Páscoa em tempos de pandemia. Por Frei Gilvander Moreira[1]
Com quase 3 mil por dia, já ultrapassando no Brasil 312 mil mortos pela pandemia da covid-19, potencializada pela política de morte (necropolítica), planejada e executada para ser genocida, sob coordenação do antipresidente e de todo o desgoverno federal com a cumplicidade da maioria dos senadores e deputados/as, e do Supremo Tribunal Federal (STF), o povo brasileiro está afundado em uma das mais brutais “sexta-feira da paixão” da história do Brasil. Como celebrar a Páscoa de Jesus Cristo e nossa páscoa em meio a milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas? Como e onde encontrar forças e luzes para construirmos um domingo de ressurreição com condições de vida digna para todos/as? Como ter esperança de uma nova aurora em meio a tantas trevas?
Para encontrarmos forças e luzes para superarmos a gravíssima noite escura do capitalismo, da pandemia e do desgoverno fascista precisamos de vários instrumentos. Entre eles um se destaca: o de reconhecer as mais profundas lições da história. Vejamos: segundo o Evangelho de Mateus, em Mt 2,1-12, após driblar o rei Herodes e encontrar o menino Jesus nascido na periferia, no meio dos marginalizados, os magos “seguiram por outro caminho”, não o caminho que passava pelo rei Herodes, opressor, repressor, sanguinário, genocida. Não podemos ser contaminados pelos complexos da impotência e da pequenez, disseminados pela ideologia dominante, que levam as pessoas a dizerem: “Não podemos fazer nada. Só Deus pode. Não temos poder de mudar esta situação!” Podemos transfigurar a realidade de morte, sim, muito mais do que às vezes pensamos. Em um contexto de grande opressão e de superexploração, onde as pessoas justas e inocentes são violentadas e veem os injustos tramando todo tipo de mal, há pessoas justas que tendem a passar para o lado dos opressores. Na Bíblia, o Salmo 72 no versículo 15 alerta: “Mas se eu falar como eles, se eu pensar e agir como eles, estarei traindo os nossos pais”, nossos ancestrais, os profetas, as profetisas, os/as mártires. É hora de nos voltarmos para os Povos Originais – indígenas -, Comunidades Tradicionais e para os Movimentos Sociais Populares que apontam o caminho: nos irmanarmos aos injustiçados/as e participar de suas lutas por todos os direitos. Perceber que há luz não apenas no fim do túnel, mas no meio do túnel também. É hora de ouvir e levar a sério as orientações e os alertas dos/as infectologistas/os, dos/as epidemiologistas e das pessoas que de fato estão construindo uma sociedade justa.
Há quase 2.000 anos ecoa uma notícia revolucionária dada em primeira mão por Maria Madalena, “apóstola dos apóstolos”, mulher que amava muito, era muito solidária e lutava contra toda e qualquer injustiça. Irradiando alegria, a partir do túmulo de Jesus de Nazaré, Maria Madalena saiu correndo e anunciando por todos os cantos e recantos: “Jesus está vivo, ressuscitou!” A Ressurreição de Jesus marca a vida das comunidades, animando-as no sentido de que o poder da morte não tem a última palavra. Bateram em ferro frio os chefes dos podres poderes da religião, da política e da economia, ao pensar que condenando Jesus de Nazaré à pena de morte, poriam fim ao movimento popular e religioso de fraternidade real, testemunhado e ensinado pelo Galileu da periferia da Palestina. Celebrar a Páscoa de Jesus de Nazaré é momento oportuno para revigorar nossa fé no Deus da vida, fé na humanidade, fé nos oprimidos e explorados, fé na Mãe Terra, na irmã água, em todas as fontes de vida e fé em nós mesmos. É também momento propício para celebrarmos todas as lutas do passado e do presente. Lutas por direitos fundamentais. Lutas que demonstram que só perde quem não se compromete com a realização dos desafios coletivos por direitos ou simplesmente desiste da luta. Quem persevera na luta dos Movimentos Sociais Populares conquista direitos, mais cedo ou mais tarde. O preço da liberdade é a vigilância constante.
O sentido da Páscoa não pode ser privatizado por expressões religiosas que desencarnam a fé cristã e amputam a dimensão social da fé judaico-cristã. A fé na ressurreição de Jesus Cristo não garante apenas vida após a morte. É preciso não esquecer que a Páscoa Judaica, origem da Páscoa Cristã, diz respeito à libertação dos povos escravizados no Egito pelo imperialismo dos faraós. Páscoa é passagem da escravidão para a libertação, nos vários aspectos da vida humana. Por isso, Páscoa envolve reunir os injustiçados, atravessar os “mares vermelhos”, marchar rumo à terra prometida – terra partilhada, democratizada e socializada – e enfrentar os grileiros e especuladores de terra lutando para conquistá-la. A Páscoa cristã atesta que Jesus de Nazaré, mesmo sendo inocente e justo, foi condenado pelos podres poderes da religião, da economia e da política à pena de morte, mas ressuscitou e está vivo em nós e em todos/as que lutam pela construção do Reino de Deus a partir do aqui e do agora. O sonho ensinado e testemunhado por Jesus de Nazaré jamais será morto. Os opressores serão jogados na luta de lixo da história. Entrará para a história quem “combater o bom combate” e perseverar na fé de Jesus Cristo, colocando em prática a dimensão social do Evangelho.
A igreja é constituída por uma grande unidade na diversidade e muitas vezes com graves contradições internas. Lamentavelmente, estamos colhendo as consequências de 34 anos de pontificado de João Paulo II e Bento XVI que incentivaram a privatização da fé, a adoção de espiritualismos, dogmatismos, moralismos marcados pela desencarnação da fé cristã e amputação da dimensão social do Evangelho de Jesus Cristo. Essas posturas religiosas empurraram o povo para os braços dos fascistas e genocidas, para políticas de morte. Por outro lado, graças a Deus, nosso querido papa Francisco coordena e anima a igreja no sentido da missão libertadora, (macro)ecumênica e transformadora, reafirmando a Opção pelos Pobres, a inculturação e animando o compromisso de todas as pessoas de boa vontade com a construção de uma sociedade do Bem Viver e Conviver. As Encíclicas Laudato Sí (Louvado Sejas) e Fratelli Tutti (Todos/as somos irmãos/ãs) apontam o rumo: compromisso com construção uma sociedade justa economicamente, o que passa pela superação do capitalismo, que é uma máquina de moer vidas; uma sociedade com sustentabilidade ecológica, o que passa necessariamente por colocar em prática o princípio da Ecologia Integral garantindo, assim, condições objetivas que garantam a preservação de todos os biomas.
Com a ressurreição de Jesus ficou decretado que as utopias jamais morrerão, os sonhos de libertação jamais serão pesadelos, a luta dos oprimidos e injustiçados será sempre vitoriosa (ainda que custe muito suor e sangue) e as forças da Vida terão sempre a última palavra. Por mais cruéis que sejam, todas as tiranias, opressões, corrupções e guerras passarão. O papa Francisco tem claramente anunciado a defesa da vida que passa pela superação do capitalismo, “sistema de morte”.[2]
31/03/2021
Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1 - Sentido da Páscoa: as utopias jamais passarão! Frei Gilvander rumo ao XV Intereclesial das CEBs
2 - Palavra Ética, na TVC/BH, c/ Frei Cláudio van Balen: Deus, Páscoa e Religião. 12/04/14
3 - Na missa de Páscoa do Padre Nelito Nonato Dornelas, em Abre Campo, MG, 05/2/2021: amor, justiça e fé
4 - Dom Pedro Casaldáliga, o Profeta que viveu e lutou entre nós, faz sua Páscoa definitiva - 08/8/2020
5 - Dom Vicente em missa de Páscoa no Córrego do Feijão, Brumadinho/MG. Vídeo 2. 21/4/19
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br – www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.