terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Espiritualidade da Compaixão-misericórdia a partir do Evangelho de Lucas. Por frei Gilvander Moreira

Espiritualidade da Compaixão-misericórdia a partir do Evangelho de Lucas.
Por frei Gilvander Luís Moreira[1]

Pensando no Ano da Misericórdia anunciado pelo papa Francisco e também conectado aos clamores dos injustiçados, refletiremos aqui sobre a Espiritualidade da Compaixão-misericórdia a partir do Evangelho de Lucas.
O Evangelho de Lucas é boa notícia para todo o povo, mas a partir dos injustiçados, em uma região fortemente marcada pela cultura grega que justificava a divisão da sociedade entre intelectuais e trabalhadores manuais. Estes eram obrigados a viver pobres e escravos e só obedeciam, enquanto aqueles tinham o direito de ser ricos, livres e mandavam. As mulheres eram submissas aos homens; viviam no mundo privado da casa (oikia). Os homens, machistas e patriarcais, consideravam as mulheres como objetos, não eram vistas como deusas e nem tão pouco como pessoas. Nada de participação ativa das mulheres. Nem na sociedade, nem nas decisões familiares ou políticas (Lc 10,38‑42). O episódio do encontro de Jesus com Marta e Maria revela que Marta é o protótipo da mulher na cultura grega. Inteiramente absorvida pelas preocupações domésticas (Lc 10,40), não se importando em exercer sua cidadania. Maria participa do mundo público exercendo sua cidadania ao se relacionar com Jesus cara‑a‑cara como pessoa (Lc 10,39). Importante observar que Jesus confirma o jeito de ser de Maria ao afirmar: “Maria escolheu a melhor parte...” (Lc 10,42). Assim Jesus ajuda muito as mulheres a romperem com o patriarcalismo e com o machismo reinante na sociedade.
A mentalidade grega justificava a existência de classes na sociedade como algo normal. Logo era proibido tacitamente contestar o machismo, a escravidão (tida como natural pelo filósofo Aristóteles), a exploração, a divisão entre ricos e pobres. O importante era ser sabido (e não sábio), ter conhecimento teórico. A prática era algo secundário e coisa de escravo. O Império Romano soube usar muito bem a mentalidade grega para “perpetuar” a sua dominação, pois a cultura grega incentivava as pessoas a esquecerem a realidade, conformar‑se dentro de estruturas sociais injustas e buscar consolo em outros mundos.
O Evangelho de Lucas ataca como cupim a espinha dorsal da cultura grega e do Império Romano. Mas o Jesus apresentado por Lucas não vem com um contra‑poder medir forças. Não confronta um poder econômico‑político‑cultural e militar com outro poder. A proposta é infiltração como regra e confrontação como exceção. Infiltrar, sempre; confrontar, às vezes. Isto se dá na radicalização de uma Espiritualidade da Compaixão‑misericórdia. As ações, comportamento e ensinamento de Jesus renovam as pessoas integralmente por dentro e por fora e modificam o meio revolucionando as relações sócio‑político‑econômico‑cultural‑religiosas. Jesus propõe pelo testemunho, não impõe pelo discurso. Deixa que a pessoa responda livremente ao convite para segui‑lo (Lc 4,38‑39). Assim Jesus e seus discípulos(as) vão cativando e irradiando bondade por onde passam.
No Evangelho de Lucas, no grego, há quatro termos para expressar o campo semântico da Compaixão‑misericórdia: 1) Esplangnísthè; 2) Oiktirmones; 3) Éleos; 4) Ilásteti. As traduções portuguesas variam muito. Identificam normalmente Compaixão, Misericórdia, Piedade, Bondade ...
1) As Palavras gregas e seus significados.
1.1) Esplangnisthe (ou Splanchnizomai) ocorre três vezes em Lucas: Lc 7,13; 10,33 e 15,20. São textos exclusivos de Lucas. Não constam dos outros Evangelhos canônicos. Revelam características específicas de Lucas. A melhor tradução para esplangnísthè é Compaixão. Trata‑se de um substantivo! Denota uma realidade física muito humana. Significa o movimento das entranhas humanas (vísceras, ventre, coração,...) causado pela dor do outro ao ser visto. É um revolver das entranhas humanas. É sofrer com, sentir com. É se comover interiormente pela dor do outro. É ficar sensibilizado e afetado pela dor do outro. O sofrimento do outro me contagia e eu passo a sentir com o outro. Psicologicamente compaixão é atender o outro, envolver‑se com o que sofre e assumir com ele a sua dor. É dirigir a minha atenção à pessoa que clama por Misericórdia. É fazer da pessoa, no momento, o absoluto da vida de modo que ela se sinta acolhida, valorizada, compreendida e envolvida. A sede da compaixão para a mãe está no seio materno, nas entranhas (IRs 3,26). Para o pai está no coração (Gn 43,30). A porta de entrada da compaixão no nosso corpo é a visão, via de regra, ou então a audição. É pelo olhar, prioritariamente, ou pelo ouvir que a dor do outro flui para dentro da gente fazendo nossas entranhas e todo o nosso corpo tremer, sentir calafrio, revolver‑se. A compaixão irradia das entranhas humanas (ventre, vísceras, coração) se espalhando por todo o corpo, como uma pedrinha jogada no meio do lago vai repercutindo até às extremidades do corpo. O coração dói, os olhos choram, a cabeça se indigna, todo o corpo treme e daí brota o convite à fidelidade. A compaixão é como um vulcão que vai sacudindo por dentro e nos chacoalhando até irromper nas mãos e nos pés com convite para ações solidárias. “A estrutura da Compaixão consiste em que o sofrimento alheio se interioriza na pessoa ao ser visto; este sofrimento interiorizado gera uma re‑ação (ação, portanto)”[2]. A compaixão está não só no princípio da ação humana, mas acompanha toda a ação humana e deixa marcas indeléveis na pessoa que se deixa guiar pelo outro sofredor. Sendo fiel à dor do outro, com solidariedade, a Misericórdia está efetivada.
1.2) Oiktirmones é um termo semelhante a esplangnísthè. É um adjetivo. A melhor tradução é misericordioso. Ocorre uma única vez em Lucas: Lc 6,36.
1.3) Éleos aparece 10 vezes no Evangelho de Lucas: Lc 1,50.54.58.72.78; 10,37; 16,24; 17,13; 18,38.39. É um termo mais teológico, é uma visão de fé. É mais amplo que esplangná. É compaixão e fidelidade. Não é apenas se comover, mas é também se fazer solidário. É ser fiel ao clamor por compaixão. É amor misericordioso. É amor fiel e gratuito de Deus. É acolher o outro sofredor. A compaixão (esplangnísthè) é a porta de entrada da casa da misericórdia (éleos). Só consegue ser misericordioso, ou seja, ser solidário e fraterno, quem se deixa contagiar pela compaixão. Só um compassivo pode ser misericordioso. Logo para ser discípulo/a de Jesus de Nazaré e do seu Evangelho é preciso ter a coragem de contemplar cara‑a‑cara o outro sofredor. Quem desvia o olhar do outro que está sofrendo não se comove. Quem racionaliza ao deparar‑se com uma vítima apresentando justificativas teóricas que são, na verdade, “bodes expiatórios”, não se comove também. Não se comovendo, não poderá ser misericordioso. Porém, todo misericordioso é compassivo, mas nem todo compassivo é misericordioso, pois há pessoas que se comovem ao ver o outro sofrendo, mas não dão o passo adiante: fazer‑se fiel ao clamor por misericórdia. “Misericórdia é uma ação, mais exatamente, uma re‑ação frente ao sofrimento alheio interiorizado, que chegou até às entranhas e o coração próprios. Esta reação é motivada exclusivamente por esse sofrimento. O sofrimento alheio interiorizado ‑ compaixão ‑ é o princípio da reação da Misericórdia. Esta se converte no princípio configurador de toda a ação de Deus, porque não está só na origem, mas permanece como constante fundamental em todo o Antigo Testamento (a parcialidade de Deus para com as vítimas pelo mero fato de serem vítimas, a ativa defesa que faz das vítimas e seu desígnio libertador para com elas”[3]. Éleos aparece muito na Septuaginta (LXX). Traduz, quase sempre, o termo hebraico hesed que aparece centenas de vezes no Primeiro Testamento bíblico, sobretudo nos Salmos (127 vezes). Hesed indica o compromisso de Deus dentro da Aliança com o povo. É um termo central na aliança entre Deus e o povo. Na compaixão‑misericórdia de Jesus revela‑se o Hesed de Deus. “Hesed” indica uma profunda atitude de bondade. “Quando esta disposição  se estabelece entre duas pessoas, estas passam a ser, não somente benévolas uma para com a outra, mas ao mesmo tempo, reciprocamente fiéis por força de um compromisso interior, portanto também em virtude de uma fidelidade para consigo próprias”[4] A Bíblia de Jerusalém traduz éleos por Misericórdia.
1.4) Ilásteti aparece uma vez no Evangelho de Lucas: Lc 18,13 na boca do publicano. É o imperativo do verbo (H)ilaskesthai. A palavra grega, normalmente traduzida por: “Tem piedade ou seja propício!” Quer dizer: Seja propício para comigo! Ou seja, tire de mim aquilo que me impede de relacionar com você, meu Deus! Ou seja, a pessoa que clama por (H)ilásmos sente que quebrou a aliança com Deus, que não está amando como é amada e reconhece‑se incapaz de restabelecer a aliança com Deus. Sente que a aliança foi quebrada e somente por iniciativa de Deus pode ser restabelecida. É um termo com conotação jurídica que visa através de um rito de propiciação restabelecer a comunicação com Deus. Quem clama por (H)ilásmos reconhece que Deus é bondoso, misericordioso, maior que nossa fragilidade. Deus é miseriordiosíssimo. Deus é éleos, (misericórdia) e, por isso, podemos clamar por (H)ilásmos.
2)      As Palavras gregas nas frases.
2.1) O termo Esplangnisthe aparece três vezes no Evangelho de Lucas, em passagens exclusivas do terceiro evangelho. Demonstram características específicas de Lucas.
l) Em Lc 7,13 diz que Jesus ao ver a viúva de Naim no enterro do seu único filho: “ ... ficou comovido... ou “ ... ficou cheio de íntima compaixão”. Esta é a única frase do Evangelho aonde Lucas diz explicitamente que Jesus “ficou cheio de íntima compaixão”.
2) Em Lc 10,33 onde diz que um samaritano, ao se aproximar de uma pessoa         despojada, espancada e caída à margem da estrada: “...viu‑o e moveu‑se de compaixão”. Aqui o compassivo não é Jesus, mas um samaritano.
3) Em Lc 15,20 onde, na parábola do Pai misericordioso, diz que o Pai ao ver de longe o filho que retornava à casa paterna: “.. viu‑o e encheu‑se de Compaixão”. Nos três termos aparecem a compaixão a partir de um contato quase físico. É pelo ver que se desperta a compaixão.

2.2) O termo Éleos como substantivo ocorre seis vezes no Evangelho de Lucas:
l) Em Lc 1,50: “A sua misericórdia (éleos) perdura de geração em geração”.
2) Em Lc 1,54: “Socorreu Israel, seu servo, lembrando de sua Misericórdia (éleos)”.
3) Em Lc 1,58, onde o nascimento de João Batista é visto pelos vizinhos e parentes como fruto da misericórdia (éleos) de Deus para com Isabel. Duas vezes ocorre no cântico de Zacarias.
4) Em Lc 1,72, o nascimento de João Batista é celebrado como: “... para fazer Misericórdia (éleos) com nossos pais” e para cumprir a aliança feita com o povo. Deus, por ser misericordioso, fez a aliança com o povo e, por ser misericordioso, permanece fiel à aliança contribuindo para com a libertação-salvação de todos.
5) Em Lc 1,78, os termos éleos e esplangná aparecem combinados. Aí “graça ao misericordioso coração (entranhas do nosso Deus), João Batista é profeta para “preparar os caminhos do Senhor”(Lc 3,4). Nestes cinco casos, o termo éleos se refere a Deus. Fazem reminiscência do termo hebraico hesed do Primeiro Testamento. Revelam que o Deus misericordioso do Primeiro Testamento continua agindo no Segundo Testamento.
6) Em Lc 10,37, no arremate da parábola do bom samaritano, o termo éleos aparece combinado com o termo grego poiésas (verbo fazer no pretérito perfeito do indicativo). Jesus, após contar a parábola do bom samaritano, pergunta ao escriba: “ ‑ Qual dos três, ... se tornou o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes? “ O escriba responde: “ ‑ Aquele que fez (poiésas) misericórdia (éleos) para com ele.”

No começo, o samaritano teve compaixão (esplangnísthè), mas no final do episódio, Jesus não pergunta: Quem teve compaixão? Mas: “Quem fez Misericórdia (poiésas e éleos)?” (Lc 10,37). Compaixão só é insuficiente! É necessário misericórdia. Não basta se comover interiorizando o sofrimento alheio! É preciso exercer a solidariedade libertadora e emancipatória, não como cumprimento de um dever, ou de uma norma; mas como consequência espontânea da comoção que desperta o amor gratuitamente.

2.2.1) O termo éleos como verbo aparece quatro vezes no Evangelho de Lucas:

l) Em Lc 16,24, onde diz que morreu um rico granfino que se banqueteava cotidianamente. Na mansão dos mortos, atormentado, vê Abraão, e, no seu seio, Lázaro, o pobre leproso, e exclama: “Pai Abraão, tem compaixão de mim!” Ou seja, “compadece‑te de mim!” Aqui o insensível quando cai em sofrimento e ao ver outro sofredor reconhece a sua condição de frágil e clama por misericórdia (éleos).
2) Em Lc 17,13, onde diz que dez leprosos vêm ao encontro de Jesus e clamam: “Jesus, mestre, tem compaixão de nós!”.
3) Em Lc 18,38, onde diz que um cegado, em situação de rua em Jericó, ao ouvir que Jesus passava perto dele pôs‑se a gritar: “Jesus, Filho de Davi, tem compaixão (éleos) de mim!”
4) Em Lc 18,39, onde diz que o cegado sendo silenciado gritava mais alto ainda: “Filho de Davi, tem compaixão de nós!”
Nestes casos, exceto Lc 16,24, são os injustiçados (cegados em situação de rua, leprosos ...) que clamam a Jesus por misericórdia. Interessante é que os sofredores não clamam por compaixão  (esplangnísthè), mas por misericórdia (éleos). Os sofredores e injustiçados não querem que os outros fiquem apenas comovidos, sensibilizados, pela dor deles, mas esperam que os outros deem um passo adiante: que sejam misericordiosos. Ou seja, que pratiquem a misericórdia exercendo solidariedade libertadora, não a que acomoda e tranquiliza consciência. A maior esperança dos injustiçados é que Jesus seja misericordioso para com eles e não apenas se comova com a dor deles.
2.3) O termo Oiktirmon(es) ocorre uma vez no singular e outra vez no plural no Evangelho de Lucas em uma passagem exclusiva de Lucas. Em Lc 6,36 onde é usado para caracterizar a fisionomia de Deus: “Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso”. São as pessoas que se auto‑julgam, se condenando ou não, na medida em que responde livremente ao projeto de Deus. Deus não julga, não condena, mas perdoa e doa a si mesmo aos outros.
2.4) O termo Ilásteti aparece uma única vez no evangelho de Lucas. Em Lc 18,13 em uma parábola contada por Jesus com o objetivo de questionar os fariseus. Estes se consideravam justos e salvos, não ladrões, não adúlteros, não publicanos. Eram os separados. Parte do povo considerava os fariseus como modelos de piedade e como a realização desse ideal que haviam concebido os escribas, os homens da ciência divina. Segundo Flávio Josefo, os fariseus tinham fama de serem mais piedosos que os demais e de observar conscienciosamente a Lei (cf. Guerra Judia 1,1,110). Jejuavam duas vezes por semana (a Lei prescrevia jejuar um vez por ano); Eram dizimistas fiéis. Jesus mostra que a oração farisaica não vale. O publicano é apresentado como modelo. É humilde. Bate no peito dizendo: “Meu Deus, tem piedade (ilásteti) de mim, pecador”. Não se absolutiza e reconhece a verdadeira fisionomia de Deus: compaixão‑misericórdia. O publicano faz a caminhada difícil para o único lugar que realmente interessa:  para dentro de nós mesmos. Por experienciar um Deus misericórdia neste mergulho em si mesmo e em Deus, o publicano se abre ao outro e clama: Piedade! Eis o caminho que uma Espiritualidade da Compaixão‑misericórdia apresenta para o nosso processo de humanização.
Referência.
JOÃO PAULO II. Encíclica Dives in Misericordia, de 30/11/1980, Doc. Pontifício n. 193.
SOBRIÑO, J., El Principio~Misericordia, Bajar de la cruz a los pueblos crucificados, col. “Presencia Teológica”, 67, Editorial Sal Terrae, Bilbao, España, 1992.

Belo Horizonte, MG, Brasil, 06 de janeiro de 2016.



[1] Assessor da CPT, do CEBI, de CEBs e do SAB; doutorando em Educação na FAE/UFMG. Esse texto aqui está publicado no Livreto “2016, ano da Misericórdia”. São Paulo: Província Carmelitana de Santo Elias, 2016, p. 29-36. gilvanderlm@gmail.comwww.freigilvander.blogspot.com.br Face: Gilvander Moreira
1  J. SOBRIÑO. El Principio~Misericordia, p. 26.
1  Ibidem, p. 33.
2  JOÃO PAULO II. Encíclica "Dives in Misericordia, de 30/11/1980, Doc. Pontifício n. 193, nota 52, p. 15.

O CASO DO HELICÓPTERO, por Antônio Pinheiro, de Belo Horizonte, 26/01/2016.

O CASO DO HELICÓPTERO

 Antônio Pinheiro, de Belo Horizonte, pai do Chico Pinheiro da TV Globo.

A liberdade de imprensa e o compromisso com a verdade são dois mitos que insistem em desafiar os profissionais que lidam diariamente com a informação.
Se por um lado, no caso brasileiro, os jornalistas ficaram livres daquela censura mais ostensiva, escancarada e torpe, própria dos regimes ditatoriais, de outro, eles continuam sofrendo cerceamento em sua liberdade de expressão por parte dos grupos econômicos e políticos que dão sustentação às empresas para as quais trabalham.
Assim, não são raras as ocasiões em que os jornalistas são simplesmente impedidos de abordar ou reportar determinados assuntos ou de noticiá-los de maneira mais clara ou isenta.
Ou eles se submetem à ordem estabelecida ou são demitidos.
Como leitor assíduo de jornais e, eventualmente procurado por jornalistas em função das posições políticas que adotei ao longo da minha vida pública, essa é uma questão que sempre me intrigou e despertou curiosidade.
Lembro-me de certa vez, quando exercia o mandato de deputado estadual na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), ter recebido em meu gabinete um jornalista que havia feito a cobertura de um dos meus pronunciamentos no plenário daquela Casa.
Tratava-se de um profissional respeitado pelos seus pares e pelos colegas parlamentares, que foi até minha sala tentar justificar-se comigo pelo fato de não ter dado o devido destaque ao teor do que eu havia dito em sua reportagem que saiu publicada em um grande jornal da capital mineira.
De acordo com esse profissional, cuja identidade, por motivos óbvios, peço licença para manter em sigilo, o jornal para o qual trabalhava, lhe pagava um salário insuficiente para cobrir as suas despesas.
Assim, para compor o seu orçamento, teve que buscar um segundo emprego. Achou-o na Assembleia Legislativa, que, como uma mãe, lhe pagava duas vezes mais do que recebia pelo jornal.
Em função disso, ficou clara a razão pela qual a sua matéria saíra incompleta, pois, segundo me explicou, ela deveria seguir certos protocolos, ter um certo viés capaz de atender a determinados interesses políticos partidários.
Já desconfiava disso, e tal fato só veio confirmar a censura camuflada que vigora em nosso Estado e em nosso país.
Um flagrante desrespeito à opinião pública e ao cidadão que paga seus impostos (e, que, indiretamente, paga os salários daquele jornalista e dos deputados), mas que tem subtraído por interesses escusos, o seu sagrado direito à informação.
Menciono este caso para lembrar-lhes de outra notícia, bem mais importante que saiu publicada na imprensa em 26/11/2013.
Ganhou logo as páginas dos jornais e os telejornais como mais um grande escândalo político, mas que, não obstante o seu potencial escandaloso, acabou sendo esquecido (ou abafado) pela mídia, já que ninguém fala mais sobre ele.
Trata-se do caso do helicóptero pertencente a uma empresa da família do senador Zezé Perrella (PDT-MG) que foi apreendido naquele dia transportando meia tonelada de cocaína.
Soube-se depois que a aeronave era pilotada por um funcionário da ALMG lotado no gabinete do filho do senador, o deputado Gustavo Perrella (SD), e que era abastecida com dinheiro público.
O helicóptero teria saído com a droga de São Paulo, fez escala em Divinópolis (MG), e depois seguiu rumo a uma fazenda em Afonso Cláudio (ES), onde foi preso pela Polícia Federal.
Ou seja: um helicóptero e pilotos pagos com dinheiro público para traficar 450 quilos de cocaína.
Estou enganado ou isso não é um escândalo? Um helicóptero transportando cocaína à custa do erário dos vazios cofres do Estado de Minas Gerais!
Diante disso, me vem à memória os recentes pronunciamentos feitos pelos deputados Sávio Souza Cruz quando denunciou da tribuna da ALMG que a Casa que nos representa é um “prostíbulo”, e  Sargento Rodrigues, que igualmente indignado, denunciou publicamente que há colegas seus que são “venais”.
Como a imprensa, conforme dito no início desse artigo, tem lá suas limitações para tratar determinados temas, indago então aos nossos caros parlamentares, se eles vão preferir vestir a carapuça ou dar um basta nessa situação escandalosa, investigando a fundo esse caso que associou a instituição ao tráfico de drogas e manchou vergonhosamente a sua imagem e história?
Quando darão uma satisfação à opinião pública? Quando esclarecerão a quem pertencia esta carga de desgraça, que é a cocaína? Qual será a punição que pretendem aplicar aos envolvidos? E como a ALMG será ressarcida pelo dinheiro que foi desviado?
Minas Gerais e o Brasil não merecem mais esse vexame moral, como bem disse o nobre jornalista Acílio Lara Resende, em artigo publicado no jornal “O Tempo” do dia 7 de janeiro de 2016. Nos diz ele que “além da inteligência, o Brasil perdeu a sua consciência moral.”
Volto a citar um provérbio bíblico: Se “um filho insensato é a desgraça dos pais”, não seriam um bando de políticos insensatos os responsáveis pela desgraça que hoje abate nosso povo?



terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Deus e a chuva não são culpados. Por frei Gilvander Moreira

Deus e a chuva não são culpados.
Frei Gilvander Luís Moreira[1]

Diante dos deslizamentos de terra e das inundações, é nojento ouvir jornalistas na grande imprensa dizerem: “a chuva está castigando ...”. “A chuva está causando estragos ...” Não é a chuva e nem Deus que deve ser condenado. Colocar a culpa na chuva e em Deus é encobrir o real – ideologia –, é criar uma cortina de fumaça que ofusca a realidade beneficiando somente os adoradores do capitalismo – grandes empresários, políticos profissionais (uma corja) e ingênuos sustentadores da engrenagem que continua a trucidar vidas em progressão geométrica.
A chuva é benfazeja, cai sobre justos e injustos, diz o evangelho de Mateus (Mt 5,45). A chuva é reflexo da bondade de Deus, que é infinito amor. Deus rega com a chuva a terra que deu como herança ao seu povo (I Rs 8,36). “Mandarei chuva no tempo certo e será uma chuva abençoada (Ez 34,26)”, assim o profeta Ezequiel consola o povo em tempos de imperialismo e de exílio, em tempos de escassez de chuva. A sabedoria do povo da Bíblia reconhece que Deus, solidário e libertador, “através da chuva, alimenta os povos, dando-lhes comida abundante (Jó 36,31).” Na Bíblia se fala de chuva mais de cem vezes. Até no dilúvio, a chuva é vista como purificadora (cf. Gênesis 6 a 9). Sob o imperialismo dos faraós no Egito, a chuva de granizo é vista como uma praga que fustiga os opressores, ao mesmo tempo que é uma dádiva de Deus que liberta da opressão (cf. Gênesis 9 e 10).
A chuva não castiga e nem desabriga ninguém, apenas revela uma injustiça socioeconômica e política existente anteriormente. Dizer que “a chuva castiga” é mentira, é reducionismo que esconde o maior responsável por tanta dor e tanto pranto: o sistema capitalista e a classe dominante, que descartam as pessoas e as condenam a sobreviverem em encostas e áreas de risco. Quem é atingido quando a chuva chega exageradamente, salvo exceções, são as famílias que tiveram seus direitos humanos fundamentais – direito à moradia, ao trabalho, à educação, a um salário justo, ao meio ambiente equilibrado e à dignidade – desrespeitados pelo capitalismo neoliberal e por pessoas que adoram o deus capital, o maior ídolo da atualidade.
Logo, gratidão eterna à chuva e ao Deus da vida, mas ira santa e rebeldia diante dos que de fato desabrigam e golpeiam os injustiçados.



[1] Padre da Ordem dos Carmelitas. Bacharel e licenciado em Filosofia pela UFPR, bacharel em Teologia, mestre em Exegese Bíblica, doutorando em Educação na FAE/UFMG. Assessor de CEBs, CPT, CEBI e SAB. E-mail: gilvanderlm@gmail.comwww.freigilvander.blogspot.com.br – face: Gilvander Moreira


sábado, 16 de janeiro de 2016

OPTAR PELOS POBRES E PELA POBREZA TAMBÉM, por Dom Pedro Casaldáliga

OPTAR PELOS POBRES E PELA POBREZA TAMBÉM
Dom Pedro Casaldáliga

A opção pelos pobres é uma opção sempre atual, pelo menos para um cristianismo que mereça este nome. Atual e essencial. Por dois motivos: porque é a opção do Deus de Jesus e porque é uma opção que afeta estruturalmente a vida da sociedade humana e a missão da Igreja.
É justo reconhecer que a Igreja, genericamente falando, sempre optou pelos pobres em termos de caridade beneficente, de assistência pontual, às vezes também de misericórdia heroica. Comblin, sempre incisivo e lucidamente demolidor, como um profeta bíblico, escreve que “a opção pelos pobres ainda é uma invenção a ser posta em prática”; e que “não podemos imaginar toda a transformação que implica para uma Igreja habituada a se adaptar às classes dominantes”. Acrescenta ainda, duro e veraz: “Como é sabido, a fórmula opção pelos pobres foi imediatamente corrigida pelo magistério. Disseram: “Opção preferencial, não exclusiva, pelos pobres”. O que se quer dizer com a expressão não exclusiva? Na prática se quer dizer; Não até o ponto de que tenhamos que mudar nossos comportamentos, nossas estruturas fundamentais, que são de classe média”. “Fazer a opção pelos pobres é hoje um desafio quase impossível, porque supõe uma ruptura com a cultura dominante e não há nenhum signo de que a Igreja católica queira se distanciar da cultura dominante.”
Hoje a opção pelos pobres deveria ser mais provocativamente atual, porque a pobreza é maior e mais globalmente estruturada. Porque os pobres são pobres como pessoas e como povos, vivem na pobreza e estão sem poderes e são sempre mais empobrecidos e despojados. Já não são apenas pobres, são também excluídos, sobrantes, não existem para o sistema.
A tentação, que Comblin aponta como pecado real, é forte mesmo e consiste em relativizar essa opção e fazer dela uma entre outras opções cristãs.
É interessante observar, em vários textos de Comblin, como ele faz questão de proclamar, com o Evangelho na mão, que os ricos também podem se salvar. Jesus, vem dizer Comblin, não ignorou os ricos nem os condenou simpliciter: apenas ... lhes exigiu, lhes exige e lhes exigirá sempre que deixem de ser ricos privilegiados e excluidores. Conjugar isso honestamente, na vida prática, eis a questão! Coração de pobre e vida de rico, isso parece uma contradição nos termos, evangelicamente falando.
Trata-se então de firmar a opção pelos pobres; de retoma-la, lucidamente, atualizadamente, mundialmente, estruturadamente.
E essa estruturação da opção pelos pobres, essa sua mundialização, exige optar-se também pela pobreza. Para a Humanidade, submetida hoje como nunca a tentação do ter e do consumir, do lucro e do privilégio, se impõe uma virada radical: da civilização do capital para a civilização do trabalho, da civilização acumulação para a civilização da partilha, da civilização do privilégio para a civilização da igualdade fraterna. Desta civilização, que chamamos ocidental ( e às vezes “ocidental-cristã”), para a “Civilização da pobreza”, como pedia o teólogo mártir Ellacuría, nos tempos heroicos de El Salvador. Ou a “Civilização da sobriedade”, para ajudar a entender a pobreza sem a acusação – desculpa de “pauperismo”.
Evidentemente, não estamos a favor da pobreza dos pobres. Estamos contra sua pobreza injusta e contra a riqueza iníqua dos ricos. Optamos pelo testemunho de vida e morte do pobre Jesus de Nazaré. Optamos pela pobreza do Reino, proclama feliz no código das bem – aventuranças.
A opção pela pobreza que o Evangelho nos exige inclui necessariamente uns valores profeticamente contestatários. Rafael Aguirre, em seu livro Ensayo sobre los Orígenes Del cristianismo, destaca três grandes valores centrais preconizados por Jesus, que simultaneamente contestavam e contestam antivalores de seu tempo e de todos os tempos. Diante do prurido da honra, a simplicidade e “o último lugar”; diante da paixão pelo poder, a constante disponibilidade para o serviço; da cobiça do ter, o despojamento e a partilha; diante da lógica da força, o instinto divino da doação e do amor desinteressado.
Optar pelos pobres e pela pobreza, assim entendido, é lutar pela justiça, pela fraternidade, pela paz. Quando se proclama nos fóruns alternativos que “um outro mundo é possível”, quer se dizer que é possível e necessário um mundo significativamente “outro”. Sem agressões à natureza, tão brutalmente depauperada por esta nossa civilização industrial; sem prepotências pessoais, ou nacionais, ou imperiais, para possibilitar o concerto dialogante e pacífico dos povos e das culturas; sem consumismo desenfreados que necessariamente produzem a fome e a exclusão. Um mundo sem Lázaros e sem Epulões. “Uma família de mais ou menos todos iguais”, como pedia generosamente o patriarca sertanejo da ilha do Bananal.
Deve-se lutar pela justiça, pela paz, “pobremente”, com a simplicidade do coração e com meios popularmente e evangelicamente pobres. Não se vence a riqueza injusta com uma militância rica! A própria evangelização não justifica o poderio, a ostentação, o marketing.
A tentação, dizíamos, é encostar a opção pelos pobres, como uma opção secundária, opcional. E é mais tentação ainda, por mais sofisticadamente apresentada, a tentação de considerar anacrônica antimoderna, desfuncional, a opção pela pobreza evangélica – nas pessoas cristãs, nas famílias cristãs, nas congregações religiosas, nas cúrias e nas excelências eclesiásticas. São tentações muito atuais e sedutoramente formuladas. Teria passado a época do Evangelho “sem glosa” , a época dos entusiasmos de Medellín e a época dos martírios pelo Reino. Agora estamos na modernidade pós – moderna e no carismatismo apaziguador. Não estão na moda nem os grandes relatos, nem os grandes paradigmas, nem as grandes opções ...
Bernhard Häring, depois de ter revolucionado a visão e o ensino da moral cristã, nos deixou, em seu livro Rezo porque vivo, vivo porque rezo, este pedido testamentário: “Não temos outra alternativa, se queremos ser cristãos: devemos fazer nossas as opções do pobre de Javé, esposar a pobreza e estar atentos a todos os pobres que vivem ao nosso redor, depois de termos traçado uma vida em virtude da qual se suavize a miséria em todas as partes do mundo”.