Tradução da Bíblia Hebraica para o Grego: a LXX - Por frei Gilvander Moreira[1]
A tradução da Bíblia Hebraica para o Grego, a chamada
Tradução da LXX, foi iniciada no III
século antes da Era Cristã (a.E.C.) e foi a primeira que aconteceu do texto bíblico
hebraico e aramaico do Primeiro Testamento. Esta tradução é identificada por
diversos nomes referindo-se ao mesmo texto: a LXX; a Septuaginta; a Setenta; a
tradução Alexandrina, cidade do Egito onde teria sido feita esta tradução.
A Tradução da LXX recebeu o seu nome da Pseudo Carta
de Aristea, do II século da Era Cristã (E.C.), que narra na forma de uma Carta
como teria sido a origem da tradução grega da Bíblia hebraica. Ele afirma que o
rei do Egito Ptolomeu Filadelfo (285-247 da a.E.C.) desejava ter na famosa
Biblioteca de Alexandria um exemplar da Lei Mosaica. Para realizar este seu
desejo teria convidado 72 sábios judeus de Jerusalém para Alexandria, que em 72
dias teriam terminado a incumbência dada pelo rei para traduzir o Primeiro
Testamento da Bíblia judaico-cristã. Se esta Carta é verdadeira ou não, não
sabemos, mas foi no III século a.E.C., no tempo do rei Filadelfo, que
iniciou-se a tradução do Primeiro Testamento da Bíblia Hebraica para o grego.
De fato, em Alexandria havia uma colônia numerosa de
judeus da diáspora, que distantes de sua terra de origem, filhos e netos pouco
a pouco não falavam e nem liam mais o hebraico. A tradução para o grego era uma
forma de possibilitar o acesso aos textos sagrados aos descendentes judeus. O
término da tradução da LXX provavelmente se deu por volta do ano 100 a.E.C.,
pois o autor do livro hebraico Qohelet, em
grego Eclesiastes, afirma ter chegado ao Egito no tempo de Ptolomeu Evergete II
(170-116), por volta do ano 132, e que, depois de um tempo, teria escrito o
livro Qohelet/Eclesiastes, em que o autor deixa a entender que a tradução grega
do Primeiro Testamento da Bíblia Hebraica já era conhecida nesta época.
O valor crítico e literário da tradução da LXX
estaria no fato de ter sido feita por um grande número de estudiosos que tinham
um bom conhecimento das duas línguas – o hebraico e o grego - e com habilidades
para esse empreendimento, embora nem todas as partes da tradução tenham o mesmo
valor crítico e literário. Quanto ao valor crítico da tradução, alguns livros
trazem bem o sentido original do texto hebraico, outros, menos. Há indícios de
que alguns textos foram parafraseados, outros ampliados na parte doutrinal (MARTINI; BONATI, 1990, p. 187). Nenhum
tradutor é neutro.
A importância histórica e ética da tradução da LXX
está no fato de ter sido o texto oficial por muito tempo para os judeus
helenistas ou vindos da cultura helênica. A partir do Egito esta Bíblia na
língua grega se espalhou rapidamente por toda a bacia do Mediterrâneo oriental,
de modo especial onde havia comunidades judaicas de língua grega. No seu
conjunto a LXX tem o seu merecimento, pois os seus tradutores não tinham os
recursos necessários de filologia e de exemplos anteriores; eles foram os
pioneiros.
A
versão dos Setenta foi utilizada nos primeiros séculos da Igreja como
verdadeiro texto bíblico. No entanto, nem todos os livros que contém acabaram
sendo admitidos no cânon da Igreja Católica. Cinco deles foram rejeitados como
apócrifos, não inspirados: 1Esdras (mas foi admitido 2Esdras, que contém nossos
livros de Esdras e Neemias), 3 e 4 Macabeus, Odes e Salmos de Salomão (TOSAUS
ABADIA, 2000, p. 54).
A maioria das citações da Bíblia cristã
no Segundo Testamento é tomada da versão grega e não do original hebraico. Por
exemplo, nos evangelhos de Mateus e Lucas se diz que Jesus nasceu de Maria, uma
mulher virgem (Mt 1,23; Lc 1,27). Entretanto, segundo vários evangelhos e
textos do Novo Testamento (Mc 6,3; Mt 12,46-49; 13,55-56; Jo 2,12; 7.3.5.10;
Ato 1,14; Gal 1,19; I Cor 9,5 e o apócrifo História de José o carpinteiro II,
3, se
diz que Jesus teve irmãos e irmãs. Chegam a dizer
que os irmãos e irmãs de Jesus seriam seis: Judas, José, Tiago, Simão, Lísia e
Lídia.
Qual o sentido
da “virgindade” de Maria? Qual a etimologia da palavra virgem? Ouvimos falar em
"mulher virgem", "mata virgem", "terra virgem".
Em Lc 1:27 diz: "uma virgem
desposada com um varão cujo nome era José, da casa de Davi; e o nome da virgem
era Maria". Em Mt 1,23 diz:
"Eis que a virgem conceberá e
dará à luz um filho, e ele será chamado pelo nome de EMANUEL".
Para
ajudar a José (e principalmente a/s comunidade/s de Mateus) a entender e
assumir uma criança que nasce em situação fora do previsto pela Lei de Moisés
(de fora e antes do casamento), e a reconhecer que ela vem de Deus e de seu Espírito (Mt 1,18-25), a uma certa altura no
evangelho de Mateus aparece uma citação do profeta Isaías, no contexto da fala
do anjo a José no meio de um sonho. Confira em Mt 1,22-23: “Tudo isso aconteceu para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo
profeta”. E depois vem a citação de Is 7,14.
Notamos
que entre o texto de Isaías e a citação no evangelho de Mateus há algumas
diferenças. O texto de Isaías diz o seguinte: “Eis que a jovem (hayalemah, em hebraico) concebeu e dará à luz um filho, e o
chamará com o nome de Emanuel” (Is 7,14). O texto de Mt prescreve: “Eis que a virgem (parthenos, em
grego) conceberá, e dará à luz um filho, e o chamarão com o nome Emanuel”
(Mt 1,23). Mateus usa a versão da LXX que usa a palavra parthenos, que significa virgem, mas no hebraico, em Is 7,14, está
a palavra hayalemah, que significa
jovem. Uma jovem conceber e dar à luz uma criança está de acordo com as leis da
natureza, mas uma virgem conceber, não. Como explicar a diferença?
Por
enquanto, duas diferenças chamam a nossa atenção. Em primeiro lugar, o texto de
Isaías fala de uma gravidez que já está acontecendo (“a jovem concebeu”);
ou seja, só pode estar falando de uma jovem que vivia no tempo em que Isaías
pronunciou este oráculo, mais de 700 anos antes de Jesus, no contexto da
história de Judá sob domínio do rei Acaz e sob a ameaça do império assírio.
Essa criança que está para nascer é sinal de Javé para o rei, por ela e seu
nome a profecia deixa claro o lugar de Javé e sua distância dos projetos do rei
e sua corte (leia o conjunto de Is 7,1-17).
Em
segundo lugar, a citação desse texto no evangelho das comunidades de Mateus tem
outro objetivo. A criança de que se está falando é Jesus, que vai nascer muito
tempo depois do tempo de Isaías. Por isso, a gravidez aparece anunciada,
apontada para o futuro (“a virgem conceberá”).
Em outros termos, as comunidades de Mateus releem com liberdade a profecia de
Isaías e a projeta no futuro, ao invés de copiá-la simplesmente mantendo o
tempo presente. Por isso, diz "conceberá"; e não diz
"concebeu". Foi a meditação, a experiência de fé da comunidade que
tornou possível fazer a junção entre a história de uma criança do tempo de
Isaías, que foi sinal de Javé para o povo, e a história de Jesus, com certeza
um grande sinal de Deus para as comunidades de fé. Também dizer que Jesus
Cristo é filho de uma “virgem” é um jeito de dizer que Jesus Cristo é divino,
filho Deus, messias, salvador. Não é um simples homem. Na Bíblia há várias
passagens que mostram mulheres virgens e estéreis dando à luz. Por
exemplo, Sara, a esposa de Abraão, concebe Isaac na sua velhice e esterilidade
(Gn 24,36). Isabel, prima de Maria, concebe João, o Batista, na sua velhice
estéril (Lc 1,7). Isso como um jeito bíblico de dizer que “para Deus nada é impossível” (Lc 1,37),
ou seja, nas entranhas da história e do humano, o divino pode brilhar de forma
inesperada.
A Tradução da LXX é de grande importância na crítica textual, já que ela é a tradução mais antiga e, junto com os manuscritos do Mar Morto, nos proporciona acesso ao tipo de texto hebraico antigo que se diferenciava do texto proto-massorético. O texto grego da LXX foi retomado pelos autores do Segundo Testamento cristão em cerca de 300 citações do Primeiro Testamento, de um total de 350. O Segundo Testamento cristão da Bíblia traz também as citações da LXX quando o sentido do texto é diverso do texto hebraico. A Igreja, na verdade, considerou como seu texto oficial para o Primeiro Testamento a tradução da LXX, excluindo apenas a tradução do livro de Daniel, e em seu lugar inseriu a tradução de Daniel do Teodozião. A Bíblia grega era usada pelos padres gregos nas homilias, nos comentários, na catequese e nas assembleias litúrgicas.
Referências
MARTINI
C. M; BONATI D. P. Il Messaggio della
Salvezza, v.1. Torino: Elle Di Ci, 1990, p.
187.
TOSAUS ABADIA, J. P. A Bíblia como literatura. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 54.
16/01/2024
Obs.: As
videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 – Um Tom de resistência - Combatendo o
fundamentalismo cristão na política
2 - Bíblia:
privatizada ou lida de forma crítica libertadora? Por frei Gilvander, no
Palavra Ética
3
- Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri,
Brumadinho/MG. Vídeo 5
4 - Agir ético
na Carta aos Efésios: Mês da Bíblia de 2023. Por frei Gilvander (Cinco vídeos
reunidos)
5 - Andar no
amor na Casa Comum: Carta aos Efésios segundo a biblista Elsa Tamez e CEBI-MG -
Set/2022
6 - Toda a
Criação respira Deus: Carta aos Efésios segundo o biblista NÉSTOR MIGUEZ e
CEBI-MG, set 2022
7 - Chaves de
leitura da Carta aos Efésios, segundo o biblista PEDRO LIMA VASCONCELOS e CEBI/MG
–Set./22
8 - Estudo:
Carta aos Efésios. Professor Francisco Orofino
9 - Carta aos
Efésios: Agir ético faz a diferença! - Por frei Gilvander - Mês da Bíblia/2023
-02/07/2023
10 - Bíblia,
Ética e Cidadania, com Frei Gilvander para CEBI Sudeste
11 - Contexto
para o estudo do Livro de Josué - Mês da Bíblia 2022 - Por frei Gilvander -
30/8/2022
12 - CEBI: 43
anos de história! Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos lendo Bíblia com Opção
pelos Pobres
[1] Frei e padre da
Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel
em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese
Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT,
CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e
Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
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