Quarentena para
salvar vidas
Por Gilvander Moreira[1]
Ilustração de Rita Wainer e Júlia Gastin sobre o isolamento social causado pelo coronavírus. Divulgação / Rede Virtual |
“Fique
em casa!”. Esse é o alerta dado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), pelas
autoridades sanitárias sensatas e pelas jurisdições éticas e responsáveis. “Um
grito pode salvar a boiada”, diz a sabedoria popular. Ficar em casa, em
quarentena, até debelarmos a transmissão comunitária do coronavírus é
necessário, vital e imperativo ético. O despresidente do Brasil, que está
desgovernando nosso país, por meio de atitudes deprimentes, irresponsáveis e
criminosas, ao desdenhar da ciência e da OMS, continua incitando o povo a
entrar na fila do matadouro. Ignorem-no! A história nos mostra que a pandemia
que teve início em 1918, a do vírus influenza, chamada erroneamente de “gripe
espanhola”, infectou 500 milhões de pessoas e matou mais de 50 milhões de seres
humanos, um quarto da população mundial à época, há 102 anos, entre 1918 e 1920.
O ex-presidente do Brasil, Rodrigues Alves, morreu, vítima desta pandemia,
inclusive.
O
conto A Roupa Nova do Rei, de Hans
Christian Andersen, de 1837, versa sobre um rei ensimesmado e narcísico, que
passava o tempo só trocando de roupas e se exibindo. Se dizendo tecelões, dois artistas
chegaram diante do rei e prometeram-lhe fazer a roupa mais maravilhosa do
mundo, capaz de lhe tornar invisível diante das pessoas que não fossem capazes
de exercer as funções reais e diante dos tolos. O rei pensou: “Com essa roupa controlarei todo
o povo, espionando quem é incompetente e serei temido pelos medrosos e
aplaudido pelos tolos.” Após o rei fornecer muita seda pura e uma infinidade de
fios de ouro, os dois artistas seguiram ludibriando o rei. Despiram-no e lhe
fizeram acreditar que estava vestindo uma roupa imaginária maravilhosa. Após, o
rei narcísico saiu em cortejo pela cidade, onde muitos temendo contrariá-lo elogiavam
mentirosamente a beleza de sua nova roupa. Diz o conto: “Até que subitamente uma criança, do meio da multidão gritou: O rei está
nu!!! “Ouçam! Ouçam o que diz esta criança inocente!” - observou o pai a
quantos o rodeavam. Imediatamente o povo começou a cochichar entre si. “0 rei
está nu! O rei está nu!!”- começou a gritar o povo”.
Grandes
empresários, banqueiros, investidores e capitalistas em geral – elite escravocrata
-, tal como no conto A Roupa Nova do Rei
estão nus e desesperados. Nunca se demonstrou com tanta evidência que é a
classe trabalhadora do campo e da cidade que produz tudo com sua força de
trabalho a partir da mãe terra e de toda a natureza. Cegados e obcecados pela ganância em acumular
capital, os capitalistas, como capitães do mato, incitam parte da classe
trabalhadora a voltar ao trabalho e a abandonar a quarentena. Não caiam nesta
armadilha! Eles dizem que o coronavírus é uma ‘gripezinha”, porque querem
continuar lucrando e acumulando capital. Eles sabem muito bem que o coronavírus
já matou em todo o mundo mais de 38 mil pessoas e matará milhões, provavelmente.
No Brasil já são mais de 200 mortos. É hora de combatermos a ignorância e os
interesses escusos de quem, de forma criminosa, incita o desrespeito à
quarentena. Estima-se que no Brasil, pelo coronavírus, podem morrer de 50 mil a
um milhão de pessoas. Portanto, quem está dizendo que o povo não precisa ficar
em quarentena, que não deve se precaver, está maquinando a morte de milhares de
seres humanos. Isso é necropolítica, é fascismo, é nazismo, é crime de lesa-humanidade.
Se a quarentena não for levada a sério por todo o povo brasileiro agora, sem
vacilar, quando a mortandade de pessoas se alastrar, teremos que fazer
quarentena aos prantos com uma espada de dor transpassando o coração pela morte
de muitos parentes, amigos e outras milhares de pessoas, senão milhões, isso só
para falar no nosso querido Brasil.
Segundo
a Bíblia, as “pragas” do tempo do Êxodo do povo escravizado pelo imperialismo
dos faraós do Egito eram pragas, mas também maravilhas. Para os opressores eram
pragas, porque desmascarava a violência perpetrada contra o povo e exigia
conversão, mas para o povo escravizado eram maravilhas, porque era caminho para
a superação da escravidão. Como Deus solidário e libertador, Javé enviou nas
entranhas da história uma praga/maravilha propondo conversão. Como a conversão
não veio, tornou-se necessário a segunda praga/maravilha e sucessivamente até a
‘décima’ praga/maravilha até a libertação do povo passando pelo mar vermelho.
Além do mais, as tais “pragas”, no mundo antigo, não eram castigo de Deus, mas
o resultado de situações críticas naturais ou políticas: a fome era o resultado
de toda estiagem prolongada e peste nas plantações, assim como a morte dos
jovens era o efeito da ação militarista e beligerante dos governantes. Logo, o
coronavírus não é castigo de Deus, pode ser praga ou maravilha para a
humanidade, dependendo da forma como o encaramos e das lições que tiraremos
dessa pandemia. Eliane Brum, uma das melhores jornalistas do Brasil, no artigo O vírus somos nós (ou uma parte de nós),
alerta: “O futuro está em disputa: pode
ser Gênesis ou Apocalipse (ou apenas mais da mesma brutalidade)”. Brum
aponta o rumo: “A pandemia de coronavírus
revelou que somos capazes de fazer mudanças radicais em tempo recorde. A
aproximação social com isolamento físico pode nos ensinar que dependemos uns
dos outros. E por isso precisamos nos unir em torno de um comum global que
proteja a única casa que todos temos. O vírus, também um habitante deste
planeta, nos lembrou de algo que tínhamos esquecido: os outros existem.”[2]
Na
Bíblia, os profetas e profetisas sabem que a palavra profética conduz, às vezes,
à conversão de alguns poucos, mas, na maioria das vezes, leva ao endurecimento
de muitos, em um primeiro momento. Os oráculos de condenação no futuro,
pronunciados com absoluta segurança, refletem a consciência dos profetas de que
a advertência seria inútil. Essa consciência dos profetas e profetisas se
apresenta, de modo muito claro, por meio do profeta Isaías, em Is 6,9-11: “Então disse ele: Vai, e dize a este povo:
Ouvis, de fato, e não entendeis, e vedes, em verdade, mas não percebeis.
Engorda o coração deste povo, e faze-lhe pesados os ouvidos, e fecha-lhe os
olhos; para que ele não veja com os seus olhos, e não ouça com os seus ouvidos,
nem entenda com o seu coração, nem se converta e seja sarado. Então disse eu:
Até quando Senhor? E respondeu: Até que sejam desoladas as cidades e fiquem sem
habitantes, e as casas sem moradores, e a terra seja de todo assolada”.
Oxalá, o povo e as autoridades ouçam o quanto antes o jeito sábio e necessário
de lidarmos com essa pandemia, antes que seja tarde.
Se
a quarentena for levada a sério, a pandemia do coronavírus nos trará dores de
parto e não estertor de morte. Vivamos com serenidade, paz interior, amor no
coração e esperança no olhar, essa noite escura da humanidade transformando,
como propõe Carlos Rodrigues Brandão, "quarentena" em
"recolhimento", "não sair de casa" em "voar com a imaginação
e o sentimento", "isolamento" em "reencontro",
"não abraçar" em "comungar", "medo do contágio"
em "desejo do contato"... E que tal darmos asas à criatividade que tem
sido partilhada e socializada, gratuitamente, pelas redes virtuais por meio de
poesias, vídeos instrutivos, ironia que nos faz sorrir, reflexões humanizadoras,
denúncias da necropolítica etc. Cultivemos eterna gratidão aos trabalhadores e
trabalhadoras das áreas essenciais: da saúde, da limpeza, do transporte, da
segurança pública e da produção de alimentos, em especial aqueles que praticam
a agroecologia e fazem chegar a nossa mesa alimentos saudáveis. Porém, repudiemos
o despresidente do Brasil por decretar que “cultos e celebrações religiosas” e também
as atividades de “mineração” são serviços essenciais. Isso é criminoso e revela
o quanto o presidente cego está em conluio com falsos pastores idólatras e com
o império da mineração no qual se destaca a empresa Vale.
Em
sintonia com Tatiana Ribeiro de Souza: “Esperamos
que um dos legados do coronavírus seja a percepção de que a existência de ilhas
de prosperidade em um oceano de miséria é, além de imoral, insustentável.”[3].
E por falar em poesia, termino com Thiago de Mello: “Faz escuro mas eu canto, / porque a manhã vai chegar. / Vem ver comigo,
companheiro/a, / a cor do mundo mudar. / Vale a pena não dormir para esperar /
a cor do mundo mudar. / Já é madrugada, / vem o sol, quero alegria, / que é
para esquecer o que eu sofria. / Quem sofre fica acordado / defendendo o
coração. / Vamos juntos, multidão, / trabalhar pela alegria, / amanhã é um novo
dia”. Sim, é noite escura, mas no meio de noite escura pode brilhar uma luz
que nos humaniza e poderá impedir o extermínio da humanidade do Planeta Terra,
nossa única Casa Comum. Enfim, pelo exposto acima ficarmos em casa, em
quarentena, é medida necessária e ética para salvar vidas[4].
31/03/2020, 56
anos da Ditadura militar-civil-empresarial de 1964. Ditadura Nunca Mais!
Obs.: Os vídeos
nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1 - Poesia e lutadores da história no V
Congresso do MLB em Recife. Vídeo 7 - 14/9/2019
2 - Café com Poesia, Mesa de Thereza,
Cantoria de Eda Costa - Armazém do Campo/MST/BH - 26/11/2017
3 - Emily Roots e Mari Mari Mari-1ª
Parte: Poesia e Música de luta da Ocupação Rosa Leão/BH/MG. 05/8/17
4 - Emily Roots e Mari Mar-2ª Parte-
Luta e resistência na poesia e na música-BH/MG-05/8/2017
5 - Poesia e Música de Luta e
Resistência na Abertura do XXII Encontro da RENAP -BH/MG- 06/ 9/ 2017
6 - "Para vocês avião, para nós
camburão." Poesia na 39a Romaria da terra e das águas da Bahia. 02/07/16
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela
FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia
pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em
Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de
“Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte,
MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis –
Facebook: Gilvander Moreira III
[4]
Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, que fez a revisão deste texto. Carmem é
Doutora em Sociologia Política pela UENF.