Cristãos no Brasil de
hoje: desafios da Fé e Política, papa Francisco e tarefas emancipatórias.
No 7º Encontro de Fé
e Política do estado do Rio de Janeiro, tarefas emancipatórias a partir dos
clamores dos injustiçados, do testemunho e dos ensinamentos do papa Francisco
na Exortação Apostólica A Alegria do Evangelho e no Discurso aos Movimentos
Sociais na Bolívia.
Gilvander Luís Moreira[1]
1. Introdução.
Dias 12 e 13 de setembro de
2015, tive a alegria e a responsabilidade de contribuir na assessoria do 7º
Encontro de Fé e Política do estado do Rio de Janeiro, em Angra dos Reis, com o
objetivo
de refletir, meditar, orar e
contemplar à luz da palavra de Deus na Bíblia e nas entranhas da realidade
histórica o tema Cristãos no Brasil de hoje: desafios da Fé e
Política. Para isso faz-se necessário resgatar a profecia do Concílio
Vaticano II e da Opção da Igreja pelos pobres e pelos jovens, opção da Igreja
afrolatíndia. Imprescindível ouvirmos os
clamores dos injustiçados e levarmos a sério o testemunho e os ensinamentos do
papa Francisco na Exortação Apostólica A Alegria
do Evangelho e no seu Discurso aos Movimentos Sociais na Bolívia.
Fizemos referência
ao cap. IV de A Alegria do Evangelho,
do papa Francisco, que trata justamente da Dimensão Social da Evangelização. Prestemos
atenção a algumas afirmações do papa Francisco:
“Se a dimensão social da evangelização não for devidamente explicitada,
corre-se o risco de desfigurar o sentido autêntico e integral da missão
evangelizadora.” (n. 176).
“Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter
saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se
agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o
centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos.” (n.
49).
Além de ser
pobre e para os pobres, a Igreja desejada por Francisco é corajosa em denunciar o atual
sistema econômico, "injusto na sua
raiz" (A alegria do Evangelho, n. 59). Como disse João
Paulo II, a Igreja "não
pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça" (n. 183).
"Saiam!" é a essência da mensagem que o papa Francisco envia a
bispos, padres, membros da comunidade. Saiam para fora das suas cômodas
estruturas eclesiais burguesas e do caloroso círculo dos convencidos – anunciem
o Evangelho às periferias das cidades, aos marginalizados pela sociedade, aos
pobres, aos injustiçados.
Às questões sociais, o
papa Francisco dedica
dois dos cinco capítulos da Exortação Apostólica A Alegria do Evangelho, o
segundo e o quarto. Critica o "fetichismo do dinheiro" e "a
ditadura de uma economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente
humano", versão nova e implacável da "adoração do antigo bezerro de
ouro".
Francisco critica o atual sistema econômico:
"esta economia que mata"
porque prevalece a "lei do mais
forte". Ele volta à cultura do "descartável" que criou
"algo novo" e dramático:
"Os excluídos não são 'explorados',
mas resíduos, 'sobras'" (n. 53). Enquanto não se resolverem
radicalmente os problemas dos pobres, renunciando "à autonomia absoluta
dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da
desigualdade social – insiste –, não se resolverão os problemas do mundo e, em
definitivo, problema algum". E indica na "desigualdade social" as raízes dos males sociais.
A Igreja não pode ficar indiferente a tais
injustiças. "A economia não pode
mais recorrer a remédios que são um novo veneno, como quando se pretende
aumentar a rentabilidade reduzindo o mercado de trabalho e criando assim novos
excluídos". Ele dedica páginas à denúncia da "nova tirania invisível, às vezes virtual"
em que vivemos, um "mercado
divinizado", onde reinam a "especulação
financeira", "corrupção
ramificada", "evasão fiscal
egoísta" (n. 56).
2. Pressuposto básico: Deus na história e o divino no
humano.
O Deus do cristianismo é um Deus da história,
quer dizer, age nas entranhas dos fatos e dos acontecimentos. O Deus da vida,
mistério de infinito amor, não faz mágica. Desde que Deus, por infinito amor à
humanidade, se encarnou-se, o divino está no humano.
O Concílio de Calcedônia, no ano de 451,
reconheceu Jesus Cristo com “natureza” divina e humana. O
apóstolo Paulo reconhece que Jesus de Nazaré é o Cristo, filho de Deus, mas
“nascido de mulher” (Gal 4,4), ou seja, humano como nós desenvolveu seu
infinito potencial de humanidade. “Jesus, de tão humano, se tornou divino,”
dizia o papa João XXIII.
“Não é ele o filho de Maria e Jose?”.
Progressivamente, na Galileia, Samaria e Judéia, Jesus se revela, à primeira
vista, em aparentes contradições, mas, no fundo, com tal equilíbrio que chama a
atenção de todos. Assim, ele testemunha que Deus é mais interior a nós do que
imaginamos. A mística “encarnatória” revela a pessoa humanamente divina e
divinamente humana. “Quem me vê, vê o Pai”.
Jesus, antes de se tornar mestre, foi
discípulo. Antes de ensinar, aprendeu muito com muitos: com Maria e José, com o
povo da sinagoga, com os vizinhos, amigos, com os acontecimentos históricos,
com a natureza etc.
Somos discípulos/as de Jesus Cristo, um jovem
camponês, da periferia, que foi condenado à pena de morte pelos podres poderes
da política, da economia e da religião. Somos discípulos/as de um mártir. Feliz
quem não esquece a vida, o testemunho e o ensinamento dos mártires.
3. Tarefas emancipatórias que a Dimensão Social da Fé Cristã
exige de nós hoje.
Vamos elencar na reflexão, abaixo, uma série
de tarefas que julgamos decorrer da Dimensão Social da Fé Cristã, dos desafios
da Fé e Política.
3.1 – Promover
libertação integral.
Uma das tarefas das pessoas cristãs é lutar
pela libertação integral das pessoas e de tudo e não apenas por libertação
espiritual. No programa de Jesus, em Lc 4,16-21, consta uma libertação política
(“libertar os presos”), social e econômica (“anunciar uma boa notícia aos
pobres”), libertação ideológica (“restituir a visão”, e espiritual (“proclamar
o Ano de Graça do Senhor”). Assim, Jesus resgata o Jubileu Bíblico (Lev
25,8-12). No ano do Jubileu, toca-se o “berrante” (em hebraico “sofar”), que acontece no primeiro ano
após sete vezes sete anos. Neste Jubileu, todas as dívidas devem ser perdoadas;
todas as terras devem voltar ao primeiro dono (aos ancestrais); todos os
escravos devem ser libertados. Enfim, é tempo de se fazer uma re-organização
geral na sociedade; tempo para recriar as relações humanas com fraternidade, justiça,
solidariedade libertadora, reconciliação e novos sonhos.
3.2 – Acreditar na ortopráxis.
Outra tarefa é defender uma ortopráxis (=
testemunho libertador), não uma ortodoxia (= opinião certa). O que de fato faz
diferença não é tanto o que a gente pensa ou em que acreditamos, mas o que
fazemos (ou deixamos de fazer). É hora de compromisso com o modelo de Igreja
querido pelo papa Francisco: Igreja popular, justa e misericordiosa. Urge
compromisso com outro projeto de sociedade, que seja justo, ecumênico e
sustentável ecologicamente.
3.3 - Rever
conceitos.
Verdade não é adequação de um conceito a um
objeto. Isso é verdade formal. “Verdade é o que liberta todos e tudo”, diz o
quarto evangelho da Bíblia. A verdade deve ser buscada conjuntamente. Ninguém é
dono da verdade. Verdade como o que liberta deve ser buscada a partir dos
pobres (últimos, pequenos, discriminados): pobre, excluído, sem terra,
indígenas, negros, pessoas com deficiências, idosos, desempregados,
homossexuais, mãe terra, irmã água, favelados, vítimas da violência etc.
É hora de perceber que a coisa mais sagrada é
também profana. Profanar é retirar do uso exclusivo para dar acesso a todos.
Pro-fanar vem do verbo grego faneo,
que quer dizer “brilhar”. Ou seja, que o brilho do sagrado seja estendido a
todos sem distinção e sem nenhuma discriminação. É hora de gritar “Não a todo e
qualquer dualismo!” Não há separação entre espiritual e material, entre sagrado
e profano, entre divino e humano, entre santo e pecador, entre puro e impuro
etc. Tudo está intimamente relacionado.
Jesus não morreu na cruz porque Deus quis,
mas foi condenado à pena de morte pelos podres poderes político-econômico e
religioso.
Jesus doou sua vida por todos e tudo. Jesus
testemunha um caminho de salvação, porque nos amou demais e não porque sofreu
demais.
Jesus tornou-se Cristo, pois conseguiu
desenvolver o infinito potencial de humanidade que cada pessoa traz consigo ao
chegar a este mundo. “Jesus foi tão humano, tão humano, que só podia ser Deus”,
disse o papa Paulo VI.
Milagre não é algo fruto de um poder
extraordinário que está acima do humano. Milagre é uma maravilha de Deus,
conforme diz o Primeiro Testamento da Bíblia. Milagre é um gesto solidário e
libertador de Deus agindo nas entranhas da história.
Deus não é juiz, pois Deus é amor. O único
poder que Deus tem é o poder do amor, que é de fato o que constrói.
Deus não é transcendente, mas
transdescendente. Na Bíblia, de ponta a ponta, vemos a imagem de um Deus
apaixonado pelo humano.
Deus não é neutro diante dos conflitos. Deus
faz opção preferencial pelos pobres (cf. Ex 3,7-10).
Não existe inferno, nem purgatório e nem
limbo como locais destinados aos pecadores, como descrito de forma
tradicionalista por muitos nas igrejas. Satanás (satã, em hebraico) ou diabo (diabolos, em grego) não são entes
abstratos, um deus negativo que faz oposição ao Deus da vida. Satanás (diabo) é
tudo o que divide, separa, desune, oprime, exclui, discrimina e depreda. Pode
ser uma dimensão interior nossa, mas em uma sociedade capitalista neoliberal
como a nossa, trata-se prioritariamente de estruturas e instituições que
oprimem, excluem e depreda a natureza. Podemos dizer que o agronegócio é
satânico, pois concentra riqueza em poucas mãos, expulsa os pequenos do campo e
devasta a biodiversidade. Uma democracia burguesa formal que não respeita a
Constituição Brasileira e pisa na dignidade das pessoas é uma falsa democracia,
algo também satânico.
Ser cristão implica ser anticapitalista. Não
dá para compactuar com os pretensos valores do capitalismo: concorrência,
competição, acumulação, lucrar e lucrar. Ser cristão é ser outro Cristo, alguém
que consola os aflitos, mas que também incomoda os acomodados. Tarefa da pessoa
cristã é buscar vida e liberdade para todos e tudo – e não apenas para alguns -
mas a partir dos últimos.
3.4 - Sentir-se
igreja, membro vivo de uma comunidade de fé libertadora.
“Igreja é Povo de Deus”, nos ensina o
Vaticano II. É hora de percebermos que o sacerdócio comum está acima do
sacerdócio ordenado. Os jovens não podem aceitar uma relação que os coloquem
como infantis e em uma postura de quem só deve obedecer. Nada disso. Os jovens
têm o direito e o dever de dialogar, discutir e reivindicar o direito de
decidir conjuntamente todos os assuntos que envolvem a vida da comunidade
cristã e da sociedade.
3.5 – Comprometer-se
com a Opção pelos pobres e pelos jovens.
O apóstolo Paulo, ao escrever sobre o
Concílio de Jerusalém, acontecido por volta dos anos 49/50 do 1º século diz que
a circuncisão, a maior de todas as barreiras, tinha sido abolida e que a única
coisa que os apóstolos fizeram questão de alertar foi: “Não esqueçam os
pobres.” (Gal 2,10) Esse alerta deve ser acolhido por todas as pessoas cristãs.
Mas faz bem ter um bom entendimento sobre quem é pobre. Primeiro, o carente
economicamente. Depois, a mulher, o indígena, o negro, o homossexual, a
divorciada, a mãe terra, a irmã água, o meio ambiente.
O pobre não é apenas como um poço de
carência, mas principalmente um portador de força ética e espiritual. Deus age
a partir dos pequenos. “O mundo será melhor quando o menor que padece acreditar
no menor”, dizia Dom Hélder Câmara, o santo rebelde.
3.6 - Partir da
periferia e dos injustiçados. O Evangelho de Lucas interpreta a vida, as ações
e os ensinamentos de Jesus ao longo de uma grande caminhada da Galileia até
Jerusalém, ou seja, da periferia geográfica e social ao centro econômico,
político, cultural e religioso da Palestina. A Palavra, no Evangelho de Lucas,
é a palavra de um leigo, de um camponês galileu, “alguém de Nazaré”, pessoa
simples, pequena, alguém que vem da grande tribulação. Não é palavra de sumo
sacerdote, nem do poder.
3.7 - Priorizar a
formação de base.
Na grande viagem de subida para Jerusalém, Jesus prioriza a formação dos
discípulos e discípulas. Ele percebe que não tem mais aquela adesão
incondicional da primeira hora. Jesus descobriu que para consolar os aflitos
era necessário também incomodar os acomodados e denunciar pessoas e estruturas
injustas e corruptas. Assim, o homem de Nazaré começou a perder apoio popular.
Era necessário caprichar na formação de um grupo menor que pudesse garantir os
enfrentamentos que se avolumavam. Jesus sabia muito bem que em Jerusalém estava
o centro dos poderes religioso, econômico, político e judiciário. Lá travaria o
maior embate.
3.8 - Não fugir do
combate.
O Evangelho de Lucas diz: Jesus, cheio do Espírito, em uma proposta periférica
alternativa, vai, em uma caminhada, de Nazaré a Jerusalém; ou seja, vai da
periferia para o centro, caminhando no Espírito. Em Jerusalém acontece um
confronto entre o projeto de Jesus e o projeto oficial. Este tenta matar o
projeto de Jesus (e de seu movimento) condenando-o à morte na cruz. Mas o
Espírito é mais forte que a morte. Jesus ressuscita. No final do Evangelho de
Lucas, Jesus diz aos discípulos: “Permaneçam
em Jerusalém até a vinda do Espírito Santo” (Lc 24,49).
3.9 - Estar sempre em movimento. Seguir Jesus exige uma dinâmica de permanente movimento. A
sociedade capitalista leva-nos a buscar segurança, o que é uma farsa. É hora de
aprendermos a seguir Jesus de forma humilde e vulnerável, porém mais autêntica
e real. Isso não quer dizer distrair com costumes e obrigações que provêm do
passado, mas não ajudam a construir uma sociedade justa, solidária e
sustentável ecologicamente.
3.10 - Andar na
contramão.
Seguir Jesus implica andar na contramão, remar contra a correnteza de tantos
fundamentalismos e da idolatria do consumismo. Exige também rebeldia, coragem,
audácia diante de costumes que entortam o queixo e de modas que aniquilam o
infinito potencial humano existente em nós. Ser , na prática, luz no mundo, sal na
comida, fermento na massa, algo que sempre incomoda.
3.11 -
Saber a hora de conviver e a hora de lutar. O Evangelho de Lucas apresenta dois
envios de discípulos para a missão. No primeiro envio (Lc 10,1-11), Jesus
indicou aos discípulos que fossem para o campo de missão despojados e
desarmados. Assim deve ser todo início de missão: conhecer, conviver,
estabelecer amizades, cativar, assumir a cultura do outro, tornar-se um irmão
entre os irmãos para que seja reconhecido como “um dos nossos”. No segundo
envio (Lc 22,35-38), em hora de luta e combate, Jesus sugere que os discípulos
devem ir preparados para a resistência. Por isso “pegar bolsa e sacola, uma espada – duas no máximo.” (Lc 22,36-38).
Durante a evolução da missão, chega a hora em que não basta esbanjar ternura,
graciosidade e solidariedade. É preciso partir para a luta, pois as injustiças
precisam ser denunciadas. Ao tomar partido e “dar nomes aos bois” irrompem-se
as divisões e desigualdades existentes na realidade. Os incomodados tendem naturalmente
a querer calar quem os está incomodando. É a hora das perseguições que exigem
resistência. Confira a trajetória de vida dos/as mártires da caminhada: Padre
Josimo, Padre Ezequial Ramin, Chico Mendes, Margarida Alves, Sem Terra de
Eldorado dos Carajás, Irmã Dorothy, Santo Dias, Chicão Xucuru, Padre Gabriel
etc.
3.12 -
Resistir, o que não é violência, mas legítima defesa. Diante de qualquer
tirania e de um Estado violentador, vassalo do sistema capitalista que sempre
tritura vidas e pratica injustiças, é dever das pessoas cristãs resistirem
contras as opressões perpetradas contra os empobrecidos, os preferidos de
Jesus. Lucas, em Lc 22,35-38, sugere desobediência civil – econômica, política
e religiosa. Em uma sociedade desigual, esse é “outro caminho” a ser seguido
(cf. Mt 2,12) por nós, discípulos e discípulas de Jesus, o rebelde de Nazaré.
3.13 - Exercitar a Pedagogia da partilha de pães, a que
liberta e emancipa. A fome era um
problema tão sério na vida dos primeiros cristãos e cristãs, que os quatro
evangelhos da Bíblia relatam Jesus partilhando pães e saciando a fome do povo.[2]
É óbvio que não devemos historicizar os relatos de partilha de pães como se
tivessem acontecido tal como descrito. Os evangelhos foram escritos de quarenta
a setenta anos depois. Logo, são interpretações teológicas que querem ajudar as
primeiras comunidades a resgatar o ensinamento e a práxis original de Jesus.
Não podemos também restringir o sentido espiritual da partilha dos pães a uma
interpretação eucarística, como se a fome de pão se saciasse pelo pão
partilhado na eucaristia. Isso seria espiritualização do texto. Eucaristia,
celebrada em profunda sintonia com as agruras da vida, é uma das fontes que
sacia a fome de Deus, mas as narrativas das partilhas de pães têm como
finalidade inspirar solução radical para um problema real e concreto: a fome de
pão.
A beleza espiritual
das narrativas de partilha de pães está no processo seguido. Em uma série de
passos articulados e entrelaçados que constituem um processo libertador. O
milagre não está aqui ou ali, mas no processo todo. Ei-lo:
3.13.1 - Cidade, lugar de violência? Mateus mostra que o
povo faminto “vem das cidades”, ou seja, as cidades, ao invés de serem locais
de exercício da cidadania, se tornaram espaços de exclusão e de violência sobre
os corpos humanos. Faz bem recordar que Deus criou – e continua criando -, nas
ondas da evolução, tudo “em seis dias e no sétimo dia descansou.” Conta-se que
alguém teria perguntado a Deus porque ele resolveu descansar após o sexto dia.
Deus teria dito que já tinha criado tudo com muito amor e para o bem da
humanidade e de toda a biodiversidade. Quando viu que faltava criar a cidade, o
Deus criador concluiu que era melhor descansar.
3.13.2 - Ir para o meio dos excluídos e injustiçados. “Jesus atravessa para a outra margem do mar
da Galileia” (Jo 6,1), entra no mundo dos gentios, dos pagãos, dos impuros,
enfim, dos excluídos e injustiçados. Jesus não fica no mundo dos incluídos, mas
estabelece comunicação efetiva e afetiva entre os dois mundos, o dos incluídos
e o dos excluídos. Assim, tabus e preconceitos desmoronam-se.
3.13.3 - Nunca perder a capacidade de se comover e de se
indignar.
Profundamente comovido, porque “os pobres
estão como ovelhas sem pastor” (Mc 6,34), Jesus percebe que os governantes
e líderes da sociedade não estavam sendo libertadores, mas estavam colocando
grandes fardos pesados nas costas do povo. Com olhar altivo e penetrante, Jesus
vê uma grande multidão de famintos que vem ao seu encontro, só no Brasil são
milhões de pessoas que têm os corpos implodidos pela bomba silenciosa da fome
ou da má alimentação. -----------
3.13.4 - Ter postura crítica. Jesus não sentiu
medo dos pobres, encarou-os e procura superar a fome que os golpeava e
humilhava. Apareceram dois projetos para resgatar a cidadania do povo faminto.
O primeiro foi apresentado por Filipe: “Onde
vamos comprar pão para alimentar tanta gente?” (Jo 6,5). No mesmo tom,
outros discípulos tentavam lavar as mãos: “Despede
as multidões para que possam ir aos povoados comprar alimento.” (Mt 14,15).
Filipe está dentro do mercado e pensa a partir do mercado. Está pensando que o
mercado é um deus capaz de salvar as pessoas. Cheio de boas intenções, Filipe
não percebe que está enjaulado na idolatria do mercado.
3.13.5 - Ter postura criativa a partir dos injustiçados e
dos pequenos.
O segundo projeto é posto à baila por André, outro discípulo de Jesus, que,
mesmo se sentindo fraco, acaba revelando: “Eis
um menino com cinco pães e dois peixes” (Jo 6,9). Jesus acorda nos discípulos
e discípulas a responsabilidade social, ao dizer: “Vocês mesmos devem alimentar os famintos” (Mt 14,16). Jesus quer
mãos à obra. Nada de desculpas esfarrapadas e racionalizações que tranqüilizam
consciências. Jesus pulou de alegria e, abraçando o projeto que vem de André
(em grego, andros = humano), anima o
povo a “sentar na grama” (Jo 6,10).
Aqui aparecem duas características fundamentais do processo protagonizado por
Jesus para levar o povo da exclusão à cidadania, da injustiça à justiça. Jesus
convida o povo para se sentar. Por quê? Na sociedade escravocrata do império
romano somente as pessoas livres, cidadãs, podiam comer sentadas. Os escravos
deviam comer de pé, pois não podiam perder tempo de trabalho. Era só engolir e
retomar o serviço árduo. Um terço da população era escrava e outro terço,
semi-escrava. Logo, quando Jesus inspira o povo para sentar-se, ele está, em
outros termos, defendendo que os escravos têm direitos e devem ser tratados
como cidadãos.
3.13.6 - Organizar os oprimidos, pois organização é o
segredo da pedagogia de Jesus. Jesus estimula a organização dos famintos. “Sentem-se, em grupos de cem, de cinqüenta, ...” (Mc 6,40). Assim, Jesus e os primeiros
cristãos e cristãs nos inspiram que o problema da fome só será resolvido, de
forma justa, quando o povo marginalizado e injustiçado se organizar e partir
para lutas coletivas.
3.13.7 - Cultivar gratidão. “Jesus agradeceu a Deus...” A dimensão da
mística foi valorizada. A luz e a força divinas permeiam e perpassam os
processos de luta. Faz bem reconhecer isso. Vamos continuar cantando com
Manoelão cantos revolucionários, tal como: É
madrugada, levanta povo! / A luz do
dia vai nascer de novo! / Rompe as
cadeias, abre o coração,/ Vamos dar
as mãos, já é o reino do povo! / O
povo agora é senhor da historia, / Somos
rebentos desta nova era. / A
liberdade, a fraternidade. / São as
bandeiras desta nova terra!
3.13.8 - Não ser paternalista. Quem reparte o pão
não é Jesus, mas os discípulos. Jesus provoca a solidariedade conclamando para
a organização dos marginalizados como meio para se chegar à cidadania de e para
todos. Dar pão a quem tem fome sem se perguntar por que tantos passam fome é
ser cúmplice do capital que rouba o pão da boca da maioria.
3.13.9 - Reaproveitar. “Recolham
os pedaços que sobraram, para não se desperdiçar nada.” (Jo 6,12). Economia
que evita o desperdício. Quase 1/3 da alimentação produzida é jogada no lixo,
enquanto tantos passam fome. É hora de reduzir o consumo. Reaproveitar,
reciclar. Nada deve se perder, mas ser tudo transformado. Em uma casa ecológica
tudo é reaproveitado, inclusive as fezes são consideradas recursos, pois viram
adubo fértil e orgânico. É hora de reduzir a produção, reciclar,
reaproveitar...
3.14 - Participar
da vida pública transformando a sociedade (Lc 10,38-42).
Seguindo para Jerusalém, Jesus entra na casa de duas mulheres, Marta e
Maria. Tradicionalmente, a narrativa de Lc 10,38-42 tem sido interpretada como
uma oposição entre vida Ativa e vida contemplativa. Ao longo dos séculos e
ainda hoje, muitos usam e abusam de Lc 10,38-42 para justificar a vida
contemplativa, mas essa interpretação não tem consistência exegética. Não há
nenhuma referência no texto que diga que Jesus estivesse rezando ou orando com
Maria. Para entender bem Lc 10,38-42 é preciso considerar algumas coisas.
Primeiro, nas duas
perícopes anteriores, Lucas revelou uma oposição, um contraste: humildes X
entendidos (Lc 10,21-24) e samaritano X sacerdote e levita (Lc 10,29-37). Em Lc
10,38-42 também há uma oposição, um contraste: Maria X Marta. A postura de
Maria é elogiada por Jesus e a postura de Marta é censurada: “Marta, Marta! ... uma só coisa é necessária...”
(Lc 10,41-42).
Segundo, precisamos
considerar a situação das mulheres na época de Jesus e de Lucas. As mulheres
eram - não todas, é óbvio - propriedades do pai e, depois de casadas, dos
maridos; não participavam da vida pública, deviam ficar restritas ao lar; não
aprendiam a ler e a escrever; não recebiam os ensinamentos da Torá. Encontra-se escrito
no Talmud dos Judeus (Escritura não-sagrada): “Que as palavras da Torá sejam queimadas, mas não transmitidas às
mulheres”. A oração que muitos judeus piedosos rezavam dizia: “Louvado sejas Deus por não ter-me feito mulher!”
Ao sentar-se aos
pés de Jesus, para ouvir-lhe os ensinamentos, Maria reivindica para si o
direito de ser discípula. Ela reclama para si o direito de ser cidadã no
sentido pleno. “Sentar-se aos pés”
era a atitude dos discípulos dos rabis.
Em Lc 10,38-42,
Maria faz desobediência civil e religiosa, pois fica aos pés de Jesus
ouvindo-o. Só os homens judeus podiam ficar aos pés de um mestre e se tornarem
discípulos. Ouve Jesus e, provavelmente, dialoga com Jesus e o interroga, e se
torna discípula.
Um judeu entrar em
uma casa onde só havia mulheres também era algo censurável pela sociedade.
Jesus desobedece a essa regra moral e entra na casa de duas mulheres. Assim,
Jesus vai formando seus discípulos e discípulas enquanto caminha para
Jerusalém.
3.15
- Ser simples como as
pombas e espertos como as serpentes.
Após uma longa marcha da Galileia a
Jerusalém, da periferia à capital (Lc 9,51-19,27), Jesus e seu movimento estão
às portas de Jerusalém. De forma clandestina, não confessando os verdadeiros
motivos, Jesus e o seu grupo entram em Jerusalém, narra o Evangelho de Lucas
(Lc 19,29-40). De alguma forma deve ter acontecido essa entrada de Jesus em
Jerusalém, provavelmente não tal como narrado pelo evangelho, que tem também um
tom midráxico, ou seja, quer tornar presente e viva uma profecia do passado.
Dois
discípulos recebem a tarefa de viabilizar a entrada na capital, de forma
humilde, mas firme e corajosa. Deviam arrumar um jumentinho – meio de
transporte dos pobres -, mas deviam fazer isso disfarçadamente, de forma
“clandestina”. O texto repete o seguinte: “Se alguém lhes perguntar: “Por que
vocês estão desamarrando o jumentinho?”, digam somente: ‘Porque o Senhor
precisa dele’”. A repetição indica a necessidade de se fazer a preparação da
entrada na capital de forma clandestina, sutil, sem alarde. Se dissessem toda a
estratégia a entrada em Jerusalém seria proibida pelas forças de repressão.
Com os “próprios mantos” prepararam o
jumentinho para Jesus montar. Foi com o pouco de cada um/a que a entrada em
Jerusalém foi realizada. A alegria era grande no coração dos discípulos e
discípulas. “Bendito o que vem como rei...”
Viam em Jesus outro modelo de exercer o poder, não mais como dominação, mas
como gerenciamento do bem comum.
Ao ouvir o anúncio dos discípulos – um novo
jeito de exercício do poder – certo tipo de fariseu se incomoda e tenta sufocar
aquele evangelho. Hipocritamente chamam Jesus de mestre, mas querem
domesticá-lo, domá-lo. “Manda que teus
discípulos se calem.”, impunham os que se julgavam salvos e os mais
religiosos. “Manda...!” Dentro do paradigma “mandar-obedecer”, eles são os que
mandam. Não sabem dialogar, mas só impor. “Que se calem!”, gritam. Quem anuncia
a paz como fruto da justiça testemunha fraternidade e luta por justiça, o que
incomoda o status quo opressor. Mas
Jesus, em alto e bom som, com a autoridade de quem vive o que ensina,
profetisa: “Se meus discípulos (profetas)
se calarem, as pedras gritarão.” (Lc 19,40). Esse alerta do galileu virou
refrão de música das Comunidades Eclesiais de Base: “Se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão. Se fecharem uns poucos caminhos, mil trilhas
nascerão... O poder tem raízes na areia, o tempo faz cair. União é a
rocha que o povo usou pra construir...!”
3.16 - Ser
intransigente diante da opressão econômica e política. Os quatro evangelhos da Bíblia[3]
relatam que Jesus, próximo à maior festa judaico-cristã, a Páscoa, impulsionado
por uma ira santa, invadiu o templo de Jerusalém, lugar mais sagrado do que os
templos da idolatria do capital que muitas vezes tem a cruz de Cristo pendurada
em um ponto de destaque. Furioso como todo profeta, ao descobrir que a
instituição tinha transformado o templo em uma espécie de Banco Central do país
+ sistema bancário + bolsa de valores, Jesus “fez um chicote de cordas e
expulsou todos do templo, bem como as ovelhas e bois, destinados aos
sacrifícios. Derramou pelo chão as moedas dos cambistas e virou suas mesas. Aos
que vendiam pombas (eram os que diretamente negociavam com os mais pobres
porque os pobres só conseguiam comprar pombos e não bois), Jesus ordenou:
‘Tirem estas coisas daqui e não façam da casa do meu Pai uma casa de negócio.”
Essa ação de Jesus foi o estopim para sua condenação à pena de morte, mas Jesus
ressuscitou e vive também em milhões de pessoas que não aceitam nenhuma
opressão.
4. Enfim...
Contamos com todas as pessoas cristãs para
vivenciar a Opção preferencial pelos Pobres e pelos Jovens, buscar alternativas
para a superação da atual crise socio-política-econômica-cultural e religiosa.
Apoiar firmemente a Economia Popular Solidária, as lutas pelas Reformas Agrária
e urbana, por agricultura familiar, por preservação ambiental, pela mudança do
atual modelo econômico neoliberal. Queremos um modelo econômico que seja
popular, democrático, soberano, justo e sustentável ecologicamente. Queremos
construir outro modelo de igreja, onde, de fato, a igreja seja Povo de Deus, em
comunidades que se relacionam em sistema de rede.
Apêndice.
Sugestão de textos e eventos bíblicos
libertadores que podem inspirar a vivência da Fé e Política e levarmos a sério os
apelos do testemunho e dos ensinamentos do papa Francisco:
1) Gn 1:
Toda a Criação é muito boa, imagem e semelhança de Deus.
2) Ex
1,15-22: O Movimento das parteiras faz Desobediência civil e religiosa. Cf.
Gandhi, Martin Luther King, as camponesas da Via Campesina.
3) Ex
3,7-10: Deus ouve o clamor dos oprimidos e faz opção pelos injustiçados.
4) Davi
vence Golias.
5) Is
65,17-25: Eis um novo céu e uma nova Terra.
6) Dn
2,31-37: Uma pedrinha destrói um gigante de pés de barro – a força da profecia.
7) Jo
6,1-15: Solução radical para a fome de pão – partilha de pães.
8) Mt
21,12-13: Jesus expulsa os capitalistas do Templo.
10) Ap 12,1-17: Uma mulher
grávida, em dores de parto, vence um Dragão.
11) At 21,1-7: Deus deixa o céu e
arma sua tenda no meio dos pobres.
Angra dos Reis, RJ, 13 de setembro de 2015.
Frei Gilvander Luís Moreira, gilvanderlm@gmail.com
www.freigilvander.blogspot.com.br
- www.gilvander.org.br Face:
Gilvander Moreira
[1] Frei e padre carmelita;
bacharel e licenciado em Filosofia pela UFPR, bacharel em Teologia pelo
ITESP/SP; mestre em
Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma,
Itália; doutorando em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, SAB, PJR e
Via Campesina, em Minas
Gerais ; e-mail: gilvanderlm@gmail.com
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facebook: Gilvander Moreira
[2] Cf. Mt 14,13-21; Mc 6,32-44; Lc 9,10-17 e Jo 6,1-13.
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