Jesus de Nazaré e as CEBs: da Solidariedade à
luta por Justiça. Por uma
pedagogia emancipatória. (1ª parte).
“O
camponês de Nazaré, nessa luta nos reuniu. Vem conosco caminhar, pela Terra
Livre Brasil...” (Hino do 3º
Congresso da PJR)
"Nada a temer senão o correr da luta / Nada a fazer senão esquecer o medo / Abrir o peito à força, numa procura / fugir às armadilhas da mata escura.” (Música Caçador de mim, de Milton Nascimento).
1 - A partir de uma experiência pessoal e
social.
Nasci
na roça, no campo. Fiz muitos calos nas mãos no cabo da enxada tocando roça à
meia ao lado do papai José Moreira e da mamãe Leontina. Na hora da colheita,
quando via o fazendeiro levar no caminhão a metade da nossa safra e quase toda
a outra metade também, porque contraíamos dívida na sede da fazenda onde
comprávamos, do plantio à colheita, açúcar, café, sal, remédios etc, dentro de
mim, ainda criança, gritava uma voz: “Deus
não quer isso. Isso não é justo.” Trago na minha memória essa indignação
diante da opressão do latifúndio e dos latifundiários. Saí da roça, mas a roça
não saiu de mim.
2 - Deus na história, o divino no humano.
O Deus do
cristianismo é um Deus da história, quer dizer, age nas entranhas dos fatos e
dos acontecimentos. O Deus da vida, mistério de infinito amor, não faz mágica.
Desde que Deus, por infinito amor à humanidade, encarnou-se, o divino está no
humano.
O Concílio de
Calcedônia, no ano de 451, reconheceu Jesus Cristo com “natureza” divina
e humana. O apóstolo Paulo reconhece que Jesus é o Cristo, filho de
Deus, mas “nascido de mulher” (Gal 4,4), ou seja, humano como nós desenvolveu
seu infinito potencial de humanidade. “Jesus, de tão humano, se tornou divino,”
dizia o papa João XXIII.
“Não é
ele o filho de Maria e José, o carpinteiro (Mt 13,55)?”.
Progressivamente, na Galileia, Samaria e Judéia, Jesus se revela, à primeira
vista, em aparentes contradições, mas, no fundo, com tal equilíbrio que chama a
atenção de todos. Assim, ele testemunha que Deus é mais interior a nós do que
imaginamos. A mística “encarnatória” revela a pessoa humanamente divina e
divinamente humana. “Quem me vê, vê o Pai (Jo 14,9)”.
Jesus, antes de se
tornar mestre, foi discípulo, mas como mestre continuou aprendendo. Antes de
ensinar, aprendeu muito com muitos: com Maria e José, com o povo da sinagoga,
com os vizinhos, amigos, com os acontecimentos históricos, com a natureza etc.
Somos discípulos/as
de um jovem camponês, da periferia, que foi condenado à pena de morte pelos
podres poderes da política, da economia e da religião. Somos discípulos de um
mártir. Feliz quem não esquece a vida, o testemunho e o ensinamento dos
mártires.
Jesus compreende a
mulher acusada de adultério, mas ferve o sangue de ira santa contra os
vendilhões do templo.
3 – Seis características da pedagogia emancipatória de
Jesus de Nazaré, fundamentação bíblica para as Comunidades Eclesiais de Base
(CEBs) na práxis da Solidariedade à luta por Justiça.
Jesus
não nos salva automaticamente, mas testemunha um jeito de viver, melhor
dizendo, um jeito de conviver, que é libertador e salvador. Vital é prestarmos
atenção no jeito e como Jesus ensina e atua. Faz bem prestarmos atenção no
processo pedagógico efetivado por Jesus, processo esse que será base bíblica
para o povo das Comunidades Eclesiais de Base ser militante do Reino de Deus da
solidariedade à luta por Justiça. Trata-se de uma Pedagogia emancipatória com
muitas características, entre as quais, destacamos aqui seis.
3.1) Luta a partir da periferia, a partir dos
injustiçados.
O Evangelho de Lucas interpreta a vida, as ações e os ensinamentos de Jesus ao
longo de uma grande caminhada da Galileia até Jerusalém, ou seja, da periferia
geográfica e social ao centro econômico, político, cultural e religioso da
Palestina. A Palavra, no Evangelho de Lucas, é a palavra de um leigo, de um
camponês galileu, “alguém de Nazaré”, pessoa simples, pequena, alguém que vem
da grande tribulação. Não é palavra de sumo sacerdote, nem do poder.
3.2) Prioriza a formação de base. Nessa grande viagem,
subida para Jerusalém, Jesus prioriza a formação dos discípulos e das discípulas.
Ele percebe que não tem mais aquela adesão incondicional da primeira hora.
Jesus descobriu que para consolar os aflitos era necessário incomodar os
acomodados e denunciar as pessoas e as estruturas injustas e corruptas. Assim,
o jovem de Nazaré começou a perder apoio popular. Era necessário caprichar na
formação de um grupo menor que pudesse garantir os enfrentamentos que se
avolumavam. Jesus sabia muito bem que em Jerusalém estava o centro dos poderes
religioso, econômico, político e judiciário. Lá travaria o maior embate.
3.3) Não foge do combate. O Evangelho de Lucas
diz: Jesus, cheio do Espírito, em uma proposta periférica alternativa, vai, em
uma caminhada, de Nazaré a Jerusalém; ou seja, vai da periferia para o centro,
caminhando no Espírito. Em Jerusalém acontece um confronto entre o projeto de
Jesus e o projeto oficial. Este tenta matar o projeto de Jesus (e de seu
movimento) condenando-o à morte na cruz. Mas o Espírito é mais forte que a
morte. Jesus ressuscita. No final do Evangelho de Lucas, Jesus diz aos
discípulos: “Permaneçam em Jerusalém até
a vinda do Espírito Santo” (Lc 24,49).
3.4) Sempre em movimento. Seguir Jesus exige
uma dinâmica de permanente movimento. A sociedade capitalista leva-nos a buscar
segurança, o que é uma farsa. É hora de aprendermos a seguir Jesus de forma
humilde e vulnerável, porém mais autêntica e real. Isso não quer dizer distrair
com costumes e obrigações que provêm do passado, mas não ajudam a construir uma
sociedade justa, solidária e sustentável ecologicamente.
3.5) Anda na contramão. Seguir Jesus implica andar na
contramão, remar contra a correnteza de tantos fundamentalismos e da idolatria
do consumismo. Exige também rebeldia, coragem, audácia diante de costumes que
entortam o queixo e de modas que aniquilam o infinito potencial humano
existente em nós.
3.6) Sabe a hora de conviver e a hora
de lutar.
O Evangelho de Lucas apresenta dois envios de discípulos para a missão. No
primeiro envio (Lc 10,1-11), Jesus indicou aos discípulos que fossem despojados
e desarmados para o campo de missão. Assim deve ser todo início de missão:
conhecer, conviver, estabelecer amizades, cativar, assumir a cultura do outro,
tornar-se um/a irmã/ão entre as/os irmãs/ãos para que seja reconhecido como “um
dos nossos”. No segundo envio (Lc 22,35-38), em hora de luta e combate, Jesus
sugere que os discípulos devem ir preparados para a resistência. Por isso “pegar bolsa e sacola, uma espada – duas no
máximo.” (Lc 22,36-38). Durante a evolução da missão, chega a hora em que
não basta esbanjar ternura, graciosidade e solidariedade. É preciso partir para
a luta coletiva, pois as injustiças precisam ser denunciadas. Ao tomar partido
e “dar nomes aos bois” irrompem-se as divisões e desigualdades existentes na
realidade. Os incomodados tendem naturalmente a querer calar quem os está
incomodando. É a hora das perseguições que exigem resistência. Confira a
trajetória de vida dos/as mártires da caminhada: Padre Josimo, Padre Ezequial Ramin,
Chico Mendes, Margarida Alves, Sem Terra de Eldorado dos Carajás, Irmã Dorothy
Stang, Santo Dias, Chicão Xucuru, Padre Gabriel, padre Henrique, João Canuto
etc.