Gilvander é frei e padre da Ordem dos carmelitas, Doutor em Educação pela FAE/UFMG; bacharel e licenciado em Filosofia pela UFPR, bacharel em Teologia pelo ITESP/SP, mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas, em Minas Gerais.
sexta-feira, 13 de maio de 2016
quinta-feira, 12 de maio de 2016
terça-feira, 10 de maio de 2016
segunda-feira, 9 de maio de 2016
Chega de golpes na América Latina. por ADOLFO PÉREZ ESQUIVEL em 09/05/2016.
Chega de
golpes na América Latina
por ADOLFO PÉREZ ESQUIVEL
09/05/2016 FSP
A democracia, cuja conquista nos custou tanto, está novamente em risco na
América Latina. A situação que o Brasil vive hoje afeta a todos os povos da
região.
Em minha passagem recente pelo Brasil, reuni-me com a presidente Dilma
Rousseff para oferecer meu apoio e o de muitas organizações, dado que a
oposição no Congresso procura destituí-la do cargo, que ela assumiu pelo voto
majoritário, por meio de impeachment baseado em um delito inexistente.
A oposição aponta contra Dilma procedimentos contábeis já praticados por
governos anteriores, e inclusive por muitos dos acusadores da presidente.
Trata-se de uma situação semelhante aos golpes brancos que já vimos
recentemente em Honduras e no Paraguai. Todos motivados por procedimentos
ilegais para violentar a vontade popular, com um aumento da repressão e das
políticas contra o povo.
Há, por trás desse processo de destituição, um projeto econômico explícito
de maior dependência, privatização e desnacionalização.
Provável futuro presidente da República, Michel Temer já manifestou sua
intenção de impor ao Brasil políticas econômicas contrárias às escolhidas pelos
eleitores, como privatizar tudo o que for possível da infraestrutura do país e
reduzir as políticas sociais das quais dependem os setores mais vulneráveis.
O Senado Federal do Brasil convidou-me cordialmente a oferecer uma mensagem
na sessão do dia 28 de abril, e ali transmiti minhas saudações e a preocupação
com a possibilidade de um golpe de Estado no Brasil. Lamentavelmente, a
resposta dos senadores da oposição não foi levantar dúvidas sobre o processo
que promovem, mas pedir que as palavras "possível golpe", contidas em
minha breve mensagem, fossem cortadas da versão estenografada.
Após a sessão, tivemos um encontro com dom Leonardo Steiner,
secretário-geral da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), que nos
manifestou sua preocupação com a situação do país, com o aumento do ódio, da
intolerância e da descrença na política e na institucionalidade.
Steiner mostrou-se também aflito com a atitude da direção política
opositora, que, na sessão da Câmara dos Deputados que aprovou o impeachment,
permitiu que parlamentares fizessem apologia da ditadura e da tortura, sem
sofrerem qualquer reprimenda. Ele teme que o clima exaltado das ruas transcenda
os limites do respeito.
Por sua parte, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo
Lewandowski, de maneira muito respeitosa, transmitiu-nos sua inquietação diante
de uma crise política de tal magnitude, que não se imaginava mais possível após
a redemocratização do Brasil.
Encerrei minha visita compartilhando o Dia do Trabalho com os movimentos
sociais que lutam para defender os direitos de nossos povos à terra, ao teto,
ao trabalho e à democracia. A ansiedade desses grupos não é pouca, levando em
conta que os deputados da Frente Parlamentar da Agropecuária já estão pedindo a
Temer que use as Forças Armadas para reprimir protestos sociais e desalojar
assentamentos rurais e indígenas.
As organizações sociais brasileiras resistem com esperança, pois sabem que a
luta é justa. Elas contam com a solidariedade de várias entidades
internacionais. Não queremos mais golpes de Estado na América Latina.
ADOLFO PÉREZ ESQUIVEL, 85, argentino, é arquiteto, escultor e
ativista dos direitos humanos. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1980
sábado, 7 de maio de 2016
XXXIII Encontro Diocesano de CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) da Diocese de Guaxupé, em Nova Resende, de 29/04 a 01/05/2016. Por frei Gilvander
XXXIII Encontro Diocesano de CEBs (Comunidades Eclesiais
de Base) da Diocese de Guaxupé, em Nova Resende, de 29/04 a 01/05/2016.
Assessoria de frei Gilvander Luís Moreira[1]
Campanha da Fraternidade de 201 e nós
das CEBs: o desafio do saneamento básico.
Pela
quarta vez ecumênica, a Campanha da Fraternidade de 2016 (CF/2016) tem como
Tema:
“Casa comum, nossa responsabilidade”,
como
Lema: “Quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca (Amós 5,24)
e como
Objetivo Geral: “assegurar o direito ao SANEAMENTO
BÁSICO para todas as pessoas e nosso compromisso, à luz da fé no Deus
libertador, na luta coletiva por políticas públicas e atitudes responsáveis que
garantam a integridade e o futuro de nossa Casa Comum, o planeta Terra”.
Os
Temas e Lemas das Campanhas da Fraternidade já realizadas contribuíram muito
para colocar na pauta da política e das forças vivas da sociedade brasileira
grandes injustiças que se tornaram clamores ensurdecedores. Para refrescar a
memória, citamos: CF/74: Onde está o teu irmão?; CF/75: Repartir o pão, logo
após o milagre econômico de 1973, denunciava ricos cada vez mais ricos à custa
de pobres cada vez mais pobres; CF/78: Trabalho e Justiça para todos; CF/79:
sobre Ecologia, com o lema “Preserve o que é de todos”; CF/80: sobre Migrantes,
com o lema “Para onde vais?”; CF/81: Saúde para todos, o que contribuiu para a
criação do SUS em 1988; CF/83: Fraternidade, sim; Violência, não; CF/85: Pão
para quem tem fome; CF/86: sobre a terra, com o lema “Terra de Deus, terra de
irmãos”, contribuiu para legitimar a atuação da Comissão Pastoral da Terra, do
MST recém criado e fez nascer dezenas de movimentos sociais do campo; CF/87:
sobre crianças abandonadas, com o lema “Quem acolhe o menor a mim acolhe”. Essa
foi imprescindível na criação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1991;
CF/88: sobre Os Negros, com o lema “Ouvi o clamor desse povo”, fez surgir e
fortalecer o Movimento Negro, movimento popular de luta contra o racismo;
CF/89, “Comunicação para a verdade e a paz” denunciou a concentração do poder
midiático (mídia) em poucas nas mãos; CF/90: contra o machismo e o
patriarcalismo, com o lema “Mulher e Homem, imagem de Deus”; CF/91, Solidários
na dignidade do trabalho; CF/92 e CF/13: sobre a Juventude, denunciando o
extermínio de jovens pelo tráfico, violência social etc; CF/93: sobre Moradia,
com o lema “Onde moras?”, fez surgir inúmeros movimentos de luta por moradia;
CF/95: sobre os Excluídos, com o lema “Eras tu, Senhor?” fortaleceu o Movimento
Nacional do Povo de Rua e a Pastoral do povo de rua; CF/96: sobre Política, com
o lema “Justiça e Paz se abraçarão”, fortaleceu o Movimento que luta por ética
na Política Partidária; CF/97: Os encarcerados, acolhendo os gritos dos
milhares de presos e denunciando que eles estão submetidos a situações
degradantes e desumanas em prisões superlotadas; CF/98: Educação, o que ajudou
a legitimar a luta por educação pública de qualidade; CF/99: Desemprego, com o
lema “Sem trabalho, por quê?”; CF/01: sobre Drogas, com o lema “Vida, sim;
drogas, não”; CF/02: sobre Povos Indígenas, com o lema “Por uma terra sem
males”, contribuiu para o surgimento e fortalecimento de inúmeros movimentos
indígenas; CF/03: sobre Pessoas idosas, contribuiu para a Criação do Estatuto
do Idoso em 2003; CF/04: sobre A água, com o lema “Água, fonte de vida”; CF/06:
Pessoas com deficiência; CF/07: sobre Amazônia; CF:09: sobre Segurança Pública,
com o lema “A paz é fruto da justiça”; CF/10: Economia, questionando com
veemência o modelo econômico capitalista-neoliberal e apontando a necessidade e
justeza de fortalecermos a Economia Popular Solidária; CF/11: Vida no Planeta,
com o lema “A criação geme em dores de parto”, refletiu sobre a crise ecológica
mundial; CF/12: sobre Saúde Pública; CF/14: sobre Tráfico humano. CF/2015: Fraternidade e
Sociedade. Lema “Eu vim para servir”.
Gênesis 1,2: “O
Espírito de Deus está nas águas.”: Tudo é sagrado.
Somos natureza, somos
corpo, uma infinidade de células, muitos órgãos.
1 - Ecologia
ambiental;
2 - Ecologia social;
3 - Ecologia
integral;
4 - Ecologia política.
Como o pecado entrou no mundo? Alguém cercou terra e disse: “isso é meu.” E os
outros aceitaram resignadamente.
Cinco sub-temas:
1) CEBs e Bíblia;
2) CEBs e Problemas Urbanos;
3) CEBs e Catadores, lixo e economia solidária;
4) CEBs e Igreja Instituição;
5) Cebs e Agrotóxicos/agroecologia.
Questões para
refletir nos grupos:
1) O que há de luta, de ação, de compromisso na nossa
Diocese ou no nosso município ou lá na Comunidade Eclesial de Base onde atuo
relativo ao sub-tema acima?
2) Quais os desafios/problemas que precisam ser enfrentados
relativo ao sub-tema acima?
3) Como agir para fortalecermos as lutas que já existem e
encarar as outras lutas necessárias?
Contribuição de frei
Carlos Mesters: Os dois livros de Deus e o Decálogo da Criação e o Decálogo do
povo. E a lição dos indígenas, abaixo.
OS DOIS LIVROS DE
DEUS
1º LIVRO:
a Criação, a Vida;
2º LIVRO:
a Bíblia;
1. Superar
o fundamentalismo.
2.
Superar as imagens ultrapassadas de Deus.
OS DOIS LIVROS DE DEUS
1º LIVRO: a criação, o cosmos, a
natureza, o universo, a vida, o mundo, os fatos, a história.
O primeiro livro de
Deus não é a Bíblia, mas sim a natureza. É através do Livro da Natureza ou da Vida
que Deus quer falar conosco. De que maneira a natureza é o Livro de Deus? Deus
criou as coisas falando. Ele disse: “Luz!” E a luz começou a existir (Gn 1,3).
Tudo que existe é a expressão de uma palavra divina, como tão bem verbaliza o
salmo: “O céu manifesta a glória de Deus,
e o firmamento proclama a obra de suas mãos. O dia passa a mensagem para outro
dia, a noite a sussurra para a outra noite. Sem fala e sem palavras, sem que a
sua voz seja ouvida, a toda a terra chega o seu eco, aos confins do mundo a sua
linguagem” (Sl 19,2-5).
Cada
ser humano é uma palavra ambulante de Deus (Gn 1,27). As crianças são palavra
de Deus para os pais; os pais são palavra de Deus para as crianças. Mas nós já
não nos damos conta de que estamos vivendo no meio do livro de Deus e que cada
um de nós é uma página viva deste livro divino. Há algo que nos impede de
reconhecer a presença da Palavra na vida, algo que “sufoca a verdade” (Rom
1,18). O que nos impede?
Santo
Agostinho diz que foi o pecado, isto é, esta nossa mania de querer dominar tudo, de
tratar a natureza como mercadoria e de achar que somos donos de tudo. Por isso,
as letras do Primeiro Livro de Deus se atrapalharam e já não conseguimos
descobrir a fala de Deus no Livro da Vida.
Perdemos o olhar da contemplação, a capacidade de admirar. Por isso, nasceu a Bíblia, o Segundo
Livro de Deus.
2º LIVRO: a Bíblia
A Bíblia foi escrita,
não para substituir o Livro da Vida, mas sim para ajudar-nos a entendê-lo
melhor e a descobrir nele os sinais da presença de Deus. O estudo e a leitura
orante da Bíblia nos devolvem o olhar da contemplação. Ajudam a decifrar e a
interpretar os acontecimentos, a natureza. Fazem com que o Universo se torne
novamente uma revelação de Deus, e volte a ser o que deve ser “O Primeiro Livro de Deus”.
O
texto da Bíblia não caiu pronto do céu. Nasceu aos poucos, fruto da ação do
Espírito de Deus e de um demorado processo de busca do ser humano. Impelido
pelo desejo de encontrar Deus na vida, o povo foi descobrindo os sinais da sua
presença e, dentro dos critérios da cultura da época, transmitia para os filhos
as suas descobertas. Assim foi nascendo a Tradição Viva do Povo de Deus,
transmitida oralmente de geração em geração. No fim, escreveram tudo num livro.
Este livro é a Bíblia.
A
Bíblia traz o resultado da leitura que o povo hebreu conseguiu fazer da vida e
da natureza para descobrir nelas a fala de Deus. Este Segundo Livro de Deus (a Bíblia), assim dizia Santo Agostinho,
ajudou o povo a entender melhor o Primeiro
Livro (a Vida, a Natureza). Com a orientação da Bíblia devemos também nós “escrever a nossa Bíblia”, isto é, devemos imitar o povo de Deus e, como
eles, ler a nossa realidade para descobrir dentro dela os apelos de Deus e
expressá-los dentro dos critérios da nossa cultura.
Muitos
perguntam: mas o que fazer com a Bíblia e a sua cosmo-visão ultrapassada? Como
ela pode nos ajudar a interpretar este universo imenso que a ciência descortina
diante de nós? Aqui vale a pena retomar uma palavra de Clemente de Alexandria,
um sábio africano do século IV da cidade de Alexandria no norte do Egito. Ele
dizia: “Deus salvou os judeus
judaicamente, os gregos, gregamente, os bárbaros, barbaramente”. E podemos
continuar: “Os brasileiros, brasileiramente; os argentinos, argentinamente; os
latinos, latinamente” ” etc. Os judeus, os gregos e os bárbaros, cada um no seu
tempo e na sua cultura, através da teimosia da sua fé e no meio das muitas
crises das suas histórias, foram capazes de descobrir os sinais da presença
amorosa de Deus em suas vidas. Assim também nós estamos sendo desafiados a
fazer hoje o mesmo que eles fizeram no seu tempo, a saber: descobrir a mesma
presença divina dentro da nossa realidade.
Isto
implica em três tarefas: (1) superar o
fundamentalismo; (2) superar as imagens ultrapassadas de Deus e (3) ter
presente as perguntas que a vida levanta.
1. Superar o
fundamentalismo: limpar o livro com o uso da ciência e do bom senso
Uns
dizem que a Bíblia é um livro infantil, ultrapassado pelas descobertas da
ciência. Outros, em nome da Bíblia, negam as conclusões da ciência e dizem:
“Prefiro ser criatura de Deus a ser descendente de macaco!” Os dois são
fundamentalistas, ambos tomam a Bíblia ao pé da letra. Nenhum dos dois foi
capaz de descobrir a mensagem de vida encerrada na letra da Bíblia. Nos dois, a
visão fundamentalista da letra bloqueou a comunicação correta com a Bíblia e
matou neles a possibilidade de descobrir o sentido verdadeiro, escondido na
letra. Dizia o apóstolo Paulo: “A letra
mata. É o Espírito que dá vida à letra” (2Cor 3,6). Por mais que invoquem
ou neguem a ciência, nenhum dos dois soube usar a ciência que poderia ajudá-los
a descobrir o sentido que existe dentro da letra. O fundamentalismo é inimigo
da verdade.
Com
a ajuda do bom senso e da ciência (exegese) devemos estudar a letra, a
linguagem, o estilo, a expressão literária, o contexto histórico e procurar
descobrir a intenção, o fio da meada, as convicções de fé que nelas se
expressam. Situando assim o texto da Bíblia no seu contexto humano de origem,
quebramos o fundamentalismo, e limpamos e renovamos o livro.
2. Superar as imagens
ultrapassadas de Deus: limpar os olhos que leem a Bíblia
Mas
não basta limpar o livro. Temos que limpar também os olhos que leem o livro. O
problema de fundo está no olhar com que lemos a Bíblia. Uma comparação: Na sala onde
o povo estava reunido penduraram a foto de um homem muito severo que com o dedo
em riste parecia agredir o público. O pessoal olhava e dizia: “Sujeito
antipático! Dá até medo na gente!”. Um outro dizia: “Coitado da mulher
dele!’ –“É melhor ficar longe dele!” Aí
entrou um rapaz, olhou a foto e disse: “É meu Pai!’ –“Pai severo, hein!” –“Não! Nada disso! Meu pai é advogado. Tirei
a foto quando ele, diante do juiz, defendia um grupo de pobres que corriam
perigo de perder suas casas construídas num terreno baldio. Um ricaço queria
despejá-los e construir aí um grande prédio para ganhar mais dinheiro. Meu pai
os defendeu com força e ganhou a causa. Os pobres continuam em suas casas e até
ganharam a escritura!” Todos olharam a foto e disseram “Que pessoa simpática!”
De
repente, tudo mudou! E mudou sem que mudasse coisa alguma. O que mudou? A foto
continuou igual. O que mudou foram os olhos. Foi a experiência do filho que
entrou no coração do pessoal e se colocou atrás os olhos. No tempo de Jesus, o
povo olhava a Bíblia e ficava com medo de Deus que parecia severo e ameaçava o
povo com castigo. Aí chegou Jesus, olhou
a Bíblia e dizia: “É meu Pai!” Aí tudo mudou, sem mudar uma vírgula sequer!
(Mt 5,18). O que mudou foram os olhos. Temos que criar em nós a experiência de
Jesus, o Filho do Pai. Aí os olhos se renovam, e o AT, sem mudar uma vírgula
sequer, vira NT.
O profeta Jeremias:
um novo olhar sobre a presença de Deus na criação
Diante daquele desespero generalizado causado
pela destruição do Templo por Nabucodonosor, Jeremias dizia: “de tudo isto,
temos muito motivo de esperança!” - “Qual?” - “O sol vai nascer amanhã!” Jeremias
redescobriu a presença de Deus na natureza. Nabucodonosor pode ser forte, mas ele
não pode impedir o nascimento do sol! A certeza do nascer do sol não depende
dos poderes deste mundo, nem depende da nossa observância da lei, mas está
impressa na lógica da criação. É pura gratuidade, expressão do bem-querer do
Criador. É promessa que não falha. Nós podemos romper com Deus, mas Deus não
rompe conosco, pois cada manhã, através da sequencia dos dias e das noites, ele
nos fala ao coração e diz: “Como é certo que eu criei o dia e a noite e
estabeleci as leis do céu e da terra, também é certo que não rejeitarei a
descendência de Javé e de meu servo Davi. Quando essas leis falharem diante de
mim - oráculo de Javé - então o povo de Israel também deixará de ser diante de
mim uma nação para sempre” (Jr 33,25-26; 31,36).
As Dez Palavras da
Aliança (Decálogo) e as Dez Palavras da Criação (outro Decálogo)
Com esta luz nos olhos, o povo, lá na
desgraça do cativeiro, começa a observar a Natureza. Ao lado das Dez Palavras (Dez Mandamentos) que estão
na origem da Aliança, eles começam a dar atenção também às Palavras Divinas que
estão na origem das criaturas. O autor que fez a redação da narrativa da
Criação (Gn 1,1-2,4ª) teve a preocupação em descrever toda a ação criadora de
Deus por meio de exatamente Dez Palavras.
Ele repete dez vezes a expressão “e Deus disse”:
1. Gn 1,3 E
Deus disse: haja luz
2. Gn 1,6 E
Deus disse: haja firmamento
3. Gn 1,9 E
Deus disse: as águas se juntem e apareça o continente
4. Gn 1,11 E
Deus disse: a terra produz verde
5. Gn 1,14 E
Deus disse: haja luzeiros
6. Gn 1,20 E
Deus disse: as águas produzam seres vivos
7. Gn 1,24 E
Deus disse: que a terra produz seres vivos
8. Gn 1,26 E
Deus disse: façamos o ser humano
9. Gn 1,28 E
Deus disse: sejam fecundos
10. Gn 1,29 E
Deus disse: dou as ervas para vocês comer.
|
E Deus disse
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|
A Lei de Deus entregue ao povo no Monte Sinai tinha no
seu centro as Dez Palavras divinas da aliança (Ex 20,1-17; Dt 5,6-22). Da
mesma maneira, a narrativa da Criação tem no seu centro Dez Palavras divinas. Ao
lado da Lei da Aliança, descobrem a Lei da Criação. Como fez para o seu povo,
Deus faz para as criaturas: fixou para elas
“uma lei que jamais passará” (Sl 148,6). Dez vezes Deus falou e dez vezes
as coisas começaram a existir. Falou: Luz!,
e a luz começou a existir. Falou: Terra!,
e a terra apareceu. Gritou os nomes das estrelas, e elas começaram o seu
percurso no firmamento. “Ele diz e a
coisa acontece, ele ordena e ela se afirma” (Sl 33,9). “Deu-lhes uma lei que jamais passará” (Sl 148,6) Pela força da
Palavra o Criador enfrentou a desordem do caos e fez nascer a harmonia do
cosmos.
A harmonia do Cosmos que enfrenta e vence a ameaça do
caos é fruto da obediência das criaturas aos Dez Mandamentos da Criação. O povo
não tinha observado a Lei da Aliança. Por isso veio a desordem do cativeiro. As
criaturas, ao contrário, sempre observam a Lei da Criação. Por isso existe a
harmonia do cosmos. No Pai-Nosso
Jesus dirá: “Seja feita a vossa vontade na terra assim como é feita no céu”.
Jesus pede que nós possamos observar a Lei da Aliança com a mesma perfeição com
que o sol e as estrelas do céu observam a Lei da Criação. Na harmonia do
universo descobrimos como realizar nossa missão. O Decálogo da Criação descreve
a ação de Deus em nosso favor, o Decálogo da Aliança descreve como deve ser a resposta
do ser homem.
A total gratuidade da
presença universal de Deus Criador encheu de esperança o povo desanimado do
cativeiro e lhe deu coragem para recomeçar com garra a busca da justiça, a
observância da lei de Deus. Agora, eles observam a lei da aliança, não mais
para poder merecer a salvação, e sim
para poder agradecer e retribuir a
imensa bondade com que Deus os amou primeiro e cujo amor não depende da
observância da lei. Eles sabem que nada nem mesmo o fracasso pode separá-los do
amor de Deus (Is 40,1-2ª; 41,9-10.13-14; 43,1-5; 44,2; 46,3-4; 49,13-16;
54,7-8; etc; cf. Rom 8,35-39)
A fé no Deus Criador
abriu um horizonte, cujo alcance para a vida só se compara com o horizonte que
a ressurreição de Jesus abriu para os discípulos confrontados com a barreira
intransponível da morte. A fé na gratuidade da presença universal de Deus
torna-se a infra-estrutura da observância dos dez mandamentos.
A LIÇÃO DOS ÍNDIOS
Uma reflexão de
Leonardo Boff sobre as lições que podemos receber dos índios:
Os índios sentem e veem
a natureza como parte de sua sociedade e cultura, como prolongamento de seu
corpo pessoal e social. Para eles a natureza é um sujeito vivo e carregado de
intencionalidades. Não é como para nós modernos, um objeto mudo e sem espírito.
A natureza fala e o indígena entende sua voz e mensagem. Por isso ele está
sempre auscultando a natureza e se adequando a ela num jogo complexo de
inter-relações. Há sábias lições que precisamos aprender deles face às atuais
ameaças ambientais. Importa entender a Terra, não como algo inerte, com
recursos ilimitados, disponíveis ao nosso bel prazer. Mas como algo vivo, a Mãe
do índio a ser respeitada em sua integridade. Se uma árvore é derrubada, faz-se
um rito de desculpa para resgatar a aliança de amizade. Precisamos de uma
relação sinfônica com a comunidade de vida, pois como foi comprovado, Gaia
(terra) já ultrapassou seu limite de suportabilidade. Se deixarmos as coisas
correrem e não fizermos nada as ameaças se tornarão devastadora realidade.
(Leonardo Boff, O desafio Amazônico, 19.02 2007).
Dois exemplos da lição de índios que não
perderam o contato com a natureza: o primeiro é de um índio do Xingu, Brasil,
contado pelo indigenista Orlando Villas Bôas; o segundo, de um índio da América
do Norte.
Orlando Villas Bôas conviveu com os índios e
estudou os costumes deles. Ele conta o seguinte:
"De todas as histórias contadas pelos
índios, a mais surpreendente foi nascida de uma conversa com Arru, um de
meia-idade que, embora não fosse um grande pajé, era, sem dúvida, o mais
versado nos conhecimentos que transcendem o saber comum, principalmente no
campo do sobrenatural. Arru chegara do mato cansado da caminhada e,
encontrando-nos na aldeia, sentou-se a meu lado. Não havia muita coisa a
conversar. Seu mundo monótono, nesse aspecto, valia pelo que já havia
acontecido. Foi por isso que ele, olhando para os lados, para o chão e depois
para o céu, disse: -“Lá é o céu. –“Eu já
sabia”, respondi. –“Lá é a aldeia dos que morrem”. –“Eu já sabia”. Depois de um
breve intervalo, e de olhar bastante elevado para o céu, falou: -“Lá no céu do
céu... ela está lá”. Fui tomado de surpresa. Céu do céu... O que viria a ser
isso? Ela está lá? Ela, quem? A figura de um índio velho? Daí perguntei:
-“Quem? Um índio velho que sabe tudo? –“Não! (pronunciado com veemência),
somente uma sabedoria!” E com um gesto
largo abrangendo o sol e o céu deu-me a idéia de que lá havia somente uma
sabedoria, que, tal qual a concepção das seitas tibetanas, mantém a harmonia do
universo.” (O Villas Bôas, A Arte dos Pajés, Impressões sobre o universo
espiritual do indio xinguaano,Editoria Globo,2000, p.89-90) .
Em 1852, o governo
dos Estados Unidos propôs comprar as terras dos índios. O cacique Seattle
estranhou a proposta e expôs a sua preocupação numa carta ao Presidente. Segue
aqui um trecho da carta:
"O presidente em Washington informa que
deseja comprar nossa terra. Mas como é possível comprar ou vender o céu ou a
terra? A idéia nos é estranha. Se nós não possuímos o frescor do ar e a
vivacidade da água, como vocês poderão comprá-los? Cada parte desta terra é
sagrada para meu povo. ... Somos parte da terra e ela é parte de nós. As flores
perfumadas são nossas irmãs. O urso e a águia são nossos irmãos. O topo das
montanhas, o húmus das campinas, o calor do corpo do cavalo, o ser humano,
pertencem todos à mesma família. A água brilhante que se move nos rios e
riachos não é apenas água, mas é o sangue de nossos ancestrais. Se lhes
vendermos nossa terra, lembrem-se de que o ar é precioso para nós, o ar
partilha seu espírito com toda a vida que ampara. Uma coisa sabemos: nosso Deus
é também o seu deus. A terra é preciosa para ele. Esta terra é preciosa para
nós, também é preciosa para vocês. Uma coisa sabemos: existe apenas um Deus.
Nenhum ser humano, vermelho ou branco, pode viver à parte. Afinal, somos
irmãos!" (Joseph Campbell, O Poder do Mito, Editora Palas Athena, 14ª
edição, São Paulo, 1996, pp.34 e 36)
São duas maneiras
diferentes de relacionar-se com a terra. Para Seattle, o chefe indígena, a
terra é dom de Deus e fonte de identidade. Para o Presidente dos Estados Unidos
a terra é apenas uma mercadoria, um objeto de troca. Para Arru, o índio do
Xingu, a terra, o chão, o passado, o céu, tudo faz parte de uma sabedoria universal que nos envolve e da
qual nós somos apenas uma parte. Não somos os donos do mundo; tomamos conta, e
temos que prestar conta. Dizia um descendente dos índios lá do Ceará: “Eu não
sou pessoa. Sou pedaço de pessoa. A pessoa é a comunidade. Vivendo em
comunidade me torno pessoa”. São duas mentalidades distintas: a dos índios e a
nossa. Temos muito a aprender deles. Nos últimos três ou quatro séculos, uma
ciência utilitarista que só busca seu próprio proveito, privou-nos desse
contato com a natureza e, por conseguinte, da sabedoria que nasce do contato
com a mãe terra, Pachamama.
A mensagem do povo negro e do povo camponês para nós.
PAI
NOSSO ECOLÓGICO
Por Edward Neves M.
B. Guimarães
Pai e Mãe de todos
nós,
Espírito-de-Amor,
Comunhão-Infinita, Deus-Criador...
Tu
transcendes todo tempo e lugar, mas nos permites encontrar-te tão próximo:
No olhar límpido e
meigo das crianças,
Na força profética e
contagiante dos sonhos da juventude,
No porto seguro do
seio da mãe,
No aconchego afetuoso
dos braços do pai,
No encontro festivo e
irradiante de familiares e amigos,
Na teimosia do povo
em luta pela vida plena,
No caminhar tateante
e sereno dos idosos.
Na singeleza do
perfume das flores,
No sabor inebriante e
suculento dos frutos,
Na fecundidade das
sementes lançadas na terra,
Na diversidade incontável
das cores e espécies vegetais,
Na vitalidade
escondida das raízes dedicadas a possibilitar a vida,
No mistério da
renovação impulsionada pelas estações do ano.
Na leveza do vôo dos
pássaros,
Na delicadeza das
formas dos insetos,
Na complexidade
crescente dos peixes, répteis e mamíferos,
No desejo ardente
pela vida, encarnada em cada espécie animal.
Na aurora esperançada
do nascente,
No êxtase
interiorizante do pôr do sol,
Na beleza prateada da
noite enluarada,
Na imensidão
desbordante do céu estrelado,
Nas águas cristalinas
da nascente,
No ritmado som da
cachoeira,
Na beleza
incomensurável da criação.
Tu habitas a
interioridade de cada ser.
Interpelas-nos no
rosto desfigurado dos empobrecidos.
E alegras o coração
do ser humano que se dispõe a servir.
Por tudo isso
santificado, por todas as culturas e religiões, sejas o teu nome.
Nele encontramos
fonte de igualdade, dignidade e valor.
Venha a nós, através
de tua graça e de nossas atitudes cotidianas, o teu Reino de amor, justiça e
paz.
Seja feita, entre
nós, a tua vontade de revelar-nos o teu amor incondicional e universal.
Vontade manifestada,
de modo singular, nos gestos e ensinamentos de Jesus de Nazaré, teu Filho
amado:
“Que todos tenham
vida e vida em abundância”, em todo tempo e em cada lugar.
O Pão nosso e a Água
nossa de cada dia nos dai hoje, Pai.
Perdoai nossas
ofensas à mãe natureza e aos nossos irmãos e irmãs,
Que também nós
busquemos perdoar a quem nos ofendeu, como Tu nos perdoas sempre.
Alimentai a nossa
fome de justiça, fraternidade, diálogo, tolerância e paz.
Ensinai-nos a ser
mais ecológicos, conscientes e coerentes.
Ensinai-nos a amar
mais a vida encarnada em cada ser.
Fortalecei nossa
capacidade de sonhar, de lutar por um outro mundo possível e, sobretudo, de ser
livres,
Mas de ser livres
para a pratica da justiça, da simplicidade e do amor.
Não nos deixeis cair
na tentação economicista e consumista da vida,
Livrai-nos do mal do
egoísmo, da indiferença e da exclusão.
Assim seja!
Amém!
Inspiração
bíblica: Profeta Amós, a luta contra a
injustiça social.
Por frei
Gilvander Moreira.
“Quero ver o direito brotar como fonte e correr a
justiça qual riacho que não seca (Am 5,24).” Para iluminar nossa atuação em
sintonia com a CF/2016 temos a profecia do profeta Amós. Provavelmente as composições mais
antigas do livro do profeta Amós (Am 1-6; 7-9) datam de meados do século VIII
a.C., e surgiram como literatura de protesto e resistência. “O acento principal
da mensagem de Amós está na crítica social e no anúncio de um juízo iminente de
Deus na história, bem como na tênue, mas clara exigência do restabelecimento da
justiça como alicerce das relações sociais”[2].
Amós é um profeta precursor, radical,
exemplar e paradigmático. A profecia de Amós é, em certo modo, um divisor de
águas na história da profecia no sentido de que instaura um novo jeito de ser
profeta.
O livro de Amós está organizado em duas
grandes unidades literárias: I) Am 1-6: Palavras e II) Am 7-9: Visões.
Endurecimento ou perdão?
Amós,
em Am 4,4-13[3],
reflete sobre Culto, história,
endurecimento e perdão e nos ajuda a refletir sobre três aspectos
intimamente entrelaçados, fundamentais na ética profética sobre a concepção de
pecado em relação ao culto, à história e aos limites de uma possível
reconciliação com Deus. Diante do “pecou, pecou... endureceu, endureceu...,
haverá castigo ou perdão? A conclusão que se coloca na base e no fim do estudo
de Am 4,4-13 é “Prepare-se Israel, para encontrar-se com seu Deus!” Trata-se de
um anúncio de punição in extremis diante da incapacidade de Israel de
reagir, ou de uma velada promessa de perdão? Ou existe outra interpretação possível?
A declaração final de
Javé ao ser humano que fecha a unidade Am 4,4-13 constitui-se quase como uma
nova revelação do Sinai, que deve por fim ao conflito entre o ser humano e a
divindade, em favor do ser humano. As punições pedagógicas de Javé deixam lugar
a um esclarecimento que abre o coração do ser humano para que veja o conjunto
da sua história e reconheça o processo de endurecimento de seu coração.
Am 4,4-13 evoca,
portanto, uma situação que há certa semelhança com aquela do relato das pragas
do Egito, mas não é obviamente, a recordação daqueles fatos. O discurso de Amós
menciona, talvez, um passado histórico não identificável nem pela forma e nem
pelo conteúdo do texto. As pragas do tempo do Êxodo feriam o Egito, não Israel,
e de uma maneira diferente da relatada em Amós 4. Além do mais, as tais
“pragas” eram no mundo antigo o resultado de situações críticas naturais ou
políticas: a fome era o resultado de toda estiagem prolongada e peste nas
plantações, assim como a morte dos jovens (v. 10) é o efeito de toda ação
militarista, no mundo antigo e moderno.
Às pragas ou punições
descritas se reúnem ainda a menção de Sodoma e Gomorra. O discurso de Amós 4
quer, portanto, dar conta de toda a antiga história de Israel, também de Israel
patriarcal, para aplicá-la a uma nova situação.
Um ponto particular
de relação com o Êxodo é a presença do refrão “mas não retornastes a mim”
que estrutura o texto de Amós 4,4-13. Assim, como no relato das pragas o
endurecimento do coração do Faraó é o motivo estruturante que faz aumentar as
pragas.
No relato do Êxodo,
um primeiro grupo de textos, atribuídos tradicionalmente à fonte Javista (J),
apresenta de fato o faraó como responsável pelo seu próprio endurecimento, como
havia predito Deus.[4]
O outro grupo de textos (os chamados “heloístas”) atribuem a obstinação ora ao
faraó (Ex 9,35) ora a Deus mesmo (Ex 10,20.27). O relato sacerdotal (P) o
atribui habitualmente a Javé.
Esta diversidade de
concepção no atribuir a responsabilidade pelo pecado aparece também em outros
textos fora do Êxodo, com diferente vocabulário e problemática. Em 2 Sm 24,1,
Javé é o responsável direto pelo pecado de Davi devido ao recenseamento;
Segundo 1 Cr 21,1 a responsabilidade é, ao invés, de Satanás. O verbo hebraico
usado é o mesmo: swt (= incitar, seduzir).
Tanto em Êxodo como
em Am 4,4-13 se coloca um grande problema exegético e teológico: É possível e
legítimo que Deus continue a aplicar punições que levam a um endurecimento
sempre crescente? Não se comporta Javé assim como o pai que exagera, com sua
punição, o seu filho e o força a se rebelar (cf. Ef 6,4)?
É necessário
reconhecer que por trás dos textos de endurecimento há o mistério da liberdade
humana e “onipotência” divina: amor infinito de Deus. Em relação a Deus, há uma
consciência profética que as obras e a Palavra de Deus não podem permanecer sem
efeito (cf. Is 55,11), mas é sempre eficaz (diferente de eficiente). Se não
produzem imediatamente a conversão, devem amadurecer o sujeito para um novo
castigo, o que, em última análise, não exclui a possibilidade de conversão.
Em relação ao
“castigado” (?), há consciência do fato que a exortação à conversão, quando não
ouvida, se torna uma condenação. Isto é, nada mais, nada menos, que a dinâmica
das relações interpessoais. Quando duas pessoas se encontram e começam a se
conhecer, a relação pode progredir, parar ou eventualmente morrer. Mas enquanto
existe, cada ação e reação levam ao crescimento ou diminuição daquela relação.
Todo ato (ou omissão) nas relações interpessoais soma e cultiva a relação ou a
empobrece descultivando-a. Nenhum ato fica neutro.
De modo semelhante,
na relação do ser humano com Deus, cada ação que não melhora a relação, a
piora, mas jamais a deixa igual. Se não se aceita um convite à conversão, como
uma oferta de amizade, o recusa. E esta recusa tornará mais difícil que
aconteça um novo convite.[5]
Além disso, aceitar uma nova oferta de amizade, implicaria em reconhecer o erro
precedente, o que pode exigir um grau maior de humildade.
Em relação aos
profetas e profetisas, este processo se explica na medida em que os/as “intérpretes de Javé” sabem do paradoxo da
missão deles. Os profetas e profetisas sabem que a palavra profética conduz às
vezes à conversão de alguns poucos, mas na maioria das vezes leva ao
endurecimento de muitos. Os oráculos de condenação no futuro, pronunciados com
absoluta segurança, refletem a consciência dos profetas de que a advertência
seria inútil.
A consciência que os
profetas e profetisas têm das três realidades descritas acima se apresenta, de
modo muito claro, em Is 6,9-11: “Então disse ele: Vai, e dize a este povo:
Ouvis, de fato, e não entendeis, e vedes, em verdade, mas não percebeis.
Engorda o coração deste povo, e faze-lhe pesados os ouvidos, e fecha-lhe os
olhos; para que ele não veja com os seus olhos, e não ouça com os seus ouvidos,
nem entenda com o seu coração, nem se converta e seja sarado. Então disse eu:
Até quando Senhor? E respondeu: Até que sejam desoladas as cidades e fiquem sem
habitantes, e as casas sem moradores, e a terra seja de todo assolada”.
Amós,
conspirador e subversivo?
Em Am 7,14 Amós se recusa a ser considerado
profeta segundo a ótica de um sacerdote vassalo do poder político. Amós se
define como “vaqueiro” e cultivador de sicômoros. Em Am 7,15 Amós parece ser um
pastor que cuida do rebanho miúdo (ovelhas e cabras), mas não um vaqueiro. Em
Am 7,10-17 não há a intenção primeira de descrever pessoalmente a profissão do
profeta, mas enfatiza o fato de que Amós foi retirado da sua vida precedente,
do seu mundo, das preocupações domésticas para proclamar a Palavra de Deus.
Am 7,10-17 quer legitimar o conteúdo da
profecia de Amós e ajudar a comunidade a superar todos os preconceitos que
possam existir contra o profeta por causa da sua origem humilde, como se fosse
um “nordestino”, um sem-terra, um menor de rua, um portador do vírus HIV etc. O
relato de Am 7,10-17 quer nos dizer que a profecia vem da margem, da periferia,
do meio dos marginalizados e excluídos. São estes, por excelência, os
“intérpretes de Javé”.
Na Bíblia esse “gênero” é utilizado para
descrever de maneira diferente as vocações de Moisés, Gedeão, Eliseu, Saul. Mas
uma estreita relação se encontra em 2Sam 7,8. Natã transmite a Davi a mensagem
de Javé: “Eu te tirei das pastagens, pastoreavas as ovelhas”. O elemento
que caracteriza estas situações não é o fato do convocado pertencer a um grupo,
mas, ao contrário, o fato de ele ser um “de fora”, um excluído. Assim Am 7,14
quer exprimir a distância de Amós das formas institucionais da profecia e dos
profetas “da corte”.
O relato do confronto entre o sacerdote
Amasias e Amós (com a implicada presença do rei) oferece a justificação da
decisão de Javé. O povo não somente não ouviu as diversas palavras transmitidas
por Amós, mas decidiu silenciá-lo, expulsando-o para sua terra. Já não há nada
mais a esperar senão o fim definitivo, e diante disso resta somente a
lamentação. O profeta anuncia a necessidade de conversão; pede perdão a Deus
pelo povo; pede para parar a punição. O rei (e a monarquia) e o Templo expulsam
o profeta, silenciando-o. O povo sofrerá muito mais. Ai de um povo que não
escuta seus profetas e profetisas, e pior ainda, que os persegue, expulsa e os
silencia.
Em Am 7,10-17 revela a interpretação que
setores da classe dirigente tinham do conteúdo da profecia de Amós. Aos olhos
da elite, o profeta é um “conspirador”, interessado em “golpe de estado”. Para
Javé e o povo empobrecido Amós é um profeta. Para a elite ele é um
“subversivo”, um agitador.
Vacas
de Basã são mulheres ou homens opressores?
Em Am 4,1-3 temos a seguinte
profecia: “OUVI esta palavra, vacas de Basã, que estais sobre monte
de Samaria, que oprimis os fracos, que esmagais os excluídos, que dizeis aos
vossos senhores: “Trazei-nos o que beber!”. O
Senhor Javé jurou, pela sua santidade: sim, dias virão sobre vós, em que
vos carregarão com ganchos e a vossos descendentes com arpões (de pesca). E
saireis pelas brechas que cada uma tem diante de si, e sereis empurradas em
direção ao Hermon, oráculo de Javé”.
Segundo uma interpretação mais tradicional,
Am 4,1-3 seria uma investida do profeta Amós contra as mulheres ricas de
Samaria, designadas como “vacas de Basã”, mulheres de personagens importantes,
que ocupam o tempo em luxuosos banquetes, e ao mesmo tempo são responsáveis
pela opressão e exploração dos empobrecidos. A imagem de um banquete só de
madames é, no mínimo, algo curioso em uma sociedade reconhecidamente machista e
patriarcal, assim como atribuir às mulheres a responsabilidade pela opressão e
pela injustiça.
A região de Basã, como o Líbano e o Carmelo,
é famosa pela fertilidade do solo. A tristeza causada pela punição divina se
manifesta na debilidade do Líbano, do Basã, do Carmelo e do Saron (Is 33,9). Ao
contrário, a generosidade divina se expressa no nutrimento do povo com a “manteiga
das ovelhas e dos touros de Basã” (Dt 32,14). O anúncio messiânico, com o
qual se conclui o livro de Miquéias, inclui a promessa de um pasto abundante
“em Basã e em Galaad, como nos dias antigos (Miq 7,14). No ambiente de louvor
do Sl 68, “Basã” são os montes (v. 16) que testemunham, junto com o Sinai e a
natureza, a grandeza das obras de Javé. Logo integrar “Basã” numa imagem
depreciativa é algo estranho ao uso corrente de “Basã” na Bíblia.
De “vaca de Basã” não se fala em nenhum outro
lugar no Primeiro Testamento da Bíblia. As montanhas de Basã são famosas pelos
seus touros, cabritos e carneiros (mas não vacas; cf. Dt 32,14). Por isso os
touros de Basã podem ser imagens dos inimigos poderosos (cf. Sl 22,13 e,
sobretudo, Ez 39,18).
A expressão “vacas de Basã” adquire um
sentido mais verdadeiro dentro da cultura bíblica se o termo “vacas” não for
utilizado em relação a mulheres, mas a homens, aqueles que quiseram ser como os
touros de Basã, pela força deles, autoridade e dignidade se tornaram “vacas”,
com as conotações depreciativas que as formas femininas podem ter no Primeiro
Testamento.
Neste contexto, os “seus senhores” (Am 4,1b,
com sufixo masculino) se referem provavelmente não aos “maridos”, como propõem
algumas traduções, um uso pelo qual não se tem nenhuma outra ocorrência, mas
refere-se a uma pessoa de mais autoridade (política). “Senhor”, além do
freqüente uso como título divino, se refere a Acab (2 Rs 10,2.3.6), ao Faraó
(Gn 40,1), ao Rei da Babilônia (Jer 27,4), e em casos isolados a várias
pessoas: “outros senhores...” (Is 26,13).
A interpretação que propomos de “vacas de
basã”, acima, está em sintonia com a hipótese de que “vacas de basã” seja
também uma alusão às estátuas cultuadas. Logo, em Am 4,1-3 está uma forte
denúncia do poder opressor de um “senhor” com poder político de dominação
respaldado por uma legitimação religiosa.
Profeta
Amós: “Restabeleçam a justiça!”
A profecia de Amós é “uma crítica veemente e
contundente aos agentes e mecanismos de exploração e opressão dos camponeses
empobrecidos sob o governo expansionista de Jeroboão II e sob as condições de
um incremento de relações de empréstimos e dívidas entre pessoas do próprio
povo no século VIII a.C.”[6].
Em outros termos, o profeta Amós não apenas critica pessoas corruptas,
mas questiona também de modo muito forte o sistema gerador de pessoas
corruptas. Não somente as mazelas pessoais estão na mira do “camponês” que
entrou para a história como um grande profeta. Amós tem consciência de que o
problema fundamental da injustiça reinante na sociedade não é fruto somente de
fraquezas pessoais, mas tem como causa matriz estruturas
socio-econômico-político-culturais e religiosas que engrenam uma máquina de
moer pessoas. Na mira de Amós também estão relações comerciais que causam
endividamento, aprisionam pessoas e escravizam, retirando a liberdade de ser
pessoa humana.
Além das denúncias sociais, a profecia de
Amós destaca-se com o anúncio de um juízo iminente de Javé na história do seu
povo. Amós inverte as expectativas quanto a um tão sonhado “dia de Javé” (Am
5,18-20). Este não será mais uma “ideologia de segurança político-religiosa”
pelos fortes de Israel. A perversão da justiça para os pobres, a opressão dos
empobrecidos e a exploração das pessoas mais enfraquecidas clamam pelo juízo
divino. O “dia de Javé” será um “dia mau” sobre os fortes de Israel, sobre o
estado tributário, suas instituições e seus agentes.[7]
Amós
critica com coragem a “corrida armamentista” de Israel. Ele anuncia que serão
desmanteladas as forças militares dos estados vizinhos (Am 1,5.8b.14b; 2,2b) e
sobretudo de Israel (Am 2,13-16; 3,11b; 5,2-3; 6,13-14).
O
profeta Amós denuncia duramente também as instituições religiosas que estão
justificando o processo de extorsão de tributos da população camponesa (Am
4,4-5; 5,21- 23). Pelo conluio com a
opressão econômica a religião oficial também será dizimada (templos) e seus
agentes (Am 5,27; 7,9; 9,1). “Odeiem o
mal e amem o bem: restabeleçam no portão a justiça!” (Am 5,15). “Aqui está
a exigência positiva por excelência na profecia de Amós. Os israelitas são
conclamados a reconstruir as relações sociais baseadas na justiça e no direito
(mishpat / sedaqah). Só assim será possível escapar do juízo vindouro
anunciado. O futuro de um “resto” passa pela prática de Justiça”[8].
O juízo abre caminho para a justiça. A presença dos profetas e profetizas no
meio do povo deixa Javé livre de qualquer responsabilidade diante da punição
que o povo merece.[9]
Outras pistas bíblicas.
Na Bíblia
há vários relatos que exortam ao cuidado com as águas. Por exemplo: a) É
preciso organizar o povo – descentralização do poder e das decisões – para que
as pessoas sejam atendidas em suas necessidades, nos seus direitos e cuidem do
ambiente em que vivem (Êxodo 18,13-27); b) Devem manter a limpeza no
acampamento, manter as fezes cobertas para evitar sujeiras e doenças (Dt
23,13-14); c) cuidar e tratar da água a ser consumida. As fontes, poços e
cisternas devem ser mantidos puros (Lev 11,36; Ex 15,23-25; 2 Rs 2,19-22); d)
cuidar das árvores e bosques, principalmente das árvores frutíferas (Lev 19,25;
Dt 20,19; Jz 4,4-5).
Todas
estas atividades devem estar sempre envolvidas com o cuidado para com os mais
pobres (Deuteronômio 23, 25; 24, 14-15.19-22, conforme Tiago 5,1-6). Assim como
não se deve explorar o trabalhador, que tem o direito ao descanso, também a
terra, a cada sete anos deve ter o descanso (Levítico 25, 2-7).
Belo
Horizonte, MG, Brasil, 28/04/2016.
[1] Padre da Ordem dos Carmelitas, bacharel e licenciado
em Filosofia pela UFPR, bacharel em Teologia, mestre em Exegese Bíblica,
doutorando em Educação na FAE/UFMG, assessor de CEBs, CPT, CEBI e SAB; e-mail: gilvanderufmg@gmail.com – www.freigilvander.blogspot.com.br – www.gilvander.org.br - face: Gilvander
Moreira
[2] HAROLDO REIMER, “Amós – profeta de
juízo e justiça”, em Os livros proféticos: a voz dos profetas e suas
releituras, RIBLA 35-36, Ed. Vozes, Petrópolis e Ed. Sinodal, São Leopoldo,
2000, p. 171.
[3] Sugiro que antes de você continuar a
leitura do texto, leia na Bíblia Am 4,4-13. Assim você entenderá melhor a
reflexão que se segue.
[4] Cf. Ex 7,14.22; 8,11.15.28; 9,7.34.
[5] Gato escaldado com água quente tem
medo até de água fria, diz a sabedoria popular.
[6] HAROLDO REIMER, “Amós – profeta de
juízo e justiça”, em Os livros proféticos: a voz dos profetas e suas
releituras, RIBLA 35-36, Ed. Vozes, Petrópolis e Ed. Sinodal, São Leopoldo,
2000, p. 188.
[7] A fé em um Deus que é infinito amor
não coaduna com a existência de inferno como um lugar de punição. No entanto,
se não há algum tipo de inferno, os opressores ficarão sem nenhuma punição?
[8] HAROLDO REIMER, “Amós – profeta de
juízo e justiça”, em Os livros proféticos: a voz dos profetas e suas
releituras, RIBLA 35-36, Ed. Vozes, Petrópolis e Ed. Sinodal, São Leopoldo,
2000, p. 189.
[9] Cf.
Artigo de frei Gilvander Moreira “A Bíblia respira profecia: se
calarem a voz dos profetas...”, Em Revista
ESTUDOS BÍBLICOS, Vol. 29, n. 113, Petrópolis, Ed. Vozes, jan/mar 2012, p. 37-56.
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