O bom Samaritano (Lc 10,25-37) entre o
escriba e o dono da pensão. E a identidade do próximo?
Gilvander Luís
Moreira[1]
Para uma
interpretação sensata e libertadora do episódio-parábola do Bom Samaritano (Lc
10,25-37) é preciso, entre vários exercícios, analisar a postura do escriba e a
do dono da pensão, a identidade do próximo e as consequências das ações do bom
samaritano. Eis o que segue.
O escriba diante do bom samaritano.
Em Lc 10,25-37, Jesus está contando o episódio-parábola para
um escriba, que não foi citado no grupo dos não misericordiosos. Ao falar
diretamente dos companheiros, Jesus mandou um recado para seu interlocutor: o
escriba. Não lhe joga na cara que ele é insensível e não misericordioso, mas
dialoga e o faz refletir, com base na prática cheia de compaixão e misericórdia
de alguém que se faz próximo gratuitamente, o que desconcerta o escriba. O que
coloca em xeque a mentalidade do escriba não é o discurso, mas o testemunho de alguém compassivo e
misericordioso, que não é Jesus, nem Deus, mas um samaritano: estrangeiro, considerado
herege e impuro, discriminado, tachado de pagão, um “bárbaro”; enfim, um injustiçado.
Esse grupo dos não misericordiosos
desconsidera o interesse pedagógico de Jesus no episódio-parábola. Jesus
estrategicamente não coloca um escriba no lugar do sacerdote ou do levita para
deixar aberta a possibilidade de dialogar com ele, pois seu objetivo é
cativá-lo para se tornar um verdadeiro discípulo. Jesus não o exclui a priori.
O dono da pensão tem um papel importante no
episódio-parábola, pois é ele quem viabiliza a continuação da viagem do
samaritano, possibilita-lhe partir sem deixar nome nem endereço, assim, ser
solidário de modo gratuito e libertador, sem criar com o excluído uma relação
de dependência que pudesse ter ou esperar recompensa. Sem o dono da pensão,
seria difícil para o samaritano deixar o homem semimorto recuperando-se. Sem a
continuidade dos cuidados, a “ajuda” do samaritano seria paliativa e poderia
resultar insuficiente. Se interrompesse completamente sua viagem até o ferido
se recuperar, certamente criaria um laço de dependência entre eles. Jesus e
Lucas não defendem “solidariedade paliativa”, que cria dependência. A figura do
dono da pensão é uma “ponte” que possibilita ao episódio-parábola ser uma
“estrela” indicando como amar de modo verdadeiramente eficaz e desinteressado.
O samaritano não exigiu que o dono da pensão
fosse solidário gratuitamente como ele foi. O samaritano tenta cativar o outro
para também entrar na dinâmica da compaixão e misericórdia, mas sem impor nada.
Ao pagar os dois denários, ele manifesta amor com toda sua “força”. Esta, na
interpretação judaica, refere-se aos bens econômicos. O samaritano reconhece a
alteridade e a autonomia do dono da pensão, o qual tem o direito de ser e agir
de modo diferente. Aqui aparece mais uma qualidade da solidariedade do
samaritano: a humildade. Ele não diz para o dono da pensão: “Faça como eu fiz!” ou “Fiz a minha parte;
agora é a sua vez”, o que seria arrogância disfarçada de gratuidade. Não
faz proselitismo da sua ação e crença religiosa.
Esta identidade não é
neutra. Um violentado, que está “entre a vida e a morte”, define a identidade
de cada um dos personagens de Lc 10,25-37. Constatamos que o samaritano é um
estrangeiro, um desqualificado, segundo a compreensão judaica; não é um
familiar; é um viajante. Mesmo assim se comove ao ver a vítima. Enquanto o
sacerdote e o levita se distanciam, ele se aproxima do ferido.
O relato não diz as
razões que levaram o samaritano a comover-se. Ele apenas se aproximou para
cuidar do homem semimorto. “Mas a
ausência de motivos para a atitude dos atores não implica ausência de lógica
fundamental da ‘postura’ do samaritano”.[2]
“Próximo” não é aquele que se aproxima, mas é aquele que se aproxima de imediato, aparentemente sem motivos.
Interrompe “a sua viagem”. Sabe onde levar o ferido. Age como quem tem
experiência, sem duvidar. Demonstra confiança: “Quando eu voltar vou pagar o que ele tiver gasto a mais” (Lc
10,35). “Entre o samaritano e o dono da
pensão reina a confiança”.[3]
O dono da pensão não procura conhecer a identidade do ferido.
Os bens que o
samaritano põe à disposição do homem para a cura - o óleo, o vinho, sua própria montadura, os dois denários -
não aparecem como perda. Não se afirma que o samaritano perdeu tempo, nem
quanto tal ação lhe custou. O óleo e o vinho são frutos da terra e do trabalho
humano, provavelmente dele. Logo, ele trata o ferido com o fruto do seu próprio
trabalho e não se sacrifica nesse processo. O “perdido” será recuperado com seu
próprio trabalho.
O samaritano “ordena”
que o dono da pensão cuide do ferido, porque para um dono de pensão o desejo de
um cliente é uma ordem, mas é sempre remunerado pelo que faz.
O ferido é colocado no
caminho para reestruturar a sua identidade pessoal. O samaritano “sabe” chegar e sabe “desaparecer” na hora oportuna. Ele não
deixa seu nome nem seu endereço, é uma figura de alteridade; ele impede “uma submissão a sua pessoa e uma fixação no
passado”.[4] Não
exigindo reconhecimento, evita “sacrificar
no altar do seu desejo o homem ferido”, diria a psicanálise. O ferido é restaurado sem sacrifício próprio. O
sacerdote e o levita são identificados, em oposição ao samaritano, no
episódio-parábola, pela função que exercem no templo: sacrificar e celebrar o
culto.
No versículo 36, Jesus
redimensiona a pergunta - Quem se fez próximo? E não mais, Quem é meu próximo?
Não levanta mais a pergunta de modo absoluto, mas de uma situação concreta,
onde a vida de uma pessoa estava em perigo. É com base no “lugar” onde um homem
se confronta com outro caído, à margem, excluído, que se pode identificar o
próximo.[5]
Jesus diz ao escriba: “Vá, e faça a mesma coisa”. Com esse
imperativo, Jesus chama o escriba a uma conversão radical. Ele deve sair de si
mesmo, igualar-se ao samaritano e fazer o que este fez.
Belo
Horizonte, MG, Brasil, 09 de setembro de 2013.
Frei
Gilvander Moreira – www.gilvander.org.br
– www.freigilvander.blogspot.com.br
Facebook:
Gilvander Moreira
[1]
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela
UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo
Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutorando em Educação pela
FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, SAB e Via Campesina; conselheiro do Conselho
Estadual dos Direitos Humanos de Minas Gerais – CONEDH; e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br
– www.gilvander.org.br – www.twitter.com/gilvanderluis -
Facebook: Gilvander Moreira
Obs.: Esse texto é a “7ª
parte” do artigo “Seguir Jesus, desafio que exige compromisso”, de Gilvander
Luís Moreira, publicado no livro “RECRIAR
O CAMINHO com as Comunidades de Lucas, uma leitura do Evangelho de Lucas feita
pelo CEBI-MG, São Leopoldo, CEBI, 2013, pp. 48-77.
[2] Rodet,
La Parabole du Samaritain..., cit., p. 25.
[3] Idem, ibidem, p. 25.
[4] Idem, ibidem, p. 27.
[5] Proposta semelhante é apresentada em Mt
25,35.39.43-44, em que se diz que é no confronto com os excluídos que se define
a participação no reino dos céus.
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