STF proíbe despejo sem alternativa adequada e prévia. Por Frei Gilvander Moreira[1]
Legenda: Jornada Nacional de Luta pela Moradia. Fonte: Campanha Despejo ZeroDia 31 de outubro último (2022) venceu o
prazo da ADPF 828 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental da
Constituição), do Supremo Tribunal Federal (STF), que proibia despejos no país
no campo e na cidade, em ocupações coletivas e em casos de inquilinos
individuais durante a pandemia. Os partidos PSOL e PT, RENAP[2] e
Terra de Direitos[3],
e dezenas de outras Organizações de Direitos Humanos pleitearam pela 4ª vez “a extensão do prazo da medida liminar
concedida até que advenha o julgamento de mérito da ADPF 828, ou por mais 6
(seis) meses ou até que cessem os efeitos sociais e econômicos da Pandemia da
covid-19 e, deste modo, continuem sendo e/ou sejam suspensos todos os
processos, procedimentos ou qualquer outro meio que vise a expedição de medidas
judiciais, administrativas ou extrajudiciais de remoção e/ou desocupação,
reintegrações de posse ou despejos de famílias vulneráveis, enquanto perdurarem
os efeitos sanitários, sociais e econômicos da Covid-19.” O ministro do STF
Luis Roberto Barroso não estendeu o prazo da ADPF 828. Entretanto, o ministro
Barroso determinou um Regime de Transição para que, “de forma gradual e escalonada”, “para não geral convulsão social”, se retome o cumprimento de
reintegrações de posse, mas com a condição de que seja garantido alternativa
digna, adequada e prévia para todas as famílias das ocupações para que o
direito à moradia seja garantido, conforme prescreve a Constituição Federal.
A brutal injustiça agrária no Brasil,
que concentra 50% da terra nas mãos de apenas 2% de pessoas ou empresas, tem impulsionado
um imenso êxodo rural nos últimos cinquenta anos e gerado uma dramática
injustiça urbana, que leva à existência atual de um altíssimo déficit
habitacional no país, com mais de 6 milhões de famílias sem moradia no Brasil e
sendo que mais da metade da população de 215 milhões de pessoas vive em
condições inadequadas de moradia, e 52%, segundo dados de 2019, pagam aluguel
acima de 30% de sua renda. Nos últimos quatro anos, com o empobrecimento das
famílias, durante o desgoverno do inominável, aumentou-se o número e a
quantidade de favelas nas cidades médias e grandes do Brasil. Pesquisa
realizada pela Prefeitura do Rio de Janeiro em 2021 revelou que 31% das pessoas
estão na rua há menos de um ano, sendo 64% por perda de trabalho, moradia ou
renda. Destes, 42,8% afirmaram que, se tivessem um emprego, sairiam das ruas[4]. Pesquisa
do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de
Rua (POLOS-UFMG) revelou que, em 2019, eram 174.766 pessoas em situação de rua
no país, enquanto, em setembro de 2022, o número saltou para 213.371[5]. A
Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (PENSSAN),
registra o avanço da fome: são 15,5% de domicílios com pessoas passando fome, o
que corresponde a 33,1 milhões de pessoas.
Estão em ocupações famílias inteiras,
pessoas desempregadas que, para não irem para as ruas, ocuparam terrenos e
prédios abandonados, que não cumpriam sua função social. Cerca de 75% de quase
um milhão de pessoas ameaçadas de despejo são mulheres, crianças e idosos; são
pessoas que não suportam mais a pesadíssima cruz do aluguel ou a humilhação que
é sobreviver de favor nas costas de parentes ou ainda sobreviver nas ruas.
Foi imprescindível e vital a decisão do STF
de suspender os despejos durante a pandemia da covid-19. O STF acolheu reivindicação da Plataforma Despejo Zero, Campanha
Nacional por Despejo Zero, integrada por 175 Movimentos Sociais Populares e
Organizações de defesa dos Direitos Humanos. Se a orientação da Organização
Mundial da Saúde (OMS) e da comunidade científica era ficar em casa para evitar
pegar covid-19, teria sido um massacre brutal empurrar para as ruas cerca de
500 mil famílias, cerca de 2 milhões de pessoas, que estão em ocupações no
campo e na cidade no país. Atualmente, segundo levantamento da Plataforma
Despejo Zero, se tivesse simplesmente terminado a ADPF 828, a que proibiu os
despejos até 31/10/2022, cerca de 200 mil famílias, ou seja, quase 1 milhão de
pessoas, seriam despejadas imediatamente e jogadas na rua.
Entretanto, após adiar por três vezes a
proibição de despejos durante a pandemia, exceto os ministros bolsonaristas
Nunes Marques e André Mendonça, nove ministros do STF, dia 02/11/22, confirmaram
a decisão do ministro Luis Barroso que determinou um Regime de Transição para
os tribunais lidarem com as Ocupações coletivas que estão sob decisões judiciais
de reintegração de posse. Segundo o Regime de Transição determinado pelo STF, os
tribunais estaduais e regionais federais devem criar imediatamente Comissões de
Conflitos Fundiários para mediar os conflitos que envolvem todas as famílias em
ocupações que estão sob decisão judicial que manda despejar quem está em
ocupações. “As Comissões devem ser permanentes
e ter a presença permanente de órgãos públicos municipais, estaduais e federais
de habitação, regularização fundiária, assistência social, saúde e de proteção
de direitos de vulneráveis (ex.: conselho tutelar), além da Defensoria Pública
e do Ministério Público. E devem ter
como referência o modelo bem-sucedido adotado pelo Tribunal de Justiça do
Estado do Paraná”, definiu o STF. Diz a decisão do STF: “As Comissões de Conflitos Fundiários devem
fazer visitas técnicas, audiências de mediação e, principalmente, propor a
estratégia de retomada da execução de decisões suspensas pela presente ação, de
maneira gradual e escalonada”.
As Comissões têm o “objetivo de mediar conflitos fundiários de natureza coletiva, rurais ou
urbanos, de modo a evitar o uso da força pública no cumprimento de mandados de
reintegração de posse ou de despejo e (r)estabelecer o diálogo entre as partes”.
Frise-se que a decisão do STF exclui o uso da força pública (de polícia) na
execução do despejo. Ou seja, as Comissões de Conflitos fundiários dos
Tribunais devem ser exitosas na construção de justa mediação de forma que
garanta o direito à moradia. Logo, as Comissões não poderão ser “só proforma” e
encaminhar despejo após sua atuação. “As
Comissões poderão atuar em qualquer fase do litígio, inclusive antes da
instauração do processo judicial ou após o seu trânsito em julgado”, diz a
decisão do STF. As Comissões deverão ainda “atuar
na interlocução com o juízo no qual tramita a ação judicial, interagir com as
Comissões de Conflitos Fundiários instituídas no âmbito de outros poderes e
órgãos, como o Governo do Estado, a Assembleia Legislativa, o Ministério
Público, a Defensoria Pública etc.” “Nos
casos judicializados, as Comissões funcionarão como órgão auxiliar do juiz da
causa.” A decisão do STF enfatiza ainda: “Os juízes devem ponderar os impactos sociais da execução das
reintegrações de posse e atuar, nos limites da sua jurisdição, a fim de evitar
ao máximo a violação de direitos fundamentais.”
Na decisão do STF o ministro Luis Barroso
enfatiza: “Volto a registrar que a
retomada das reintegrações de posse deve se dar de forma responsável, cautelosa
e com respeito aos direitos fundamentais em jogo”, ou seja, apenas quando
se comprovar realmente que é justa a decisão de reintegração de posse e após se
arrumar alternativa digna, prévia e adequada de moradia, se faculta a
realização de despejo. Despejo forçado, jamais, pois violenta os direitos
fundamentais da pessoa humana assegurados na Constituição de 1988.
Das alternativas dignas e prévias que
abram espaço para despejo precisam estar excluídos como suficientes o
cadastramento pelo poder público municipal e inclusão em fila de espera da
moradia, o envio para abrigos públicos, por serem insalubres, inadequados e com
rígidas restrições à liberdade das pessoas, e o pagamento de auxílio aluguel, (auxílio moradia), por ser migalha
super contraditória: a) o valor é insuficiente, só uns 30% do que se precisa para
alugar moradia digna; b) Em muitos casos, as prefeituras param de pagar após alguns
meses; c) Hiperinflaciona os aluguéis na cidade; 4) Desresponsabiliza o
prefeito, o governador e o presidente sobre a necessidade de implementar
política pública de moradia efetiva para todo o povo, o que joga
novamente as pessoas nas ruas ou as forçam a fazer outras ocupações.
O STF determinou respeito à dignidade
humana e que em casos de decisões administrativas que exijam despejo de pessoas
vulneráveis “não pode haver a separação
das pessoas do núcleo familiar” em caso de oferecimento de abrigamento
público ou outras moradias dignas. O justo e constitucional é proibir
definitivamente despejo de ocupações onde se comprove que a propriedade estava
ociosa, abandonada e sem cumprir a função social, pois as ocupações coletivas
por necessidade são uma forma de pressão constitucional assegurada por decisão
do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em jurisprudência da lavra do ex-ministro
Luiz Vicente Cernicchiaro, para que se cumpra o direito à terra e à moradia,
assegurado na Constituição. Contudo, a decisão do STF é um passo importante,
uma opção ética e responsável para lidar com a injustiça agrária e urbana que
causa as ocupações e de como resolvê-las de forma justa, ética e pacífica. É imprescindível que o juízo de um
conflito fundiário urbano ou rural verifique pontos como a existência de título
válido por quem demanda a desocupação e o cumprimento da função social do
imóvel por seu titular.
Em Minas Gerais, a decisão do STF, acima
referida, na prática, exige o fortalecimento e a ampliação da autonomia da Mesa
de Negociação do Governo de MG com as Ocupações e do CEJUSC (Central de
Conciliação do TJMG) que deverão lidar de forma responsável socialmente com
todos os conflitos urbanos e camponeses. Esperamos sensatez, espírito ético e
republicano dos tribunais no cumprimento da decisão do STF. Por isso, todos nós
dos Movimentos Sociais e todo o povo das Ocupações seguiremos lutando. Enquanto
morar for um privilégio, ocupar é um direito e o direito à moradia precisa ser
garantido. Todo despejo é desumano e brutal, pois destrói moradias, histórias,
sonhos e mata de muitas formas as pessoas. Viva a luta por acesso à terra e à
moradia!
O STF determina que sejam seguidas as
Resoluções n.º 10/2018 e n.17/2021 do Conselho Nacional de Direitos Humanos
(CNDH) e a Resolução nº 90/2021 do Conselho Nacional de Justiça, que “recomenda aos órgãos do Poder Judiciário a
adoção de cautelas quando da solução de conflitos que versem sobre a
desocupação coletiva de imóveis urbanos e rurais durante o período da pandemia
do Coronavírus (Covid-19).” Portanto, seguiremos lutando para que o
Congresso Nacional aprove lei no sentido de adequar a política fundiária e
habitacional do país que garantam justiça agrária e urbana. É injustiça voltar
a despejar desconsiderando a análise da função social da propriedade e sem
alternativa adequada e prévia. Uma leitura atenta da decisão do STF conclui que
fica proibido despejo sem alternativa adequada e prévia.
08/11/2022
Obs.: As videorreportagens nos
links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 - Levantemo-nos!
À luta por direitos, já! - Por frei Gilvander - 05/11/2022
2 - 220
Famílias da Ocupação Terra Prometida, Ibirité/MG, preservam APP e se liberta da
cruz do aluguel
3 - Preservar
Área de Proteção Permanente e 220 casas: Famílias da Ocupação Terra Prometida,
Ibirité/MG
4 - CPT e
MLB c Ocupação Terra Prometida, em Ibirité/MG: luta por moradia p se libertar
da cruz/aluguel
5 - Segue
Sexta-feira da Paixão em Ibirité/MG. MRS/Vale, despejo/DEMOLIÇÃO de CASAS SEM
DECISÃO JUDICIAL
6 - Pingo
D’água, em Betim/MG, Ocupação-Bairro em franco processo de consolidação. STJ:
"Despejo, NÃO!"
7 - Despejo em
Raposos/MG! PM e Anglo Gold, SEM MANDADO JUDICIAL. E APDF 828 do STF que proíbe
despejos?
8 - STJ: "Não
pode haver despejo em Ocupação que se consolidou." Ocupação Pingo
D'água/Betim/MG. REURB-S
[1] Frei e padre da
Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel
em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese
Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor
da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no
SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros.
E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira
III
[2] Rede Nacional de Advogadas e
Advogados Populares
[3] Organização de Direitos Humanos
– www.terradedireitos.org.br
[4] Disponível em: https://www.fiocruzbrasilia.fiocruz.br/populacaoem-situacao-de-rua-aumentou-durante-a-pandemia/.
Acesso em 07.11.2022.
[5] Disponível em:
https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/10/13/ao-menos-38-milnovas-pessoas-comecaram-a-viver-nas-ruas-desde-o-inicio-da-pandemiano-brasil.ghtml.
Acesso em 07.11.202
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