domingo, 4 de setembro de 2016

A luta pela terra na região de Governador Valadares, no Vale do ex-rio Doce, de 1940 a 1964: Francisco Raimundo da Paixão, o Chicão, um camponês imprescindível.

A luta pela terra na região de Governador Valadares, no Vale do ex-rio Doce, de 1940 a 1964: Francisco Raimundo da Paixão, o Chicão, um camponês imprescindível.


“A revolução que estava programada para o dia 1º de abril, começou dois dias antes em Governador Valadares”. A frase, dita pelo coronel Altino Machado – ex-delegado de polícia, proprietário rural e um dos principais coordenadores do movimento paramilitar de Governador Valadares – dá ideia de como os acontecimentos no imediato pré-golpe transformaram a chamada Princesinha do Vale em palco privilegiado da radical polarização que então tomou conta da cena política nacional. A notícia da entrega de títulos da fazenda do Ministério da Agricultura aos trabalhadores rurais do município espalhava-se pela cidade. Seus habitantes eram convocados a assistir ao comício de comemoração, que seria realizado no dia 31 de março de 1964, na própria fazenda, e para o qual cerca de vinte mil camponeses eram esperados. Um comando fora especialmente criado para organizar o evento, sob a coordenação do líder sindical Francisco Raimundo da Paixão, o “Chicão”. Para a manifestação, haviam recebido recursos da própria Superintendência de Reforma Agrária (SUPRA)25. Cogitava-se a presença do presidente deste órgão federal, João Pinheiro Neto, bem como de políticos de toda a região, representantes da CGT, do ministro da Agricultura, do governador mineiro, e quiçá do presidente da República e do deputado Leonel Brizola. Diante de tamanha repercussão, os fazendeiros da região partiram para o conflito aberto: no dia 30 de março atacaram a sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Governador Valadares, que funcionava na sapataria do Chicão. O confronto desenrolou-se em tiroteio e houve diversos feridos, como a esposa e a filha de cinco anos do líder camponês (baleada com um tiro na boca), e uma morte, a de um fazendeiro, genro de um importante líder ruralista do Vale do Rio Doce. Como resultado, a comemoração camponesa foi abortada e uma manifestação dos familiares dos latifundiários foi realizada como prenúncio. Faixas com dizeres moralizantes reproduziam os ideais da Marcha com Deus pela Pátria e a Família. Ao mesmo tempo, na periferia da cidade, uma centena de membros dos setores subalternos do campo fazia vigília na sede do sindicato. Ali, no dia 1º de abril, um novo confronto resultaria no assassinato dos lavradores Augusto Soares da Cunha e seu pai Otávio Soares Ferreira da Cunha. Logo em seguida, Chicão e os demais envolvidos na luta pelo direito à terra sofreriam as consequências mais dramáticas da violência de jagunços e policiais locais, agora endossados pelo golpe militar.
O Superior Tribunal Militar declarava o “Estado de Guerra” em Minas Gerais, em processo no qual se convocavam reservistas para prestarem serviços em Governador Valadares, “localizando e interceptando elementos comunistas e conduzindo-os à Delegacia”. Um rápido retrospecto na história de Francisco Raimundo da Paixão e do movimento camponês na região ajuda a desvelar o crescente acirramento de uma disputa que opunha duas maneiras de lidar com a terra: a da produção de alimentos e a da concentração da propriedade privada com atividades agropecuárias extensivas. Grileiros transformavam-se em grandes fazendeiros ocupando áreas cada vez maiores com a criação de gado. Com o aval das autoridades locais, expulsavam-se famílias de posseiros que moravam ali por cerca de quinze anos. A truculência latifundiária contava com figuras como a do pistoleiro conhecido por “Come Cru” e com artimanhas, como a difusão de boatarias contra os lavradores. O caso mítico de um fazendeiro que teria sido obrigado por camponeses a cavar sua própria cova é um exemplo do “barril de pólvoras” em que se transformara Governador Valadares.
Conforme um antigo ditado da região do Vale do Rio Doce, os indivíduos que a febre amarela não exterminou, a terra fértil abrigou. Até os anos 40, a agricultura de subsistência dos posseiros imigrantes ainda não incomodava os grandes fazendeiros e seus jagunços. Foi quando se tornou uma das principais áreas da pecuária de corte, e passou a sediar grandes siderúrgicas e empresas destinadas à extração e à exploração de mica e berilo, que o ideal da terra como bem ilimitado moveu-se para fronteiras mais distantes dali. Já em 1955, dez mil camponeses reuniam-se na Praça da Estação, em Governador Valadares, em manifestação organizada pela Associação dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas de Pedra Corrida. O mote, “Terra pra fazer fartura”, sustentava o ideal de reforma agrária que, mais tarde, daria os rumos da luta de Chicão. Em 1959, o então governador Bias Fortes assinava lei concedendo as terras devolutas aos latifundiários dos Vales do Rio Doce e do Mucuri. Por este viés, à medida que os antigos posseiros eram expulsos, aumentavam as áreas de periferia urbana. Em 1964, o jornal Última Hora calculava que, entre os desabrigados da cidade, “mais de 13 mil famílias passavam a vida nas favelas, debaixo de marquises dos prédios, nos passeios e debaixo das pontes”.
Esta foi também a história familiar de Francisco Raimundo da Paixão, expulso com seus pais da área rural onde moravam e de onde tiravam seu sustento. Quando, já casado e pai de quatro filhos, Chicão monta sua pequena sapataria em um bairro periférico de Governador Valadares, criando ali um eixo nodal do movimento camponês de Valadares, é acusado pelos ruralistas de não ser um verdadeiro lavrador, mas um “agente comunista” instaurador da “desordem” e dos ideais “subversivos”. A tentativa de deslegitimarão da luta ignorava a força que as palavras do líder rapidamente ganhavam entre posseiros e trabalhadores rurais, exatamente porque carregavam em sua história individual a marca de todos eles. Em 1961, fundava-se a primeira associação de lavradores e trabalhadores agrícolas de Governador Valadares. No mesmo ano, a cidade recebia a vista de Francisco Julião e, em Belo Horizonte, o I Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas instigava o debate sobre as formas de organização camponesa em prol da reforma agrária. Chicão volta da capital mineira com o propósito de fundar o Sindicato dos Trabalhadores na Lavoura de Governador Valadares, o que ocorre em 1963, com ajuda do Sindicato dos Trabalhadores da Extração da Mica, e o apoio e a orientação de militantes do PCB, ao qual Chicão era filiado. Em apenas quinze dias, mil novecentos e trinta e nove camponeses se sindicalizam. Pouco depois, outros seis sindicatos de trabalhadores rurais surgem na região.
A participação do Partido Comunista no meio rural da região de Governador Valadares é evidenciada não apenas pelo vínculo partidário de algumas lideranças rurais. O jornal O Combate seguia uma linha editorial comprometida com as lutas sociais e políticas de esquerda, sintonizado com o PCB, ao qual o jornalista Carlos Olavo, criador do jornal, era filiado, bem como o advogado Plínio Mendes Martins, colaborador do periódico. É significativo que Carlos Olavo – depois da experiência de uma série de reportagens especiais sobre os despejos em massa de posseiros
no Vale do Rio Doce – tenha deixado Belo Horizonte para viver em Governador Valadares. O Combate estabeleceu-se como veículo de denúncias e de divulgação questões ligadas aos conflitos agrários e, publicado com letras vermelhas, alcançou grande penetração popular29. Contudo, note-se que, longe do que acusavam os opositores das lutas camponesas, diversas lideranças rurais de projeção guardavam uma importante autonomia ideológica e intelectual em relação às orientações do Partido. O caso de Chicão e do movimento camponês em Governador Valadares é, neste sentido, exemplar. Naquele momento explosivo, a orientação do PCB era fazer dos sindicatos um espaço de luta por direitos trabalhistas, mas em pouco tempo foi ganhando força a ideia de tomar a fazenda do Ministério da Agricultura. Foi aí que Chicão surgiu como o novo presidente do órgão, afastando-se da linha política dos “miqueiros” (trabalhadores da extração de mica). A “Reforma Agrária na lei ou na marra”, conforme a palavra de ordem de Julião e das Ligas Camponesas, defendida também por membros da POLOP, era o que reverberava entre Chicão e os seus (não por acaso, este seria desligado do partido). Os quase dois mil sindicalizados, saídos do campo e das favelas de Governador Valadares, faziam ferver a massa e valer a luta quando falavam na reconquista de suas terras perdidas. Para o camponês, quem dá valor e direito à terra é o trabalho, não a lógica da concentração fundiária..Esta ideia, por certo a mais revolucionária de todas, horrorizava os latifundiários e orientara suas extremadas reações diante do contexto de mobilizações camponesas e das sinalizações de reforma agrária do presidente João Goulart. No dia 1º de abril de 1964, os ruralistas da região já haviam organizado milícias e solicitado ajuda ao Exército. O confronto imediatamente após o golpe militar teve, entre seus resultados, a prisão
de Chicão e o empastelamento do jornal O Combate.

O Congresso de Belo Horizonte.
Testemunha ocular do evento, o jornalista Rui Facó afirmou: os habitantes de Belo Horizonte eram unânimes em dizer que jamais haviam assistido a “uma tão grandiosa assembleia” em ambiente fechado. Nas ruas, alto-falantes transmitiam os discursos dos oradores. O I Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas ocorreu na capital mineira entre os dias 15 e 17 de novembro de 1961, e atraiu mil e seiscentos delegados de todo o país. Sua sessão de encerramento, que contou com palestra do presidente João Goulart, foi “uma verdadeira avalanche humana”, escreveu o jornalista, e obrigou os organizadores a suspender o acesso às salas, onde o evento só terminaria às duas horas da manhã. Promovido pela ULTAB, o Congresso teve a participação de outras forças comprometidas com a reforma agrária, como o MASTER (RS) e as Ligas Camponesas (NE). A gama de reivindicações reunia problemas como o das formas de arrendamento e parceria, a ajuda aos pequenos agricultores, direitos salariais e direitos de pequenos e médios proprietários. Na época, em seu relato entusiasmado, Rui Facó publica sobre o que viu no Congresso de BH, “o ponto de partida de uma situação
nova que está se criando no campo”: “Sua característica mais marcante foi a união de pontos de vista quanto à definição do que querem e de como consegui-lo. (...) Na sessão de encerramento, os cartazes que se espalhavam pelo salão traduziam o sentimento que se generalizara: ‘Reforma Agrária na lei ou na marra’. (...). Num dos grupos um camponês, talvez de Minas Gerais, pronto para partir. (...) Não podia mais obrigar seus pés a aguentar tamanho suplício: talvez pela primeira vez usasse sapatos. Ia voltar, reintegrar-se com a terra, juntar-se aos seus vizinhos e companheiros, contar-lhes o espetáculo que fora o Congresso. (...) Ainda que nada existisse no campo da consciência dos direitos de classe, estes homens seriam o fermento da revolução camponesa que começa a se atear no Brasil – para a liquidação completa do latifúndio semifeudal, do monopólio da terra”.

Referência: FACÓ, Rui. 1994. “O Congresso Nacional de camponeses decidiu: reforma agrária na lei ou na marra”. In: Costa, Luiz Flávio Carvalho. O Congresso Nacional Camponês: trabalhadores rurais no
processo político brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Universidade Rural Sociedade do Livro.


P.S.: O texto acima consta livro CARNEIRO, Ana; CIOCCARI, Marta. Retrato da Repressão Política no Campo – Brasil 1962-1985 – Camponeses torturados, mortos e desaparecidos. Brasília: MDA, 2010, p. 201-205. Disponível em http://w3.ufsm.br/gpet/files/pageflip-4001789-487363-lt_Retrato_da_Represso_P-9170061.pdf

sábado, 3 de setembro de 2016

A luta pela terra em Três Marias, MG, de 1959 a 1964: Liga Camponesa com a liderança de Randolfo Fernandes de Lima.

A luta pela terra em Três Marias, MG, de 1959 a 1964: Liga Camponesa com a liderança de Randolfo Fernandes de Lima.


“Da outra margem do rio havia um mato muito bom. Procurei saber de quem eram aquelas terras”, conta Randolfo Fernandes de Lima. E pediu para trabalhar por ali como arrendatário. Em 1959, o homem que diziam ser o dono daquela grande área não cultivada recusou a proposta. Ciente de que, pela Lei, a União tem domínio sobre até trinta metros às margens dos rios navegáveis, Randolfo decidiu ocupar uma gleba daquelas à beira do São Francisco, no estado de Minas Gerais, a dois quilômetros da barragem de Três Marias. Tomou posse da área junto a outras famílias, em um total de cento e vinte pessoas. Construíram seus ranchos e passaram a plantar arroz, feijão, milho, mandioca, cana, banana e hortaliças. Em pouco tempo, outras famílias uniram-se à empreitada de Randolfo. A reação do pretenso dono não tardou.
Em 1961, vieram os representantes dos fazendeiros: oficiais de Justiça munidos de um mandado de reintegração de posse e capangas armados. Além de expulsos, os posseiros tiveram suas roças e casas destruídas, tendo que se deslocar para a localidade de “Córrego Seco”, onde, como sugeria o nome, viveram à míngua, sem ter como cultivar. Mas o movimento dos posseiros ali se consolidava, fundando-se na consciência de que fortaleciam um movimento social de âmbito nacional. Era o ano do I Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, realizado em Belo Horizonte (conhecido por Congresso de Belo Horizonte), e no qual compareceram nada menos do que trezentos e seis representantes da então recém criada Associação de Lavradores de Três Marias. O conflito às margens do rio São Francisco transformava-se assim em luta política de toda uma classe. Na fundação da associação, a causa dos camponeses posseiros respaldava-se pela presença de quinhentas pessoas, entre lavradores e figuras notórias, como o professor Tiago Cintra, o líder camponês Jôfre Correia, o deputado do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) Hernani Maia e o advogado Romanelli. Sob forte tensão, foram todos ameaçados por um grupo de jagunços que gritavam “os cubanos estão aqui!”; “eles são comunistas!”. Mas a luta não esmoreceu. Ao contrário, ganharam de volta o direito à posse e, a partir daí, articularam-se a diversas forças políticas de esquerda, como as Ligas Camponesas com a visita de Francisco Julião, o PCB, a AP, e a POLOP.
Com três mil membros, a associação transformou-se no Sindicato Rural dos Produtores Autônomos de Três Marias. Em 1963, perderam na Justiça o direito a permanecer nas terras, mas, em resposta à carta aberta destinada ao presidente da Superintendência da Reforma Agrária (SUPRA), João Pinheiro Neto, obtiveram a intervenção favorável direta do presidente João Goulart. Por meio de Decreto, Jango anula a decisão judicial, destinando a terra “à fixação dos camponeses que ali se encontram trabalhando e produzindo, tendo em vista solucionar gravíssimo problema social.” A notícia repercutiu e, em reportagem do Estado de Minas, os fazendeiros prometiam reação. O golpe militar viria em seguida. Randolfo Fernandes e outros líderes de Três Marias foram presos, os demais camponeses, de uma vez por todas expulsos de suas terras.


P.S.: O texto acima consta livro CARNEIRO, Ana; CIOCCARI, Marta. Retrato da Repressão Política no Campo – Brasil 1962-1985 – Camponeses torturados, mortos e desaparecidos. Brasília: MDA, 2010, p. 199-201. Disponível em http://w3.ufsm.br/gpet/files/pageflip-4001789-487363-lt_Retrato_da_Represso_P-9170061.pdf