quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

“A cidade é nossa roça! Nossa luta é na carroça!” A luta da Comunidade Tradicional Carroceira pelos direitos humanos e animais. Por Frei Gilvander

 “A cidade é nossa roça! Nossa luta é na carroça!” A luta da Comunidade Tradicional Carroceira pelos direitos humanos e animais. Por Frei Gilvander Moreira[1]



Está em baila em todas as capitais, nas grandes, médias e em parte das pequenas cidades do Brasil uma enorme pressão para proibir o trabalho dos/as carroceiros/as. Infelizmente, em várias delas já aprovaram leis proibindo o modo de vida carroceiro. Outras cidades estão resistindo. Em Porto Alegre, RS, algum tempo após a proibição do trabalho dos/as carroceiros/as, pesquisa da prefeitura apontou um crescimento do empobrecimento e vulnerabilidade social em milhares de famílias que perderam o seu ganha-pão.



A pressão para se proibir o trabalho dos/as carroceiros/as é liderada, à primeira vista, por pretensos ambientalistas defensores dos animais, mas por trás também está o lobby das grandes empresas de caçamba com ganância para ampliar seus lucros e em tempos de crise garantir a acumulação de capital mesmo à custa do extermínio de modos de vida e cultura tradicionais. Em Belo Horizonte, MG, está na mesa do prefeito Alexandre Kalil um Projeto de Lei, o PL 142/2017, que após quatro anos de tramitação autoritária, sem nenhum tipo de diálogo com as comunidades afetadas, foi aprovado em 2º turno na Câmara Municipal de Belo Horizonte (CMBH) por 28 vereadores no universo de 41, dia 15 de dezembro de 2020 e agora espera a sansão ou veto final. Em pleno cenário de pandemia, os/as carroceiros/as ficaram de fora do plenário, atônitos com tamanho absurdo e desrespeito. Tudo pareceu uma grande manobra. 



Estamos lutando para que seja vetado pelo prefeito Kalil o PL 142, que proíbe o trabalho dos/as carroceiros/as na capital mineira. O legítimo e justo é o veto por muitos motivos. Primeiro, porque se trata de um projeto autoritário, pois não ouviu os/as carroceiros/as e não teve participação popular. O ex-vereador Adriano Ventura, que era um dos autores do PL original, repensou e retirou o PL de tramitação, após descobrir que seria gravíssima violação dos direitos humanos fundamentais da Comunidade Carroceira e também não resultaria em bons-tratos para os cavalos, éguas, mulas e burros. Outro vereador, Osvaldo Lopes, agora deputado estadual, reapresentou o projeto que foi aprovado na CMBH. O PL 142 é uma expressão de racismo institucional e estrutural que permeia a guerra contra os pobres, pois matará aos poucos milhares de famílias que sobrevivem com o trabalho em carroças. O PL 142 é inconstitucional, porque viola os artigos 215 e 216 que garantem a diversidade cultural e também viola e desconsidera os tratados internacionais tais como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da Organização das Nações Unidas (ONU), que protegem os Povos e Comunidades Tradicionais. A Comunidade carroceira é Povo Tradicional, em Belo Horizonte, já com Auto-Declaração formalizada, o que confere valor jurídico.



O “Ofício de Carroceiro” é histórico e deve ser respeitado enquanto meio de transporte milenar e tradicional, bem como patrimônio biocultural e imaterial, o que implica em um profundo conhecimento ecológico por parte dos/as carroceiros/as e etológico dos cavalos relacionados aos saberes e às madeiras mais adequadas para fabricação das carroças, ao uso de plantas medicinais, às benzeções e outras formas de cuidado da saúde dos animais, bem como o manejo e a coleta de diversas espécies de gramíneas de crescimento espontâneo nas cidades que compõem parte da dieta oferecida aos cavalos. A carroça, que pode possuir vários formatos, tipos e desenhos, ao longo do tempo, constitui-se como artefato e memória tecnológica, que merece registro e inventário patrimonial. Os espaços de uso como ruas, lotes, descampados e seus trajetos constituem territorialidades da tradição carroceira e suas conexões socioespaciais. O modo de vida tradicional de carroceiros e cavalos também envolve formas especificas de sociabilidade, tais como as catiras e as cavalgadas, baseadas na reciprocidade e no parentesco sendo muito comum ver três gerações de carroceiros juntas em uma carroça, constituída como espaço de resistência sempre em movimento. É sempre bom lembrar que muitos carroceiros em áreas rurais ou urbanas podem pertencer duplamente a categorias de outros povos tradicionais, tais como: Ciganos, Agricultores Familiares, Indígenas e Quilombolas.  


    
           

A construção das cidades, mesmo as mais recentes, incluindo Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, não teria sido possível sem o apoio contínuo dos/as carroceiros/as, transportando gêneros alimentícios para os operários, bagagens e mobiliário para os primeiros moradores, além de material de construção e de obras trazidos das estações dos trens.

Segundo o Sr. Sebastião Alves de Lima, presidente da Associação dos Carroceiros e Carroceiras Unidos/as de Belo Horizonte e RMBH, quando houve uma reunião com o Prefeito Kalil, em agosto de 2017, este teria prometido que jamais iria aprovar uma lei que prejudicasse os carroceiros em Belo Horizonte, pois ele reconhecia a importância destes na história do município. O próprio Kalil contou para os representantes dos carroceiros em reunião que ele estaria ciente de que, durante a Segunda Grande Guerra, quando faltou combustível para os caminhões, foram os/as carroceiros/as que levaram matéria-prima para obras de pavimentação na região central de Belo Horizonte.



Parece emblemático uma cidade que tem como nome primeiro “Curral del Rei” querer agora expulsar o que tem de mais genuíno em sua origem.  Segundo Alícia Penna, em 1711 já existia o Arraial do Curral del Rei, sendo seus habitantes denominados curralenses[2]; ainda nos resta parte da Serra do Curral que emoldura o cenário da capital.     

Se sancionado o PL 142, a proibição do trabalho dos/as carroceiros/as causará uma tragédia socioeconômica na capital mineira, pois todos os bairros fora do perímetro da Av. do Contorno, com exceção daqueles enriquecidos, necessitam do trabalho dos/as carroceiros/as, que têm uma função social imprescindível na cidade. Os bairros de classe baixa, populares e periferias não têm condições de pagar caçamba para recolher pequenas quantidades de resíduos, pois o custo é elevado e assim sendo a existência dos/as carroceiros/as ajuda a baixar o preço das caçambas. Nos bairros periféricos, em muitos lugares, não é possível um caminhão caçamba chegar, por causa de ruas estreitas, íngremes ou becos. Enfim, o PL 142 atende, dentre outros, ao lobby das grandes empresas de caçamba e matará aos poucos os cavalos e as famílias de cerca de 10 mil carroceiros/as existentes em BH e RMBH. Este número é estimado já que não foi feito ainda um censo que contemple esta categoria na região. A partir de pesquisa da UFMG, de 2010, estima-se a existência de 10 mil carroceiros/as em BH e Região Metropolitana. Como é possível proibir o trabalho dos/as carroceiros/as sem um censo, sem saber quantos são e qual sua realidade?  Sem os carroceiros/as, o preço das caçambas subirá muito, o que trará um grande impacto econômico para as famílias de classe baixa e popular.



O PL 142 tecnicamente é um absurdo, pois não existem estudos sérios que atestem a viabilidade de se substituir cavalos por motos, "cavalos de lata", o que, além da impossibilidade técnica, aumentará a poluição sonora e do ar e o número de acidentes e mortos. Basta de uso de combustível fóssil na cidade!

A cidade que queremos passa pelo apoio aos/às carroceiros/as, que foram imprescindíveis na construção da capital mineira e de todas as cidades. O PL 142 não garante em nada “bons-tratos” aos cavalos, ao contrário, chega-se à hilariante proposta de “doação solidária”, ou seja, os melhores cavalos poderão ser adotados por pessoas ricas que, segundo alegam, teriam melhores condições de cuidar deles. Isso é cinismo, hipocrisia e covardia sem tamanho, pois, além de deixar de “mãos vazias” mais de 10 mil famílias carroceiras, sem acesso ao seu ganha-pão, ainda deverão doar seus animais para pessoas ricas.  É óbvio que existem casos de maus-tratos, mas não é a regra. Maus-tratos não se combatem só com proibição e repressão! Nos oito anos de governos municipais em Belo Horizonte, com os prefeitos Patrus Ananias e Célio de Castro, foi implementada uma Política Pública com a participação dos/as carroceiros/as, que envolvia a construção de 34 URPVs (Unidades de Recolhimento de Pequenos Volumes), emplacamento das carroças, expedição de carteirinha para os/as carroceiros/as, tudo isso em parceria com a Faculdade de Veterinária da UFMG, que vacinavam e ajudavam os carroceiros/as a cuidar dos animais. E também havia fiscalização. Porém, nos últimos doze anos foi desmantelada esta política pública, ao que tudo indica como uma estratégia  para suprimi-la mais à frente.  Exigimos o resgate dessas políticas públicas.



Enfim, essa tentativa de criminalizar o modo de vida carroceiro é resultado de uma postura colonialista, racista, etnocêntrica e higienista que busca impor sobre toda a sociedade uma única forma de se viver as relações entre humanos e animais.

“A cidade é nossa roça! Nossa luta é na carroça!”, eis o lema dos/as carroceiros/as na capital mineira. Apoiamos este segmento social na luta por políticas públicas sérias e idôneas, com participação popular e respeito aos modos de ser, viver e trabalhar das comunidades tradicionais das quais os/as carroceiros/as fazem parte. Jesus entrou em Jerusalém montado em um jumento. A burrinha de Balão foi profetisa. Fazemos ecoar aqui o canto de Luiz Gonzaga: “Respeite o jumento” e os/as carroceiros/as no seu modo de ser e de existir. Não adianta alegar que a PM cuida bem dos cavalos da cavalaria, porque além dos suspeitos treinamentos, que podem ser a duras penas, “cuidam bem dos cavalos, mas para fazer maus-tratos a outros: os pobres e negros das periferias que são tratados pior do que aos animais”. Qual o ritmo humano para a cidade que queremos: o ritmo lento dos cavalos que garante trabalho, renda e dignidade ou a correria dos automóveis e das pessoas com o ritmo frenético, agressivo, poluente e excludente baseado nos combustíveis fósseis? Essa luta é justa e dela ninguém pode se omitir.[3]





12/01/2021

 

             Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 – "Carroceiros/as é Povo Tradicional com cultura milenar. Kalil, VETE o PL 142": Alenice Baeta-1/01/21

https://www.youtube.com/watch?v=bpRI7M00HS4

2 - Live - Carroceiros/as de BH: "Estão nos julgando sem nos conhecer. Kalil, VETE o PL 142". - 30/12/20

https://www.youtube.com/watch?v=yDV-hIhdIWw

3 - "Veta, Kalil, o PL 142 racista", exigem os 10.000 carroceiros/as de BH e RMBH Vídeo 3 - 21/12/2020

https://www.youtube.com/watch?v=PZTgegHfZuQ

4 - Carroçasso em BH: 10.000 carroceiros/as exigem que Kalil VETE o PL 142 racista. Vídeo 2 - 21/12/20

https://www.youtube.com/watch?v=RoWLc4pldig

5 - Carroceiros/as na luta para que Kalil vete o PL 142, RACISTA: início do Carroçasso. Vídeo 1-21/12/20

https://www.youtube.com/watch?v=FYb79EuOUPE

6 - "A cidade é nossa roça. Nossa luta é na carroça." Carroceiros/as, SIM! Por frei Gilvander - 20/12/20

https://www.youtube.com/watch?v=1eMVYnnPIjQ

7 - Pelos Direitos do Povo Tradicional Carroceiro e dos Cavalos e Éguas/Frei Gilvander/1ªParte-20/12/20

https://www.youtube.com/watch?v=uF_03VH-g7k

8 - Lei racista e que faz guerra contra 10.000 carroceiros/as foi aprovada em Belo Horizonte -16/12/2020

https://www.youtube.com/watch?v=VwaOg2jbi0s

9 - Em BH, sancionar PL 142 autoritário sem participação dos carroceiros será injustiça. Vídeo 4 -7/1/21

https://www.youtube.com/watch?v=T84NYqFiJeM

10 - "Carroceiros em BH são necessários para solucionar o problema dos resíduos sólidos". Vídeo 3 -7/1/21

https://www.youtube.com/watch?v=c7a7DR1I5xU

11 - "Proibir carroceiros/as em BH é priorizar grandes empresas de caçamba." Prof. Tiago. Vídeo 2 -6/1/21

https://www.youtube.com/watch?v=fxggdayFPVs

12 - "FUNÇÃO SOCIAL dos/as carroceiros/as é imprescindível em Belo Horizonte" (Eduardo). Vídeo 1 -06/1/21

https://www.youtube.com/watch?v=u2qObNGhNpE

13 - “Quem aprovou o PL 142 para acabar com carroceiros/as em BH nunca passou fome." Valdinalva. Vídeo 2

https://www.youtube.com/watch?v=yB3qJDxsTDQ

14 - Cigana Valdinalva - apelo emocionado, em BH: "Kalil, VETE o PL 142, pois é racista”. Vídeo1 –5/01/21

https://www.youtube.com/watch?v=LocRU5XJles

15 - "Há carroceiros ciganos. Direitos dos ciganos são violados no PL 142 em BH. Vete, Kalil", diz Itamar

https://www.youtube.com/watch?v=j3MS0NQYQlk

16 - “Pelos direitos dos Carroceiros, vereadores/as de BH, arquivem o PL 142” Prof. Emanuel/UEMG/14/12/20

https://www.youtube.com/watch?v=o2DZ-7Ezu5Y

17 - Grito dos carroceiros de Belo Horizonte contra o PL 142/2017: "Somos Povo Tradicional!" – 13/12/2020

https://www.youtube.com/watch?v=udEr3TvsMeU#7s8d6f87

18 - Luta de carroceiros/as de BH/MG: Trabalho e respeito aos cavalos e éguas. 6ª Parte. 07/7/2018.

https://www.youtube.com/watch?v=ETKjeT0GIWM

19 - Luta dos carroceiros/as e cavalos em BH/MG: pelo direito de existir na cidade/5ª Parte/07/7/2018.

https://www.youtube.com/watch?v=VZiTzcGHfqM

20 - Luta dos/das carroceiros/as pelo direito de trabalhar com cavalos e éguas/BH/MG. 4ª Parte/07/7/2018

https://www.youtube.com/watch?v=NR-_lxATntc

21 - Carroceiros/as, cavalos e éguas em BH/MG: dignidade e sobrevivência, 3ª Parte. 07/7/2018.

https://www.youtube.com/watch?v=5gMBbeiyu48

22 - Carroceiros/as de BH/MG: Cuidado com o meio ambiente e respeito aos animais/2ª Parte/ 07/7/2018.

https://www.youtube.com/watch?v=M7n2YyDD6Vw

23 - Carroceiros e carroceiras de BH/MG: Respeito à cultura, direito ao trabalho. 1ª Parte. 07/7/2018.

https://www.youtube.com/watch?v=WpwAC8XclZ8

24 - Carroceiros/as de Belo Horizonte PROTESTAM na CMBH contra a aprovação do PL 142 INJUSTO - 14/12/20

https://www.youtube.com/watch?v=OzCK_LEFc1I

 

 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

[2] PENNA, Alícia D. O espaço infiel: quando o giro da economia capitalista impõe se à cidade. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG, Belo Horizonte, 1997.

 

[3] Gratidão ao Prof. Emmanuel Almada, da UEMG, à Professora Alenice Baeta, do CEDEFES, e à Carmem Imaculada de Brito pela revisão do texto.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

A Pandemia e o desrespeito à vida: “O povo está sendo matado por falta de conhecimento”. Por Frei Gilvander

A Pandemia e o desrespeito à vida: “O povo está sendo matado por falta de conhecimento”. Por  Frei Gilvander Moreira[1]


 Charge do Zé Dassilva: o desrespeito ao isolamento

Considero inegável que a espiral de violência e morte que avassala o povo brasileiro é causada pela superexploração do sistema capitalista, máquina cruel de moer vidas, que funciona dia e noite, sob direção da classe dominante que vive no luxo, mas com sangue nas mãos. A elite, por sua vez, goza o luxo e as benesses do poder econômico e político à custa de muito sangue da classe trabalhadora e do apunhalamento das entranhas da mãe Terra gerando extermínio de fontes de água e desertificação de territórios. O mito do progresso e do desenvolvimento econômico só para a classe dominante, que extermina diariamente as condições de vida no planeta Terra, nossa única Casa Comum, gerou a pandemia do novo coronavírus. A ideologia dominante, a crise dos partidos políticos e os falsos religiosos impuseram no Executivo Federal um desgoverno fascista que só sabe matar, tem sede de sangue. Os fascistas continuam no poder pela conivência do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional acovardados que, diante de dezenas de crimes de responsabilidades cometidos por Jair Bolsonaro, seguem não apenas omissos, mas cúmplices da escalada de morte no nosso país, propondo apenas medidas paliativas que disfarçam a crueldade dos mil jeitos de matar em curso e, pior, fazem politicagem diante das lágrimas do povo em desespero. Cegado e anestesiado, até quando o povo aceitará morrer aos poucos sem se rebelar massivamente?

A pandemia do novo coronavírus no Brasil iniciou-se com uma onda que cresceu rapidamente, se prolonga por nove meses e, pior, de novembro de 2020 para cá está crescendo muito. O número de mortos pela covid-19 já ultrapassa 240 mil, se incluirmos 20% de mortos subnotificados. É notório o cansaço do povo diante da pandemia do novo coronavírus. É certo que o povo anseia pela superação da pandemia, mas foi chocante e estarrecedor ver um elevado número de aglomerações suicidas e assassinas durante os festejos de natal e na virada de ano. Recordei-me de uma das muitas cenas eloquentes do filme documentário "A carne é fraca", do Instituto Nina Rosa: cena mostrando que, no desfiladeiro do matadouro, ao pressentirem que à sua frente estão morrendo vacas ou bois com uma cacetada na nuca, as vacas e os bois são tomados por um estresse muito grande, o que injeta adrenalina em todo o corpo. O instinto de vida do gado grita alto diante da iminência da morte, no corredor da morte do matadouro. Nas aglomerações das últimas semanas, gritaram alto o egoísmo e a ignorância de muita gente. Desgovernado por fascistas, o Brasil marcha para se tornar uma ameaça sanitária mundial. Em 2021, daremos conta de enterrar nossos mortos por política de morte – genocida – e pela irresponsabilidade dos cúmplices?

Cabe lembrar que, mesclado com o ódio de classe que a elite tem do povo pobre, “quando a ignorância impera, o amor se cala, se aniquila e os sonhos se desfazem, porque insuportável é a arrogância de quem só conhece suas verdades falsificadas”, alerta Helenice Augusta da Cunha. “A ignorância é a maior enfermidade do ser humano”, dizia Cícero, grande lutador republicano, “pedra no sapato” de imperadores romanos. Ele foi morto e proscrito a mando do imperador Júlio César em 43 antes de Cristo. “Na falta de argumentos a ignorância usufrui da agressividade e da ofensa como modo de ataque”, diz Agni Shathi. “A ignorância é a mãe de todos os males”, diz François Rabelais. “A ignorância mata e quando regada com fé e política, causa o genocídio”, diz Israel Lopes prenunciando o que acontece no Brasil no início de uma nova década. “Aquele que não conhece a verdade é simplesmente um ignorante, mas aquele que a conhece e diz que é mentira, este é um criminoso”, assevera Bertolt Brecht. Dalai Lama diz que “o egoísmo gera a ignorância que origina grandes problemas no mundo”. “Cuidado com o falso conhecimento; ele é mais perigoso do que a ignorância”, diz George Bernard Shaw.

Diante dos alertas repetidos à exaustão pela Organização Mundial da Saúde (OMS), por infectologistas e epidemiologistas de que é preciso manter o distanciamento corporal e social, e usar máscaras para superarmos a pandemia do novo coronavírus, assistimos às aglomerações estarrecedoras nos dias de Natal e de virada de ano. Aglomerações promovidas por “celebridades” medíocres e ignorantes, por turistas que esqueceram a responsabilidade social, ou por pessoas em geral cansadas de quarentena, além de motivadas pelo próprio comportamento negacionista, genocida e debochado do presidente Bolsonaro em relação à gravidade da pandemia. Neste contexto, temos que perguntar: é ético ou imoral promover aglomerações, participar delas ou se omitir da fiscalização delas? Em tempos de pandemia, além de imoral, é atitude criminosa promover e/ou participar de aglomerações. Da mesma forma, é crime quando quem tem o dever de fiscalizar as aglomerações não fiscaliza.

No Código Penal, muitas ações ou omissões são tipificadas como crime, por exemplo, quando se coloca em risco a vida de uma pessoa. A Constituição Federal, em seu Artigo 5º, protege a inviolabilidade do direito à vida considerando-o o mais importante de todos os direitos, pois a vida é o bem jurídico mais valioso que temos. Com a ocorrência da pandemia de Covid-19 e a edição de inúmeros decretos, seja por Estados e por Municípios, obrigando o uso de máscaras em locais públicos, o não cumprimento do estatuído nesses decretos, ou seja, o não uso da máscara, pode muito bem ensejar crime de homicídio, já que está devidamente esclarecido pelos médicos infectologistas e virologistas que a transmissão do contágio pode levar à morte, especialmente no caso de pessoas com doenças preexistentes ou acima de 60 anos. Em vários países, quem é surpreendido pela polícia em aglomerações está sendo multado.

O artigo 121 do Código Penal, que é formado por apenas duas palavras – “matar alguém” -, estaria sendo infringido, caso ocorra morte, conseguindo-se demonstrar a pessoa de onde partiu a contaminação. O fundamento para chegar a tal punição é que hoje a ciência demonstra a letalidade da covid-19, o que tem sido divulgado à exaustão pela imprensa ecoando os alertas fundamentados na ciência feitos por infectologistas e epidemiologistas.

A partir da obviedade que a doença covid-19 mata e não tem cura e nem o povo foi vacinado ainda, o não uso da máscara e a promoção e/ou participação em aglomerações e os funcionários públicos que não fiscalizam, deveriam ter consequências sérias para estas pessoas que não se sentem tocadas por uma questão de humanidade, pela obrigação de ajudar a não contaminar outrem. Propomos que estas pessoas recalcitrantes em cumprir o determinado pelas autoridades sanitárias sejam levadas a responderem na seara criminal. Enquanto durar a pandemia, aglomerar-se e violar as regras sanitárias se tornou uma questão de saúde e segurança públicas. Nesse caso, o interesse da coletividade – respeito à dignidade da pessoa humana – está acima dos pretensos direitos individuais de pessoas que não são apenas egoístas e irresponsáveis, mas agem de forma criminosa.

Na Bíblia, no quarto capítulo do livro do profeta Oseias, diante da realidade de um povo sendo triturado de mil maneiras, há uma veemente crítica aos “sacerdotes” – líderes religiosos da época -, já que eles representavam o Estado monárquico super-opressor e sanguinário. “Sangue derramado se ajunta a sangue derramado. Por isso, a Terra geme e seu povo está sendo matado” (Os 4,2-3), denuncia Oseias. Destemido, o profeta Oseias aponta os líderes religiosos como causadores da violência: “Eu levanto acusação contra você, sacerdote! Você tropeça de dia, o profeta tropeça com você de noite e você mata a sua própria mãe. O meu povo está morrendo por falta de conhecimento” (Os 4,4-6). Os religiosos do contexto de Oseias rejeitavam o verdadeiro conhecimento (Os 4,6), se agarravam à ignorância, à hipocrisia e a posturas moralistas, como atualmente ocorre com muitas lideranças religiosas. A idolatria alimentada pelos líderes religiosos justificava religiosamente as estruturas e relações sociais de opressão e exploração. Em Oseias 4,1-19, temos uma profecia que denuncia a macro-opressão realizada pelos “sacerdotes”, e outra que põe o dedo na ferida da micro-opressão que acontece nas relações interpessoais, particularmente entre homem e mulher, entre adultos e crianças. O miúdo da vida (o cotidiano) e o macro da vida são as duas pernas presentes de forma entrelaçada na profecia de Oseias. A profecia de Oseias revela para as pessoas o que significa viver sob políticas de morte e alianças com o Império (cf. Os 5,13; 7,11; 8,9), em um ir e vir sem rumo que foi corroendo as forças da nação até chegar ao seu final (cf. Os 5,12; 7,9; 8,8). Isso sem falar da violência que rasgou ventres de mulheres grávidas (cf. Os 14,1) e tirou a vida de crianças de peito (cf. Os 9,11-14).

Enfim, a profecia de Oseias continua atualíssima, quando ele diz: “O meu povo está sendo matado por falta de conhecimento” (Os 4,6). O coronavírus mata, mas a ignorância mata mais. A ignorância gera o caos, a sabedoria não. Os fascistas no poder matariam menos se não encontrassem no meio do povo pequenos fascistas ignorantes, egoístas, estúpidos, irresponsáveis e, em última instância, criminosos também.[2]

05/01/2021

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 – Palavra Ética na TVC-BH: Salvar vidas na Pandemia e defesa dos Geraizeiros do norte de MG-27/6/2020

2 - Palavra Ética na TVC-BH: Quarentena para salvar vidas, mineração em Ibirité/MG, não; Quilombo Braço

3 - Frei Gilvander: "Salvar vidas agora, antes que seja tarde!" - Na luta por direitos - 16/4/2020

4 - Quarentena para salvar vidas/2a Parte/Frei Gilvander/Rádio Independente FM 104,9/Ichu/BA- 07/4/2020

5 - Quarentena para salvar vidas - Frei Gilvander/ Rádio Viva Brasil FM - Três Corações, MG - 31/3/2020

6 - Coronavírus: como vencer o capitalismo de desastre?

7 - CORONAVÍRUS, CLIMA E CAPITAL: a irracionalidade destrutiva do capitalismo

8 - PANDEMIA: ESTE SERÁ O FIM DO CAPITALISMO?!!!



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, que fez a revisão deste texto. Carmem é Doutora em Sociologia Política pela UENF.

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Vale S.A, Herodes que matou outro José: Júlio César. Por Frei Gilvander

Vale S.A, Herodes que matou outro José: Júlio César. Por Frei Gilvander Moreira[1]


Fotos: Divulgação / Trabalhadores na Mina de Córrego do Feijão

Sob os ventos natalinos, como biblista, no nosso texto semanal, eu gostaria de escrever sobre o Nascimento de Jesus Cristo acontecendo na periferia, no meio dos pastores (Cf. nosso artigo “Natal de Jesus: o divino no humano”)[2], - que eram os mais discriminados e injustiçados em uma colônia da sociedade escravocrata sob o Império Romano -, e sendo acolhido e reverenciado pelos magos, que não eram astrólogos, mas “vindos do oriente”, de onde o sol nasce e a vida revigora diariamente, driblaram o rei Herodes, opressor contumaz e repressor sanguinário, seguiram a “estrela de Belém” e reconheceram Deus no humano em uma criança nascendo em um acampamento improvisado na periferia da pequena cidade de Belém. Entre os periféricos, Deus assumiu a condição humana por amor infinito. Natal: Deus se apaixona tanto pelo humano, que larga o céu e vem diariamente acampar com os humanos, todos os animais e seres vivos, mas sempre a partir dos últimos dos últimos (Cf. nosso artigo “Natal de Jesus Cristo na periferia de Belém: “Não tenham medo!””)[3]. Entretanto, sob a perseguição de Herodes, José e Maria tiveram que fugir para o Egito para salvar o menino Deus.

Entretanto, o eloquente clamor de mais um atingido soou como o choro do Menino Deus, o recém-nascido Jesus de Nazaré, também espoliado pelos podres poderes da época, e inspirou-me e motivou-me a falar sobre o Natal, denunciando um grande Herodes da atualidade, a mineradora Vale S/A, que, com a cumplicidade do Estado, não apenas segue expulsando outros Josés, Marias e o menino Deus, mas também, em Brumadinho, MG, dia 18 de dezembro de 2020, por volta das 16h10, matou outro José, chamado Júlio César de Oliveira Cordeiro, soterrando-o, após submetê-lo a trabalhar em uma retroescavadeira na Mina de Córrego do Feijão, em condições de altíssimo risco. Por esse crime, deixou outra “Maria”, uma mulher jovem, viúva com um ‘Jesus’ de apenas três meses nos braços. Por isso ecoaremos aqui o que já foi denunciado pela Comissão Pastoral da Terra, em Minas Gerais: Mineradora Vale S/A mata mais um trabalhador, em Brumadinho, MG. Até quando a Vale continuará impune e matando?



A mineradora Vale S/A, com exploração predatória, assassinou mais um trabalhador na Mina de Córrego do Feijão, em Brumadinho, onde foram mortos, enterrados vivos, 272 trabalhadores e trabalhadoras, dia 25 de janeiro de 2019, com 11 corpos ainda desaparecidos. Após quase dois anos do crime-tragédia cometido pela Vale S/A com anuência do Estado, um dos maiores desastres ambientais do mundo e o maior acidente de trabalho do mundo em perdas de vidas humanas, com a cumplicidade do Estado, a Vale S/A continua matando, todos os dias, de várias formas, gente, peixes, animais e sacrificando todos os ecossistemas e expulsando comunidades de seus territórios. Enquanto dirigia uma retroescavadeira, um grande talude de uma cratera na Mina de Córrego do Feijão desabou, soterrando a retroescavadeira e o jovem trabalhador Júlio César de Oliveira Cordeiro, de 34 anos, empregado da empresa Vale Verde, terceirizada da Vale S/A. Júlio César deixou sua esposa viúva e órfão uma criança de 3 meses. Nossa solidariedade à esposa e a toda a família de Júlio César, mais um trabalhador martirizado pela Vale com a cumplicidade do Estado.



Denunciamos que a Vale, com a cumplicidade do Estado, continua matando de mil formas. Por exemplo, vem negando da forma mais vil o fornecimento de água potável a milhares de famílias que só acham lama em suas torneiras; negligencia quanto ao direito dos atingidos e das atingidas que se encontram fora do limite de 1 km do rio Paraopeba, mas que sofrem os mesmos prejuízos e danos dos demais; suspende indevidamente o auxílio emergencial de quem já possui este direito assegurado, sem justificativas plausíveis. O consumo de água potável para beber e cuidar das plantações e animais é um direito garantido pelos Direitos Humanos em nível internacional, mas o que se apresenta na bacia do Paraopeba é um cenário de pânico e de terror em várias comunidades, que sentem a cada dia as crescentes consequências na saúde da população decorrente do consumo de água com poluentes tóxicos e, provavelmente, com metais pesados. O adoecimento das pessoas e a insegurança de saber se vão ou não receber o auxílio emergencial no próximo mês causa uma grande tensão, além de conviverem diariamente com um rio e um ar contaminado. Doenças respiratórias, gastrointestinais, renais, vários tipos de câncer, depressão e outras enfermidades de ordem psicológica vêm se alastrando, comprometendo assim a saúde física e mental da população como um todo. Isso mata aos poucos. A Vale S/A, privatizada, mata também se beneficiando da terceirização, pois os trabalhadores que são submetidos aos trabalhos mais arriscados são os terceirizados.

O local é uma área de alto risco, não poderia ter ninguém lá. O talude não cai de uma vez. Sempre há indícios, rachaduras. Não se pode arriscar vidas humanas dessa forma e é preciso investigar se não há risco de novos rompimentos. O medo e o desespero das comunidades próximas àquele local é muito grande. Não foi um acidente conforme informado pela Vale S/A e pela imprensa, foi mais um crime premeditado e planejado. Em auto de infração de 15 dias atrás está registrado problemas de segurança de disposição de rejeitos minerários na cratera da Mina de Córrego do Feijão. Por isso, a Agência Nacional de Mineração (ANM) tinha paralisado os trabalhos na área. Os taludes estavam instáveis pela movimentação de caminhões e gigantes “tratores”? Como foi possível a obtenção de uma licença simplificada para uma operação tão arriscada e questionada por ambientalistas que é depositar rejeitos de mineração na cratera da mina de Córrego do Feijão, oferecendo altíssimos riscos aos trabalhadores e de contaminação dos lençóis freáticos na região? Assim, a Vale S/A operava na ilegalidade ou em legalidade suspeita.



É notória a exaustão da Região Metropolitana de Belo Horizonte, com mais de 300 anos de mineração. Com tantas crateras e túneis de muitos quilômetros, inclusive debaixo da cidade de Belo Horizonte, com dezenas de grandes barragens sinalizando que podem romper a qualquer momento e com vários pequenos abalos sísmicos e tremores de terra é óbvio que os trabalhadores e as trabalhadoras são submetidos a trabalharem em situações de altíssimo risco de morte.

Esse crime e tantos outros crimes-tragédias, como o rompimento da barragem de “Fundão” em Mariana, MG, (19 mortos), Barragem de Córrego do Feijão em Brumadinho (272 mortos), rompimento da barragem da Mineradora Herculano em 2014, em Itabirito-MG (03 mortos), a morte do motorista Bruno Henrique do Amaral Silva, em agosto de 2019, e a morte de dois caminhoneiros em meados de 2019 enquanto transportavam minério para a mineradora Mineral do Brasil, vizinha à Mina do Córrego do Feijão, revelam como o modelo de exploração mineral no Brasil é predatório e devastador, também em relação à vida humana. A geração bilionária de lucro para as empresas do setor, a maior parte sob controle de investidores estrangeiros, deixa apenas um rastro de desastres, destruição, miséria e contaminação para as populações locais. Até quando a Vale, a Samarco e outras mineradoras continuarão impunes e matando?

A questão é mais ampla do que a revisão de uma política de barragens. O modelo predatório de mineração a que temos sido submetidos considera a devastação de territórios e a destruição da vida como um preço a ser pago pela enorme margem de lucros do negócio. São especuladores também de minas de água e de aquíferos. Cumpre recordar que com a Lei Kandir, de 1998, isentando do pagamento de Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMs) as commodities para exportação, a Vale S/A e as outras mineradoras nem ICMs pagam. Com isso, o Estado de Minas Gerais teve uma perda de 140 bilhões de reais nos últimos 22 anos. E agora a Vale e o Governo de Minas Gerais, com a participação das Instituições de Justiça (Ministério Público de MG, Defensoria de Pública de MG e Tribunal de Justiça de MG (TJMG)), SEM A PARTICIPAÇÃO dos/as atingidas, estão construindo um Acordão que será muito bom para a Vale e péssimo para os/as atingidos/as.

Em Sarzedo, MG, município muito próximo à Mina do Córrego do Feijão, há quase dois anos, milhares de pessoas, longe dos holofotes da grande mídia corporativa, convivem com o pesadelo de eventual rompimento de barragens da mineradora Mineração Itaminas. Com mais de 5 mil pessoas cadastradas na área de inundação por lama tóxica em caso de rompimento, a continuidade da utilização dessas estruturas depende hoje do desfecho de uma Ação Civil Pública que até a presente data não levou a nenhuma obrigação de desativação das barragens, não foram realizadas perícias que possam minimamente tranquilizar a população. No dia 18 de dezembro p.p., após a notícia de mais um soterramento causando a morte do trabalhador Júlio César, milhares de pessoas do Bairro Brasília, em Sarzedo, que estão sob as barragens da Itaminas, não conseguiram dormir com a notícia e a chuva forte que aumentava os riscos de desabamento das barragens da Itaminas. Muitos são os fatores de risco apontados pela população e ignorados pelas autoridades, mas com o crime ocorrido na tarde de ontem em especial merece ser lembrado. Um fator de grande risco que vem sendo totalmente negligenciado até o momento pelas autoridades envolvidas é a existência de taludes das crateras da Mina da Jangada, de propriedade da Vale S.A, a pouquíssima distância da Barragem B4 da Itaminas, a barragem que oferece gravíssimo potencial para ceifar 5 mil vidas em Sarzedo, MG.

Como no caso da Barragem da Mina de Gongo Soco, em Barão de Cocais, MG, taludes são estruturas integrantes das crateras de mineração, privadas de estabilidade devido à enorme atividade que sobre elas impacta, desde a movimentação de cargas de dezenas de toneladas por “tratores” gigantes a detonações rotineiras. O senhor Ricardo Moraes e a senhora Rejane Moraes, moradores “expulsos” da sua casa em Córrego do Feijão, denunciaram em videorreportagem que as explosões com 460 quilos de dinamite na Mina da mineradora MIB, distante apenas 700 metros da Mina de Córrego do Feijão, pode ter desencadeado o rompimento da Barragem em Córrego do Feijão dia 25/01/2019. Assim como as barragens, os taludes também podem se desestabilizar, escorregando lentamente ou, em cenário mais grave, romper bruscamente, sendo que tal movimentação é capaz de ocasionar um rompimento das frágeis estruturas de contenção de rejeitos como é a Barragem B4 da mineradora Itaminas em Sarzedo. Ora, se na Mina do Gongo Soco, taludes de uma cratera distante quase 2 (dois) quilômetros da barragem interditada foram considerados fatores de risco do chamado “gatilho”, por qual motivo essas estruturas da Mina Jangada, que estão muito mais perto da B4 não foram consideradas como de risco à estabilidade e segurança da barragem? A Mina de Jangada localiza-se nos municípios de Brumadinho e Sarzedo e faz parte do complexo Paraopeba da Vale S/A. A mina vem sendo lavrada desde 1974, e em 2007 a Vale assumiu suas operações por meio do arrendamento do antigo empreendedor Minerações Brasileiras Reunidas S.A (MBR).

Além de suspender de forma preventiva o funcionamento de complexos minerários geradores de risco para populações, de rever processos de licenciamento, auditar e fiscalizar com rigor barragens e outras estruturas, é urgente avançar para um maior empoderamento das comunidades nos seus territórios. Para que se possam contrastar de maneira efetiva o projeto de morte revelado pela atuação das mineradoras, é imprescindível que às lutas das comunidades atingidas possam se somar todos que tenham compromisso com preservação do meio ambiente, a proteção das condições de vida e a promoção da dignidade, desde lideranças políticas, sociais e religiosas, passando por movimentos, organizações, entidades, chegando até as instituições públicas. Todos os crimes praticados por essas mineradoras, e que seguem impunes, são provas cabais de que para o capital minerário não há limites em termos de devastação e destruição. Esse modelo precisa ser interrompido para que centenas de territórios e sua gente deixem de ser subjugados como tem ocorrido de forma especialmente intensa nas últimas décadas.

Exigimos de todas as autoridades apuração contundente, julgamento e punição de mais esse crime da Vale S/A. Exigimos também que as autoridades do Estado não deixem a Vale continuar controlando a cena do crime. Nesse contexto de superexploração do capital – Vale S/A, agronegócio, transnacionais e capital financeiro especulativo -, além de acolher o menino Deus nascendo no meio dos atingidos e massacrados, temos também de denunciar os Herodes da atualidade. Em meio à guerra contra os pobres, contra a mãe terra, a irmã água, fauna e flora, oxalá sejamos Natal, presença do divino que revoluciona o humano para ser de fato humano, libertador.

22/12/2020

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Videorreportagem sobre o soterramento de Júlio César na Mina de Córrego do Feijão, da Vale S/A

2 - Homilia de Dom Vicente em São José do Brumadinho, Barão de Cocais, MG: São José sob Herodes, a Vale

3 - “SOCORRO! A VALE NOS ROUBOU O DIREITO DE VIVER”: PATRÍCIA PASSARELA e FERNANDA PERDIGÃO - 07/12/2020

4 - "Basta de atrocidades! Exigimos justiça!" - 2ª Parte - Por frei Gilvander - 06/12/2020

5 - A verdade está com os/as atingidos pela Vale e pelo Estado/1ª Parte/Por frei Gilvander - 06/12/2020

6 - "Estado, não venda nossa dor para a Vale!", atingida Eunice e Carlos Henrique, Câmara Fed. 06/12/20

7 - "A gente se sente esfaqueada pela Vale e pelo Governo." - 2ª Parte - Por frei Gilvander - 05/12/2020

8 - Gritos dos/das Atingidos/as interpelam nossa consciência - Por frei Gilvander -1ª Parte - 05/12/2020

9 - PALAVRAS DE FOGO: Atingidos/as pela Vale e Estado na Câmara Federal. Eliana Marques e Nívea Almeida

10 - Dor e lágrimas dos/as Atingidos/as. Por que as autoridades não ouvem? BRITO e LIONETE, de MG–4/12/20

11 - “Desde nossos avós vivemos aqui. Vale, AQUI NÃO!” Márcio, de Laranjeiras, Barão de Cocais/MG–7/12/20





[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Natal de Jesus: o divino no humano, no link a seguir: http://gilvander.org.br/site/%ef%bb%bfnatal-de-jesus-o-divino-no-humano/

[3] Natal de Jesus Cristo na periferia de Belém: “Não tenham medo!”, no link a seguir: http://gilvander.org.br/site/%ef%bb%bfnatal-de-jesus-cristo-na-periferia-de-belem-nao-tenham-medo/