sede do
sindicato. Ali, no dia 1º de abril, um novo confronto resultaria no assassinato
dos lavradores Augusto Soares da Cunha e seu pai Otávio Soares Ferreira da
Cunha. Logo em seguida, Chicão e os demais envolvidos na luta pelo direito à
terra sofreriam as consequências mais dramáticas da violência de jagunços e
policiais locais, agora endossados pelo golpe militar.
O Superior Tribunal Militar declarava o
“Estado de Guerra” em Minas Gerais, em processo no qual se convocavam
reservistas para prestarem serviços em Governador Valadares, “localizando e
interceptando elementos comunistas e conduzindo-os à Delegacia”. Um rápido
retrospecto na história de Francisco Raimundo da Paixão e do movimento camponês
na região ajuda a desvelar o crescente acirramento de uma disputa que opunha
duas maneiras de lidar com a terra: a da produção de alimentos e a da
concentração da propriedade privada com atividades agropecuárias extensivas.
Grileiros transformavam-se em grandes fazendeiros ocupando áreas cada vez
maiores com a criação de gado. Com o aval das autoridades locais, expulsavam-se
famílias de posseiros que moravam ali por cerca de quinze anos. A truculência latifundiária
contava com figuras como a do pistoleiro conhecido por “Come Cru” e com
artimanhas, como a difusão de boatarias contra os lavradores. O caso mítico de um
fazendeiro que teria sido obrigado por camponeses a cavar sua própria cova é um
exemplo do “barril de pólvoras” em que se transformara Governador Valadares.
Conforme um antigo ditado da região do Vale
do Rio Doce, os indivíduos que a febre amarela não exterminou, a terra fértil
abrigou. Até os anos 40, a agricultura de subsistência dos posseiros imigrantes
ainda não incomodava os grandes fazendeiros e seus jagunços. Foi quando se
tornou uma das principais áreas da pecuária de corte, e passou a sediar grandes
siderúrgicas e empresas destinadas à extração e à exploração de mica e berilo,
que o ideal da terra como bem ilimitado moveu-se para fronteiras mais distantes
dali. Já em 1955, dez mil camponeses reuniam-se na Praça da Estação, em
Governador Valadares, em manifestação organizada pela Associação dos Lavradores
e Trabalhadores Agrícolas de Pedra Corrida. O mote, “Terra pra fazer fartura”,
sustentava o ideal de reforma agrária que, mais tarde, daria os rumos da luta
de Chicão. Em 1959, o então governador Bias Fortes assinava lei concedendo as terras
devolutas aos latifundiários dos Vales do Rio Doce e do Mucuri. Por este viés, à
medida que os antigos posseiros eram expulsos, aumentavam as áreas de periferia
urbana. Em 1964, o jornal Última Hora calculava que, entre os desabrigados da cidade,
“mais de 13 mil famílias passavam a vida nas favelas, debaixo de marquises dos
prédios, nos passeios e debaixo das pontes”.
Esta foi também a história familiar de
Francisco Raimundo da Paixão, expulso com seus pais da área rural onde moravam
e de onde tiravam seu sustento. Quando, já casado e pai de quatro filhos,
Chicão monta sua pequena sapataria em um bairro periférico de Governador
Valadares, criando ali um eixo nodal do movimento camponês de Valadares, é
acusado pelos ruralistas de não ser um verdadeiro lavrador, mas um “agente
comunista” instaurador da “desordem” e dos ideais “subversivos”. A tentativa de
deslegitimarão da luta ignorava a força que as palavras do líder rapidamente
ganhavam entre posseiros e trabalhadores rurais, exatamente porque carregavam
em sua história individual a marca de todos eles. Em 1961, fundava-se a
primeira associação de lavradores e trabalhadores agrícolas de Governador
Valadares. No mesmo ano, a cidade recebia a vista de Francisco Julião e, em
Belo Horizonte, o I Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas
instigava o debate sobre as formas de organização camponesa em prol da reforma
agrária. Chicão volta da capital mineira com o propósito de fundar o Sindicato
dos Trabalhadores na Lavoura de Governador Valadares, o que ocorre em 1963, com
ajuda do Sindicato dos Trabalhadores da Extração da Mica, e o apoio e a
orientação de militantes do PCB, ao qual Chicão era filiado. Em apenas quinze
dias, mil novecentos e trinta e nove camponeses se sindicalizam. Pouco depois, outros
seis sindicatos de trabalhadores rurais surgem na região.
A participação do Partido Comunista no meio
rural da região de Governador Valadares é evidenciada não apenas pelo vínculo
partidário de algumas lideranças rurais. O jornal O Combate seguia uma linha
editorial comprometida com as lutas sociais e políticas de esquerda,
sintonizado com o PCB, ao qual o jornalista Carlos Olavo, criador do jornal,
era filiado, bem como o advogado Plínio Mendes Martins, colaborador do periódico.
É significativo que Carlos Olavo – depois da experiência de uma série de
reportagens especiais sobre os despejos em massa de posseiros
no
Vale do Rio Doce – tenha deixado Belo Horizonte para viver em Governador Valadares.
O Combate estabeleceu-se como veículo de denúncias e de divulgação questões
ligadas aos conflitos agrários e, publicado com letras vermelhas, alcançou grande
penetração popular29. Contudo, note-se que, longe do que acusavam os opositores
das lutas camponesas, diversas lideranças rurais de projeção guardavam uma importante
autonomia ideológica e intelectual em relação às orientações do Partido. O caso
de Chicão e do movimento camponês em Governador Valadares é, neste sentido,
exemplar. Naquele momento explosivo, a orientação do PCB era fazer dos sindicatos
um espaço de luta por direitos trabalhistas, mas em pouco tempo foi ganhando
força a ideia de tomar a fazenda do Ministério da Agricultura. Foi aí que Chicão
surgiu como o novo presidente do órgão, afastando-se da linha política dos “miqueiros”
(trabalhadores da extração de mica). A “Reforma Agrária na lei ou na marra”,
conforme a palavra de ordem de Julião e das Ligas Camponesas, defendida também
por membros da POLOP, era o que reverberava entre Chicão e os seus (não por
acaso, este seria desligado do partido). Os quase dois mil sindicalizados,
saídos do campo e das favelas de Governador Valadares, faziam ferver a massa e
valer a luta quando falavam na reconquista de suas terras perdidas. Para o
camponês, quem dá valor e direito à terra é o trabalho, não a lógica da
concentração fundiária..Esta ideia, por certo a mais revolucionária de todas,
horrorizava os latifundiários e orientara suas extremadas reações diante do
contexto de mobilizações camponesas e das sinalizações de reforma agrária do
presidente João Goulart. No dia 1º de abril de 1964, os ruralistas da região já
haviam organizado milícias e solicitado ajuda ao Exército. O confronto
imediatamente após o golpe militar teve, entre seus resultados, a prisão
de
Chicão e o empastelamento do jornal O Combate.
O Congresso de Belo
Horizonte.
Testemunha ocular do evento, o jornalista Rui
Facó afirmou: os habitantes de Belo Horizonte eram unânimes em dizer que jamais
haviam assistido a “uma tão grandiosa assembleia” em ambiente fechado. Nas ruas,
alto-falantes transmitiam os discursos dos oradores. O I Congresso Nacional de
Lavradores e Trabalhadores Agrícolas ocorreu na capital mineira entre os dias
15 e 17 de novembro de 1961, e atraiu mil e seiscentos delegados de todo o
país. Sua sessão de encerramento, que contou com palestra do presidente João
Goulart, foi “uma verdadeira avalanche humana”, escreveu o jornalista, e
obrigou os organizadores a suspender o acesso às salas, onde o evento só
terminaria às duas horas da manhã. Promovido pela ULTAB, o Congresso teve a
participação de outras forças comprometidas com a reforma agrária, como o MASTER
(RS) e as Ligas Camponesas (NE). A gama de reivindicações reunia problemas como
o das formas de arrendamento e parceria, a ajuda aos pequenos agricultores,
direitos salariais e direitos de pequenos e médios proprietários. Na época, em
seu relato entusiasmado, Rui Facó publica sobre o que viu no Congresso de BH,
“o ponto de partida de uma situação
nova
que está se criando no campo”: “Sua característica mais marcante foi a união de
pontos de vista quanto à definição do que querem e de como consegui-lo. (...)
Na sessão de encerramento, os cartazes que se espalhavam pelo salão traduziam o
sentimento que se generalizara: ‘Reforma Agrária na lei ou na marra’. (...).
Num dos grupos um camponês, talvez de Minas Gerais, pronto para partir. (...)
Não podia mais obrigar seus pés a aguentar tamanho suplício: talvez pela
primeira vez usasse sapatos. Ia voltar, reintegrar-se com a terra, juntar-se
aos seus vizinhos e companheiros, contar-lhes o espetáculo que fora o
Congresso. (...) Ainda que nada existisse no campo da consciência dos direitos
de classe, estes homens seriam o fermento da revolução camponesa que começa a
se atear no Brasil – para a liquidação completa do latifúndio semifeudal, do
monopólio da terra”.
Referência: FACÓ, Rui. 1994. “O
Congresso Nacional de camponeses decidiu: reforma agrária na lei ou na marra”.
In: Costa, Luiz Flávio Carvalho. O Congresso Nacional Camponês: trabalhadores
rurais no
processo
político brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Universidade Rural Sociedade do Livro.
P.S.: O texto acima consta livro
CARNEIRO, Ana; CIOCCARI, Marta. Retrato
da Repressão Política no Campo – Brasil 1962-1985 – Camponeses torturados,
mortos e desaparecidos. Brasília: MDA, 2010, p. 201-205. Disponível em http://w3.ufsm.br/gpet/files/pageflip-4001789-487363-lt_Retrato_da_Represso_P-9170061.pdf