Resistência e História Indígena nas antigas terras de
Vila Rica - Minas Gerais
Por Alenice
Baeta
Imagem 01: Índios atravessando
um riacho (Caçador de Escravos)
1820-1830
de Jean-Baptiste Debret (1972).
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O
território onde se encontra Ouro Preto, antiga Vila Rica, outrora fazia parte do
“Sertão dos Cataguases” ou das “Minas dos Cataguases”, passando a ser
denominado como pertencente a “Minas Gerais” a partir de 1710, após a chegada e
instalação dos primeiros exploradores do ouro. Segundo Barbosa (1979), o
topônimo “Minas Gerais” começa a ser utilizado de forma genérica a partir de 1732,
quando passa a ser oficialmente mencionado em cartas régias.
Indígenas
Cataguases ou Cataguás, também conhecidos como “Catauá”, eram habitantes de
parte do centro, oeste e sul mineiro na época da chegada das primeiras expedições
e bandeiras. Segundo O. José foram realmente os Cataguás os que mais sofreram com
a ação escravizadora dos bandeirantes “quando
esses, em busca das terras de rica formação mineral ou das paragens em que
abundariam os diamantes e as pedras coradas, passaram, juntamente com seus aliados,
os indígenas paulistas, pelas malocas dos Cataguás”(1965:21). Esses exploradores
no final do séc. XVII por entre as gargantas do Embaú, vale do rio Paraíba, adentraram
pela Mantiqueira as matas ao sul do Sertão dos Cataguases atingindo as suas zonas
mais centrais, onde foi descoberto ouro de aluvião nas proximidades dos rios
São Francisco, Doce e Velhas. O Pico do Itacolomi, “como um polo magnético” conforme
descrição de A. de Lima Jr. (1961:117), logo se tornou importante referência
dos primeiros exploradores que se instalaram nos vale do Tripuí e adjacências.
Os
indígenas paulistas “aliados” seriam, segundo J. Monteiro (1994), os “Carijós”,
designação genérica dos cativos, cujas etnias de seus integrantes possivelmente
teriam sido muito variadas. Estes também receberam outras designações, tais
como, “negros da terra” ou “cabras da terra”, indicados em alguns documentos da
época.
“Ao longo do séc.
XVII colonos de São Paulo e de outras vilas circunvizinhas assaltaram centenas
de aldeias indígenas em várias regiões, trazendo milhares de índios de diversas
sociedades para as suas fazendas e sítios na condição de serviços obrigatórios” (MONTEIRO, 1995:57).
Monteiro
sugere que os Carijós aprisionados no sul e sudoeste de São Paulo estariam
associados, sobretudo, a povos de origem Guarani. Havia, a princípio, duas
localidades principais onde as incursões dos paulistas destinadas ao
apresamento de indígenas se faziam mais contundentes: os Sertões dos Patos e
dos Carijós. No entanto, esclarece que a região que abrangia os Sertões dos
Patos (atual interior do estado de Santa Catarina) “era habitada por grupos guarani, identificados, entre outras, pelas
denominações Carijó, Araxá e Patos” (1995: 61).
O Sertão
de Carijós atingia, por sua vez, os vales dos rios Paranapanema, Guairá,
Piquiri e Tibagi. As incursões a essas localidades ocasionavam contato com
várias etnias não-Guarani e Guarani. As principais vítimas dessas expedições teriam
sido ainda os Tememinó e Tupinaé. Todavia, quando havia queda nos plantéis
paulistas de indivíduos guarani,
os mais ambicionados pelas frentes de apreamento, buscava-se em substituição a
esses, capturar Guainá e Guarulho ou Maromins (MONTEIRO, 1995:62/82). Segundo KOK,
“no limiar do séc. XVII fervilhavam nos
Campos de Piratininga guerras indígenas tanto no sertão como na vila, que
significaram resistência à presença dos brancos, defesa de seus territórios e
luta contra a escravização a que estavam sujeitos” (2009: 9).
À medida
que os bandeirantes paulistas mais se afastavam de suas paragens, maior era a necessidade
do apoio e alianças com índios guerreiros no aprisionamento de outros nativos,
visando abastecer as propriedades rurais com a força de trabalho dos “negros da
terra”. A rede de captura e
escravização eram sustentadas pela exploração de inimizades e disputas
tradicionais entre alguns povos indígenas.
“(...),
as lideranças indígenas buscavam aliados
portugueses para aumentar seu prestígio e seu poder de fogo em guerras contra
outros grupos, que envolviam expedições para capturar inimigos e perpetuar a
vingança” (MONTEIRO, 2008: 18).
Pouco
conhecedores dos sertões alhures e com estrutura paramilitar precária, apesar
de aguerridos, fazia-se imprescindível a participação de guias autóctones e
línguas nessas
“armações”, nome mais utilizado na
época para essas expedições. Jovens colonos, visando enriquecimento, financiados
por seus pais e sogros (os armadores), ambicionavam capturar “peças do gentio da terra”. Para tanto, carregavam
em suas empreitadas, chumbo, pólvora, correntes, sertanistas e índios, que
formavam as tropas auxiliares (MONTEIRO, 1995: 86). O bom desempenho das
empreitadas dependia em grande parte dos sertanistas, homens acostumados a
incursões nas matas, também denominados “cabo
da tropa” ou “capitão do arraial”,
que possuíam poder sobre os demais participantes da viagem. No caso das grandes
expedições, estas ainda contavam com a presença de capelão, escrivão e
alferes-mor, sendo que este último seria o responsável pela partilha dos índios
capturados. Na condição de escravas, mulheres índias, além das “Temericó” (mestiças) também tinham que
acompanhar essas tropas. Os indígenas transportavam parte da carga, sendo ainda
responsáveis pela complementação do cardápio alimentar, atuando como pescadores,
caçadores de animais, além de coletores de frutas, mel silvestre, pinhão, coquinhos,
ovos de jabuti, palmitos e paus de digestão (grelos de samambaia). Os
suprimentos mais usuais levados na viagem eram cabaças de sal e pães de “farinha de guerra”, feitos de mandioca
ou de milho, insuficientes para a dieta dos viajantes. Para matar a sede, na
falta de água corrente, apelava-se para o consumo de umbuzeiro, mandacarus,
cipós, taquaraçus e gravatás. Dependendo das condições climáticas e localização
das tropas, a fome era companheira certeira. Como prova da supremacia dos
bandeirantes e de seus comparsas, roças indígenas de milho, feijão e mandioca
ainda eram saqueadas e posteriormente destruídas impiedosamente ao longo dos
trajetos realizados (KOK, 2008: 22/24).
Em
algumas situações, indígenas e mestiços, também chamados “curibocas” ou “caborés”
(PARANHOS, 2005) eram despachados na frente da esquadra principal, visando
instalar roças ao longo de caminhos que serviam para o abastecimento de expedições
na ida e em seu regresso. Muitos destes ranchos de apoio aos acampamentos e de
reserva de suprimentos, inclusive, deram origem a arraiais em Minas Gerais,
Goiás e Mato Grosso. Foi o que aconteceu com a expedição capitaneada por Fernão
Dias, que “mandara, com antecedência,
plantar roças de milho e reunir animais, de distância em distância, até o Serro
do Frio, e expedira, como vanguardeiro da coluna, Matias Cardoso, que foi
aguardar em ponto profundo da região, onde deviam estar as ambicionadas
esmeraldas” (LIMA JR. 1965: 28).
Alguns
Carijós, na circunstância acima apresentada, participaram das principais
bandeiras e expedições a procura de ouro e pedras preciosas nas ermas terras
onde hoje se constitui o estado de Minas Gerais.
São
vários os relatos sobre os inconvenientes que acossavam esses exploradores ao
longo das viagens, tais como animais peçonhentos e onças que atacavam
integrantes das tropas, além de insetos, formigas, carrapatos e bichos-de-pé. A
topografia da região de Vila Rica, em especial, dificultava o acesso de seus
desbravadores, pois “a paisagem é rude,
com montanhas alcantiladas, vales estreitos e profundos” (BARBOSA,
1971:48). Mas certamente o maior temor desses homens seria o ataque dos “silvícolas”,
que por sua vez, se sentiam ameaçados em seus territórios tradicionais,
resistindo bravamente às investidas de seus perseguidores.
Anteriormente,
houve várias penetrações não oficiais de exploradores que partiam do Campo do
Piratininga ou Taubaté rumo a plagas do Guaipacaré (atual Lorena) atingindo o Rio
Grande com o intuito de capturar indígenas, atividade lucrativa na primeira
fase dos setecentos.
“Devem ter sido numerosos os penetradores
anônimos que, por esses anos, andaram pelas terras de Minas à caça de índios.
Era o melhor negócio dos paulistas nessa época, e as regiões do campo mineiro,
de fácil orientação, por suas montanhas continuadas, cheia de picos, davam
facilidades desconhecidas aos aventureiros, habituados às ferocíssimas matas do
Sul e de Goiás” (LIMA JR.,1965: 26).
Imagem 01: Índios atravessando
um riacho (Caçador de Escravos)
1820-1830
de Jean-Baptiste Debret (1972).
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Muitos
sertanistas, dessa maneira, já conheciam as terras mineiras quando das
primeiras expedições oficiais,
como a já mencionada bandeira liderada por Fernão Dias Pais “conhecedor velho destes Sertões...”
(LIMA JR., 1965: 26)
Segundo
Resende (2007), as bandeiras sustentavam-se a partir do tripé: procura de
riquezas minerais, anexação de terras e preagem de índios, tendo devassado o
território mineiro ao longo de todo o século XVIII. Mas foi a partir de 1760,
com a crise que se abateu sobre a atividade mineradora, que o avanço das
expedições e das fronteiras colonialistas se deu em áreas de matas parcialmente
intocadas, onde ainda vários grupos indígenas viviam com um relativo
distanciamento dos principais centros auríferos, arraiais e núcleos de fazendas
de gado.
Os vales
dos rios das Mortes, Grande, Sapucaí, Pomba e Paraíba do Sul correspondiam a
territórios tradicionais de muitos indígenas no período colonial, sendo que os
etnônimos mais comuns associados a essas bacias, além dos Catauá, já
mencionados, eram Coroados, Tapanhunhos,
Xopotós, Cropós, Puris e Arrepiados. Esses
povos estariam atribuídos ao tronco linguístico Macro-Jê (ou “Tapuias”), apesar
de haver discordâncias sobre a filiação linguística dos Catauá; indicando a
hipótese de possuírem ascendência Tupi-Guarani (ABDALA, 1997). Saint-Hilaire
também aponta a possibilidade dos Coroados terem algum tipo de parentesco com
povos Goitacazes (1975:39). Ainda são mencionados os Osorós, antigos habitantes
do Sertão do Macacu, margens do rio Paraíba. “Embora a maioria dos Osorós tivesse fugido, à visão de tantos homens
armados, pouco a pouco voltaram para as suas terras, onde circulavam com os Puris
e Xopotós” (ANASTASIA, 2005: 97).
O
governador Luís Diogo Lobo da Silva outorgou inúmeras sesmarias, mas em função
da resistência de íncolas, por designação da Coroa, determinadas terras deveriam
ser “evitadas”, onde tivesse sido
antigo aldeamento indígena. Mas, segundo Resende (2011), nem sempre os limites
disponibilizados para a manutenção da economia indígena teriam sido suficientes.
Ademais, as relações entre colonos e indígenas sempre foram belicosas e muito conflituosas.
Na
segunda metade do século XVIII, foi fundado no vale do rio Pomba, por ordem do
Governador Conde de Valadares, um aldeamento de índios Cropós, Coroados e
Puris. Posteriormente, esses indígenas reclamam ao rei a paz perdida, alegando
ter ficado sem terra para exercer suas atividades econômicas e culturais, como
caça, pesca, coleta e rituais (RESENDE, 2003).
Nos
arredores de Vila Rica há registros da presença de gentios ou índios “Aredez”, “Araraos” e “Taboyaras” na
porção alta dos rios das Velhas e Paraopeba, mencionados em importante
documento cartográfico e iconográfico setecentista do acervo da Biblioteca
Nacional. Há uma frase inscrita neste mapa que merece ser transcrita:
“Aqui nestes sertões
se recolheram os restos dos gentios Aredez (Araraos) e Taboyaras que moravam no
Rio das Velhas, sobre o Rio Paraopeba. São estes gentios que infestam as
fazendas de gado dessa banda do Rio de São Francisco e todos os anos assaltam
matando muita gente principalmente depois do descobrimento das minas que os
paulistas não sertanejaram, no Rio Paracatu destruíram bastantes fazendas”.
Imagem 02: Mapa
“Demonstração do Rio São Francisco, em Minas Gerais”– século XVIII
(Acervo da Biblioteca
Nacional).
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A citação
indica a existência de grupos indígenas que tiveram contato direto com antigos
exploradores e colonizadores da região, reagindo e atacando fazendas de gado. O
termo “ataque” deve ser interpretado como “resistência e defesa” em seus
territórios históricos.
Segundo
Resende (2003), incursões paulistas que se dirigiram à região do rio São
Francisco, aprisionaram ainda grupos “Tememinó”
e “Tobojara”. O último etnônimo
mencionado pode ser uma forma diferenciada de mencionar os “Taboyaras” indicados no antigo mapa. Ainda
no vale do rio das Velhas, havia índios Goiás, “gente benévola, que entretinha relações mais ou menos frequentes com os
povoados antigos da zona do Sumidouro” (VASCONCELOS, 1948: 39). Há ainda
indicações de indígenas “Candidés” no vale do rio Itapecerica, alto São
Francisco (atualmente Divinópolis), nos arredores da Gruta de Itaberá (LARA,
1987).
O
bandeirante Arzão Bartolomeu Bueno de Siqueira e sua comitiva também encontraram
com gentios na região de Vila de Pitangui, tendo guerreado com estes (RESENDE,
2003: 46).
“Em Vila do Carmo - atual cidade de Mariana-
viveu-se situação semelhante. Nela, a expansão das atividades de mineração
esbarrou com grupos indígenas, sendo algumas das freguesias, como as de
Guarapiranga, Barra Longa e Furquim, atacadas ou mesmo destruídas”
(VENÂNCIO, 1997: 2007).
Chama
ainda a atenção na toponímia da região do ouro um arraial denominado ‘Carijós’.
Segundo Barbosa (1995), mineradores que lavravam nas adjacências da Serra de
Ouro Branco, possivelmente remanescentes da Bandeira de Borba Gato, se uniram a
indígenas Carijós, considerados “pacíficos” ou “mansuetos”, visando se defender
dos ataques dos indígenas “ferozes” da região.
Os Carijós, relacionados ao tronco linguístico Tupi-Guarani, chegaram ao
Planalto da Mantiqueira fugidos dos ataques de brancos no litoral fluminense.
“Estes desbravadores
entraram em contato com os índios Carijós, que anos antes fugiram da baixada do
Rio de Janeiro e penetram no interior subindo pelo vale do Paraibuna e estabelecendo-se
em Borda do Campo, em uma região verdadeiramente estratégica: nos altos de um
contraforte da Mantiqueira, de onde, com facilidade poderiam espraiar-se pelo
vale do rio Doce, ou descer para o Paraopeba, ou mesmo tomar a direção do Rio
Grande” (FERREIRA, 1958).
Estes
Carijós formaram um aldeamento que originou o primitivo arraial “Senhora da
Conceição do Campo Alegre de Carijós” ou “Arraial dos Carijós”, cujo território
é abrangido atualmente pelo município Conselheiro Lafaiete, anteriormente,
Queluz. A construção da sólida Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, bem
como, de alguns edifícios desse arraial tem sido atribuída aos serviços braçais
dos Carijós.
Muitos indivíduos
indígenas foram utilizados nos centros auríferos como mão de obra nas lavras,
como apontado na Instrução de Regimento de D. Rodrigo de Castelo Branco. Nesse
documento são mencionados Carijós como trabalhadores regulares nessa atividade.
“Aliás, alguns testemunhos revelam, bem
antes da ocupação sistemática de Minas Gerais, a habilidade do gentio da terra
na lide aurífera” (VENÂNCIO, 1997: 168).
Eram
utilizados no transporte de mercadorias, víveres e ouro (substituindo os
animais de carga) entre as lavras e os núcleos urbanos por íngremes caminhos,
aberturas de estradas e implantação de fazendas. Indígenas, especialmente
mulheres e crianças, também participavam de atividades de caça, pesca e coleta,
incluindo a agricultura.
“Os inventários registram a existência de
lavoura de milho, produto essencial na antiga culinária paulista, consumindo em
forma de farinha, canjica, cuscuz, biscoito, e utilizado como alimento de
pequenos animais” (VENÂNCIO, 1997: 169).
Fiéis ou
aliados em algumas situações aos próprios senhores, Carijós lutaram em grande
número na Guerra dos Emboabas, nos anos 1707 e 1709, respondendo ainda por um
percentual de parte da escravaria e dos inventários de famílias, tendo tido uma
importante participação na vida social e econômica na freguesia de Mariana.
“Em 1716, Antônia Leme herdou do marido
importantes lavras e junto a elas 23 cativos, sendo 12 deles carijós. O mesmo
ocorreu com Ana Maria Borba que, apesar de ser filha de uma das mais ricas e
influentes famílias locais, manteve até a morte quatro carijós em seu plantel
de 15 escravos. Mesmo os senhores mais famosos de Mariana, aqueles que podiam
recorrer ao mercado internacional, não deixavam de dispor de alguns índios
remanescentes da primeira fase do povoamento” (VENÂNCIO, 1997: 168).
Em 1710,
os cativos carijós representavam 16 a 23% da força de trabalho de Vila do
Carmo, segundo raros inventários que resistiram à umidade e parasitas
levantados e identificados por Venâncio (1997: 168-169).
Em uma
meticulosa análise de documentos sobre a ocorrência de escravos índios na Vila
do Carmo (Mariana), focalizando as freguesias de Guarapiranga (atualmente,
Piranga), Barra do Calhau, Inficionado, Brumado, Sumidouro, Bento Roiz e Gama, Venâncio
(1997), constata o decréscimo de indivíduos indígenas em 1725, quando
comparados ao ano de 1718.
“A partir de 1718,
quem percorresse as lavras marianenses perceberia ano após ano o
desaparecimento do gentio da terra. Na década de vinte, a escravidão indígena
marianense entrara em franco declínio. Os carijós, de idade avançada e doentes,
pouca serventia tinha, atingindo preços irrisórios que não se equiparam aos dos
pequenos animais, ou representavam uma fração mínima do valor referente aos
negros africanos”
(VENÂNCIO,1997: 172).
Analisando
o índice de óbitos na freguesia de Guarapiranga, por exemplo, Venâncio ainda
verificou o registro de falecimento de alguns carijós, sendo que parte desses
óbitos teria ocorrido sem sacramento, possivelmente, devido morte repentina.
Baseando-se na obra “Erário Mineral”, de Luís Gomes Ferreira, são indicadas as
incidências de várias doenças que grassaram a região de Mariana, ocasionando
mortes súbitas, tais como, varíola ou bexiga, malária e impaludismo ainda denominados
no documento supracitado como “fistulas,
chagas, hidropsias e sezoens” (FERREIRA, APUD VENÂNCIO, 1997: 176). “Os
índios faleciam em uma proporção três vezes mais elevada do que negros
africanos e crioulos” (VENÂNCIO, 1997: 176).
A alimentação
ruim, a fome e as péssimas condições de trabalho
deveriam ter comprometido sensivelmente a saúde dos Carijós. No começo, o
cativo fazia exclusivamente o transporte do cascalho, desde o rio ou dos
montes, até o local de lavagem. Mais tarde foram introduzidos os animais de
carga (ROMEIRO, 2006).
“A mineração exigia que os escravos
permanecessem da cintura para baixo imersos nos gélidos rios mineiros. Se lembrarmos
que, além disso, na primeira fase do povoamento de Mariana, a fome foi uma
realidade constante, não fica difícil imaginar quanto a pneumonia e a
tuberculose causaram sangrias nos contingentes populacionais indígenas”
(VENÂNCIO, 1997: 177).
Quando
surgidas oportunidades, muitos indígenas partiam em fuga para as matas do leste
e sudeste de Minas Gerais, outros adoeciam ou envelheceram nos centros
auríferos e fazendas, dando lugar a escravos africanos e seus descendentes. Alguns
cativos ainda foram libertos, tornando-se “carijós forros”, ou partiram para quilombos,
se unindo a escravos africanos e outros foragidos, tornando-se “homem fora da lei ou imerso no universo da
pobreza” (VENÂNCIO, 1997: 178). Diogo de Vasconcelos em sua célebre obra
“História Média de Minas Gerais” aponta a presença de homens brancos “facínoras”
ou foragidos da justiça que, adaptando-se bem ao meio “selvagino”,
afugentavam-se em aldeias estabelecendo alianças com tribos. Organizavam, em
algumas situações, verdadeiros bandos que “passaram
a inquietar povoados, as fazendas e arraiais” (1948: 15).
Mas como
bem colocado por Venâncio, para os grupos não “domesticados”, o arraial de Guarapiranga encerrava na fase do ouro o
limite aceitável da expansão colonial, representados pelos rios Piranga,
Calambau, Turvo e Bacalhau, onde “as
incursões para além daquele limite eram ferozmente rechaçadas (...)” (1997:
173/174).
No
entanto, apesar da existência de milhares de indígenas em Minas Gerais mesmo
com a instauração de uma política de extermínio e de apresamento, alguns
documentos coloniais insistiam em atestar o aniquilamento total dos indígenas,
já no início dos setecentos.
“O governador de São Paulo admite, em 1718,
que todos os habitantes índios da região das Minas haviam sido exterminados
pelos paulistas, sem que a história ao menos registrasse seus nomes”
(RIBEIRO, 1997: 61).
Por outro
lado, também foram produzidas escritas que divulgavam que as “zonas proibidas”
estariam infestadas de índios “canibais” e “bestiais”, o que poderia dificultar
a transposição de contrabandistas, salteadores, fugitivos, bandoleiros, desertores,
“homens de falcatruas” e outros tipos de criminosos. O marquês de Pombal visando
cessar de vez estes “abomináveis caminhos”
mandava a junta redobrar a vigilância nessas plagas. Indígenas expostos à
própria sorte combatiam ainda parte desses grupos, ou, em algumas situações, negociavam
com seus mandantes.
“O abandono do distrito da Mantiqueira pelas
autoridades que o supunham, ou fingiam supor, povoado apenas pelas ferozes
nações indígenas Xopotós, Puris e Osorós, favoreceu a ação daqueles que eram e
dos que foram considerados pelas autoridades os facinorosos das estradas”
(ANASTASIA, 2005: 90). As terras da Cachoeira do Macacu, nos confins da
Mantiqueira, foram apossadas na segunda metade do século XVIII por garimpos
clandestinos e contrabandistas, liderados, como exemplo, por “Mão de Luva” (OLIVEIRA,
2002). A quadrilha de “Mão de Luva” possuía, no entanto, “boas relações com comerciantes, soldados e índios” (ANASTASIA,
2005: 90). Segundo Anastasia, em algumas localidades da Capitania de Minas
Gerais, ocorreram de forma mais amiúde violências e transgressões, constituindo-se
em “territórios de mando” onde se
disseminou o “mandonismo bandoleiro” (2005:
22) argumentação baseada no conceito de violência social, desenvolvido por S.
Abranges (1994).
Resende
utiliza o termo “índios coloniais” compreendidos “como os índios ou seus descendentes, que destribalizados por diversas
razões, de várias origens étnicas e ou procedências geográficas, muitos
nascidos dentro da sociedade colonial, foram incorporados à vida sociocultural
nas vilas e lugarejos” (RESENDE, 2003: 222).
Os
“índios coloniais” constituíam os indivíduos comprados, raptados, barganhados,
destribalizados, fugitivos de aldeamentos, desalojados ou expulsos de suas
terras que passaram a viver nas vilas e arraiais sob a tutela dos seus “administrados”
(RESENDE, 2003: 227).
Vários
subterfúgios foram utilizados para burlar a proibição de se escravizar
indígenas. A primeira delas seria
ocultar a origem indígena dos escravos, sob o estigma de “mestiços”, “pardos”,
“cabocoulas” ou ainda outras denominações, como “cabras”, conforme já citado. Em
1755, foi proclamada a lei de liberdade aos índios, reeditada em 1760 pelo
governador de Minas, Luiz Diogo Lobo da Silva, aprofundando ainda mais os
impasses no que diz respeito aos direitos e emancipação indígena. Algumas ações
de liberdade ocorreram quando fora negada por indígenas a “pecha de mestiços”. Quando não havia registros de batismos o
procedimento usual era a descrição física do requerente ou a sua “inspeção ocular” por parte de um juiz,
visando confirmar a sua condição indígena. No entanto, para os filhos de pais
carijós e mães escravas negras, “a
escravidão era certa” (RESENDE, 2007: 231/234).
“Se não bastasse a resistência dos colonos de
se desfazer dos préstimos dos seus administrados, a justiça ainda andava a
passos vagarosos. As ameaças seguidas de prisões arbitrárias serviam de
intimidação para aqueles que arvorassem para si o direito à liberdade”
(RESENDE, 2007: 233). No entanto, muitos
“índios coloniais” sob a égide de “forros”, “afilhados”, “bastardos” ou mesmo “livres”,
continuavam muitas das vezes, realizando obrigações ou serviços compulsórios.
O próprio
governador da Capitania, em 1793, Luiz Antônio Furtado de Mendonça, o visconde
de Barbacena, promove festa de batismo de sua “afilhada” na capela do palácio.
Tratava-se de Josefa, uma “bastarda” capturada nas matas do Cuieté (leste
mineiro, vale do rio Doce); índia “Amburé” (ou Aimoré) também conhecida como
“boticuda” (ou botocuda) (RESENDE, 2003).
Há ainda documentos
relativos aos “párocos da freguesia” no acervo do Arquivo Eclesiástico da
Arquidiocese de Mariana que indicam ordenação de índio croato, o Padre Pedro da
Mota, que teria estudado no Seminário de Mariana, tendo sido ordenado em 1790 (BÔAS,
1995: 49).
Além
de escapar do cativeiro e abusos, alguns indígenas, sobretudo os que habitavam
vilas e arraiais relacionados aos principais centros auríferos tiveram de
enfrentar as visitas diocesanas e pastorais, verdadeiras devassas
inquisitoriais onde muitas pessoas foram severamente punidas ou “escorraçadas”.
Foram 767 denúncias indígenas ao longo dos setecentos, revelando a sua significativa
presença por paragens da região. Segundo Resende (2007), os principais motivos
indicados nas denúncias ou delações contra índios teriam sido motivadas por
bebedeira, alcouce, trato ilícito, meretrício, curandeirismo ou feitiçaria,
incesto e concubinato. Outras formas de perseguições e animosidades contra os
indígenas se instauravam no chamado século do ouro mineiro.
No
entanto, nos arredores dos principais centros auríferos muitos grupos indígenas
se postavam em guerra contra os colonizadores, barrando as frentes de expansão
e instalação de novas propriedades. Em algumas situações, posicionavam-se
refratários ao contato com não-índios, sendo considerados “arredios”. Eram
várias as reclamações dos colonos contra os gentios que habitavam as matas e
brenhas das cercanias. “(...) em 1746, os
moradores de Guarapiranga, lamentando a ‘opressão’ por causa dos ataques dos ‘infiéis’,
solicitavam a concessão da licença para poderem entrar naqueles sertões com
bandeiras e conquistar aquele gentio”. Anos antes, Domingos Dias Ribeiro,
solicitou ao governador a permissão para armar uma expedição em Vila Rica rumo
às cabeceiras da Guarapiranga e “conquistar
o gentio que achar bravo” (RESENDE, 2007: 225).
Há
muitas referências a grupos de “Botocudos”, em localidades da região central
das Minas Gerais. No entanto, trata-se de designação genérica dada pelos
colonizadores a partir do sécuco XVIII em função dos adereços auriculares e
labiais, os “imato”, utilizados por alguns grupos indígenas.
Boa parte
dos naturalistas e pesquisadores estrangeiros que viajaram pelas terras
mineiras nos séculos XVIII e XIX teve, inclusive, em sua comitiva indivíduos Botocudos
que lhe serviram como intérpretes, guias e informantes. Saint-Hilaire, teve o
apoio do índio Firmiano em sua excursão no vale do rio das Mortes (1975: 70).
Mas, certamente a parceria mais famosa ocorreu entre Maximiliano Wied-Neuwied (1940)
e Joaquim Quack, que acabou sendo levado para a Europa por seu tutor ao final
da expedição.
Provavelmente,
os Botocudos, são os mesmos “Aimorés”
ou “Aimurés” indicados em época
anterior como habitantes das densas matas da Bahia, Minas Gerais e Espírito
Santo. Dessa maneira, a associação da índia afilhada “Boticuda”, moradora de
Ouro Preto, a grupos indígenas “Amburé”, teria sentido.
Imagem 03: Família
de Botocudos em Marcha - 1834, de Jean-Baptiste Debret (1972).
As
bacias do rio Doce, Jequitinhonha e Mucuri, leste mineiro, eram habitadas na
ocasião dos primeiros contatos com os colonizadores e expedições, por grupos e subgrupos com etnônimos variados, pertencentes ao tronco linguístico Macro-Jê. Os mais conhecidos, além
dos Aimorés, já mencionados, são os: Etwet, Gutkrak, Takrukkrak,
Giporacs, Malalis, Camacans, Batatas, Gutkraks,
Makuni e Monoxós (WIED-NEUWIED, 1989; SAINT- HILAIRE, 1975; NIMUENDAJU, 1987).
Grens ou Guerens (BAÊTA, 1925) são outras referências a grupos da região, além
de “Patutus, Napurus, Craempe, Pijouriis,
Coconhum, Brue-Brue” (LEITE, 1949). Franco (1989) indica a presença durante
o século XVII de “Papudos” no Vale do Jequitinhonha. G. Ferreira (1934: 24)
menciona que, “os Machalis, os Nacnenucs,
os Jiporocs, os Macunés, os Aranás, os Urucus, os Pojichás, os Crisciumas, os
Ta-monhecs, os Potés, os Patachós, etc., se fixaram na faixa de terra que se
encontra situada no vale do rio Mucuri, estendendo-se ao NE e N até alcançar o
Jequitinhonha, até o Doce e Suaçuí Grande.”
Considerados
também “Botocudos”, Aranãs seriam originários do vale do Urupuca, que abarca
atualmente os arredores dos municípios de Santa Maria do Suaçuí e Capelinha,
tendo sido aldeados no século XIX em Itambacuri. Trata-se de um grupo indígena
cujos descendentes vivem atualmente em Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha, além
de outras localidades do estado de Minas Gerais, incluindo a Região
Metropolitana de Belo Horizonte (CEDEFES, 2009).
Os
Maxacalis, por sua vez, também são antigos habitantes da região do Suaçuí
Grande, tendo sido aldeados em uma paragem denominada “Catequese” no período
imperial, atualmente pertencente ao município de Água Boa. Alguns Maxacali
ainda serviram como canoeiros no Vale do Jequitinhonha, transportando
mercadorias até o litoral. Refugiados e sobreviventes de aldeias no
Jequitinhonha partiram para as cabeceiras dos rios Umburanas, no Vale do
Mucuri. Este povo se autodenomina “Tikmu-um”
e, segundo levantamentos etno-históricos e antropológicos, teriam sido
inimigos de grupos Botocudos (ÁLVARES, 1992). Essa inimizade teria sido bem
utilizada pelos colonizadores no processo de escravização e aliciamento desses
povos.
Segundo
S. Leite (1949), povos de origem Tupi-Guarani, os Paranaubis, ainda denominados
“Mares Verdes”, foram anteriormente levados do alto e médio rio Doce no século
XVII, por expedições jesuítas, para o aldeamento Reis Magos, no Espírito Santo.
“Os padres João Martins e Antonio Bellavia,
escoltados por índios, realizaram uma expedição partindo da aldeia dos Reis
Magos a cinco de junho de 1624, retornando a quatorze de setembro do mesmo ano
ao ponto de partida, juntamente com quatrocentos e cinquenta índios Paranaubis.
Esses índios, também chamados de Mares Verdes, seriam possivelmente o último
registro histórico na região (LEITE, 1949 APUD PILÓ, BAETA, LIMA, 2009: 29).
Os Caiapós ou Kaiapós, também denominados
“Bilreiros”, durante muitos anos impuseram resistência à nova ordem social
colonialista, nas porções oeste e norte de
Minas Gerais (BAETA, 2000). Estes eram temidos pelos bandeirantes, que
juntamente com os Botocudos tinham fama de terem “hábitos cruéis” e até mesmo “antropofágicos”.
“A guerra contra os Caiapós foi, pode-se
afirmar, a mais terrível e a mais prolongada luta travada contra indígenas em
toda a América. Os documentos nos falam da ferocidade dos ataques destes
bilreiros, o que motivou a guerra referida. Não se esqueça, porém, que os
Caiapós se tornaram terrivelmente cruéis, depois dos sucessivos ataques que
sofreram dos brancos e mamelucos” (BARBOSA, 1971: 128).
Em 1736,
o Conde de Sarzedas baixou uma portaria “após
muitas queixas de viandantes dos caminhos das minas dos Goiases e à
representação que lhe haviam feito os roceiros, das hostilidades e estragos do
gentio Caiapó, tanto das roças como a algumas tropas”, dando permissão aos
peticionários para que castigassem os autores de tais insultos; quando foi
concedida licença franca para “guerrear e
aprisionar o gentio”, contanto que fosse levada a cabo “os direitos da coroa, a qual caberia um quinto
dos índios aprisionados” (BARBOSA, 1971: 131). Meia pataca por cabeça era oferecida pelo
extermínio de Kayapó (VENÂNCIO, 2007). Fazendeiros ficavam enfurecidos “com a ação predatória dos nativos sobre o
gado solto em seus antigos terrenos de caça” (DEAN, 2000: 172).
Segundo
Paraíso (1990), o combate aos Botocudos durante o século XVII e primeira metade
do século XVIII no leste mineiro parece ter tido um caráter cíclico devido os
grupos se subdividirem em pequenos bandos que atingiam as zonas vizinhas de
forma intermitente. Quando os indígenas eram atacados por abastecedores de
escravos os indivíduos que escapavam costumavam buscar outros lugares para se
afugentar.
“A provisoriedade dos locais de habitação
indica uma intensa vida nômade por parte dos índios, caracterizando uma
estratégia de sobrevivência baseada no ocultamento no interior da floresta.
Isso fez com que aparentasse constituir um número muito maior do que se
confirmou depois. Cada uma das tribos se identificava por um nome próprio e
tendia a se subdividir em razão de conflitos internos. A quantidade pequena de membros
acabava ajudando a se manterem ocultos nas matas” (ESPÍNDOLA, 2005: 137).
Uma
prática infame e comum era o tráfico de “Kurucas” ou “Curucas” por parte dos
colonos; crianças indígenas eram raptadas para venda e exploração em fazendas e
arraiais. Acirravam-se assim “os
conflitos e as oposições entre vários grupos indígenas, tornando-os
irreconciliáveis e inviabilizando qualquer forma de aliança” (PARAÍSO, 2005).
Outro “escandaloso abuso” era “pilhar as
mulheres índias, praticando com elas as maiores depravações” (DEAN, 2000: 169).
A
partir da segunda metade do século XVIII, com a queda da explotação do ouro nos
centros auríferos, há uma mudança significativa na economia mineira indicando a
necessidade de reordenação da defesa, reafirmando a necessidade de expansão das
fronteiras por parte da Coroa. As matas do leste, outrora denominadas “Zona
Proibida”, conforme apontado, deveriam ser desbravadas em sua totalidade. Foi
assim implantado um sistema de quartéis, destacamentos militares e presídios ao
longo dos principais rios sendo que os métodos usados junto à população
indígena eram de extrema violência, conhecidos pela expressão “matar aldeia”. T. Ottoni definiu este
modo de combate por emboscadas ou dizimação estratégica de tribos indígenas
como uma verdadeira “Hecatombe de
Selvagens”, também denominada “Capivara”
(SILVA, 2011).
A
Carta Régia de 1808 criou a “Junta de Civilização e Conquista dos Índios e
Navegação do Rio Doce” ordenando guerra ofensiva aos indígenas, instaurando o
modelo do “conservadorismo imperial”,
segundo Treece (2008).
“(...) Deveis considerar como principiada contra
estes Índios e Antropophagos, huma guerra ofenciva que continuareis sempre em
todos os annos nas estações secas e que não terá fim, senão quando tivereis a
felicidade de vos senhorear de suas Habitaçoens, e de os capacitar da
superioridade da Minhas Reais Armas, de maneira tal, que movidos do justo
terror das mesmas pessão a Paz (...)” (APM SC 335, 1808: 2v).
A
Junta do Rio Doce foi dividida, por sua vez, em seis distritos com seus
respectivos comandantes, que deveria ainda explorar e mapear o rio Doce. Outra
instrução era a de que deveria ser dada isenção para os terrenos cultivados,
além de moratória para os devedores que para lá se dirigissem.
Saint-Hilaire
descreve dentro da atuação da 5ª Divisão Militar do Rio Doce, na região de
Peçanha, um ataque a um aldeamento indígena, onde “cercava-se por todos os lados o acampamentos dos selvagens;
deixavam-nos passar a noite em completa segurança; e ao raiar do dia, viam-se
cercados” (2000: 184).
Com
o intuito de garantir o cumprimento das ordens e funcionamentos das Divisões
Militares do Rio Doce, inspeções regulares eram feitas por militares da tropa
de linha da Capitania de Minas Gerais. Em 02 de dezembro de 1808, outra Carta
Régia ainda prevê a escolha de padres para atuarem na catequese, aldeamentos de
índios e aproveitamento do seu trabalho, como contrapartida pelo “ensino e educação” recebidos (SILVA e
MOREIRA, 2006). Em 1814, já haviam sido instaladas 61 bases militares, sendo
parte delas posteriormente comandadas pelo liberal francês Guido Thomaz
Marlière.
Os
grupos indígenas que escolhessem o aldeamento ao invés do enfrentamento militar
deveriam ser administrados a partir daí por método de “brandura”, que permitisse a “pronta
civilização”. Visando estimular a transformação do prisioneiro em mão de obra
barata, o governo compensava particulares que estivessem dispostos a sustentar,
vestir e “educar” índios sob sua administração (PARAÍSO, 2005).
Freis
Capuchinos por meio de missões religiosas participam da fundação e
administração de aldeamentos no rio Doce entre um período que se inicia em 1870
até a implantação do Serviço de Proteção dos Índios (SPI), em 1911.
Durante o
período colonial e imperial, “índios
eram, portanto, inimigos permanentes: quando mansos traíam, desertavam, voltavam-se
contra os brancos se a aliança com eles não mais interessasse. Se bravios,
comiam gente, ameaçavam os aldeamentos, pelos quais o mundo civilizado procurava
domar os sertões. Na documentação oficial são os culpados de tudo (...)” (SOUZA,
1999: 33).
Na
esteira da tese da “aculturação”, desenvolvida pela antropologia clássica,
ficou preconizado que os sobreviventes ou remanescentes indígenas nos séculos seguintes
estariam irreversivelmente fadados ao fim, onde as culturas e línguas indígenas
seriam fatalmente dissipadas quando do contato contínuo com a “sociedade nacional” ou quando “integrados à comunhão nacional” (ARRUDA,
1994: 78).
“As populações indígenas que sobreviveram ao
longo do processo de genocídio iniciado com a invasão europeia na América, e
mesmo os povos de contato mais recente, que superaram os choques dos primeiros
anos de envolvimento com o mundo dos brancos têm apresentado nas últimas
décadas uma taxa de crescimento maior do que as da população brasileira”
(ARRUDA, 1994: 78).
Habitantes
da antiga Vila de Pitangui, no vale do rio Pará, os indígenas sob o etnônimo
Kaxixó, segundo relato do cacique Djalma, “eram
proibidos de dizer que eram índios”, mas como dito por eles, “sempre estivemos
por aqui”... Talvez o fato de não se revelarem oficialmente enquanto índios
para a sociedade nacional até final do século XX tenha sido uma forma de
controle social interno Kaxixó, dirimindo a pressão já sofrida relacionada a
conflitos fundiários e sociais na região (CEDEFES, 1992).
O foco do
debate e das discussões teóricas abordam
a situação da “etnogênese” (SIDER, 1976) dos povos indígenas em oposição ao
fenômeno de “etnocídio” quando são aplicados ainda os conceitos de “emergência
étnica” ou “ressurgência étnica”. A cultura indígena se (re)inventa, encontrando-se
em constante transformação, onde são produzidos novos significados identitários
e formas variadas de representação social e territorialização. “Encarado dessa maneira, o acontecimento, ou
seja, uma novidade exterior que venha incidir sobre uma estrutura, uma
tradição, não faz necessariamente que ela seja destruída: a lógica que
orquestra o conhecimento tradicional dos índios é capaz de interpretar o novo,
ajustando-o, adaptando-o, dando-lhe sentido, tornando-o inteligível nos termos
da lógica nativa (MISSAGIA DE MATTOS, 2000: 7).
Assim,
contestando a ideia de “perda”, “desaparecimento” ou “fase terminal” dos
indígenas e de sua cultura, que vigorou na literatura e historiografia até
alguns decênios atrás, antropólogos e historiadores, mas, sobretudo os próprios
índios apresentam outra noção acerca da história, visibilidade e resistência política
destes povos em Minas Gerais, como no restante do país.
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Carta
Régia do Príncipe D. João ao Governador da Capitania de Minas Gerais Pedro
Maria Xavier de Athaíde e Melo, Visconde de Condeixa de 04 de agosto de 1808.
APM -SC Códice 335 fls. 4-5.
Carta
Régia do Príncipe D. João ao Governador da Capitania de Minas Gerais Pedro
Maria Xavier de Athaíde e Melo, Visconde de Condeixa de 02 de dezembro de 1808.
APM-SC Códice 335 fls. 5-7.
Biblioteca
Nacional
Mapa de Demonstração do Rio São Francisco em
Minas Gerais-séc. XVIII
= = = =
Segundo
RIBAS (2008) nesta época parte dos índios capturados iam diretamente para
fazendas, mas a maioria ainda era entregue aos aldeamentos administrados pelos
jesuítas. Enquanto eram evangelizados, tinham sua mão-de-obra alugada pelo
restante dos paulistas. A Carta Régia de 21 de abril de 1702 determinava que o
cativeiro de indígena estivesse proibido, no entanto, era admitido que se
trouxesse “pacificamente” indígenas do mato.
Os
bandeirantes gozavam de autorizações legais, quando recebiam carta autografada
do El-Rei e promessas de hábito de Cristo. As bandeiras possuíam assim caráter
oficial (TORRES, 1961:114).