Dom Pedro Casaldáliga e o Quilombo Campo Grande do MST em MG. Por Gilvander Moreira[1]
Diante de Dom Pedro Casaldáliga,
precisamos “tirar as sandálias”, pois estamos diante de alguém sagrado, místico
no verdadeiro sentido, porque se tornou profeta, bom pastor, além de poeta. Marcou-me
muito as 12 vezes que tive a alegria e a responsabilidade de estar com “o bispo
vermelho”. Conheci Dom Pedro Casaldáliga em 1985, enquanto ele dava uma
palestra no Studium Teológico, em Curitiba, PR. Fiquei impressionado com aquele
homem franzino, mas que com língua afiada, dedo em riste, olhar vibrante,
utopia da terra sem males no coração, profetizava dizendo: “Se eu tiver que
escolher entre o amor e a justiça, ficarei com a luta pela justiça, pois em uma
sociedade estruturalmente injusta não basta amar no sentido de solidariedade”.
Marcou-me muito a segunda vez que estive
com Dom Pedro Casaldáliga, no Memorial da América Latina, em São Paulo, SP. Dom
Pedro, com amor infinito por todos os povos latino-americanos, bradava: “Temos
que construir a Pátria Mãe, a América AfroLatÍndia, pois nossa América não é
apenas latina, é principalmente indígena e afrodescendente. Somos povos irmãos.
Não podemos ficar olhando para Europa e Estados Unidos e de costas para os
povos da Pátria Grande, nossa América AfroLatÍndia. Somos povos irmãos, porque
fomos vítimas de genocídio indígena e de escravização pelos opressores
europeus. Que maravilha o esplendor cultural existente na nossa Pátria Grande e
Mãe.”
Em 1992, Dom Pedro, de surpresa, chegou
a São Paulo, na celebração dos 60 anos de Frei Carlos Mesters. Chegou
carregando um grande pote e, retirando de dentro do pote uma Bíblia da edição
Pastoral, dizia: “Frei Carlos Mesters é presença do Deus da vida no nosso meio que
retira do baú, do pote, coisas velhas que são coisas da vida e da caminhada.
Carlos Mesters democratiza o acesso aos textos bíblicos ao nos ensinar a fazer
leitura bíblica de forma comunitária, ecumênica, transformadora e militante.
Quem não leu ainda deve ler todos os livrinhos do frei Carlos Mesters. Seus
textos, frei Carlos, nos ajudam na caminhada de enfrentamento ao latifúndio, na
Opção pelos Pobres, na luta pela terra e pelos direitos dos povos indígenas.”
Inesquecível também o protagonismo de
Dom Pedro Casaldáliga no 10º Intereclesial das CEBs, em Ilhéus, na Bahia, em
julho de 2.000. Irradiando espiritualidade, ecumênica e macroecumênica, Dom
Pedro bradava profeticamente: “Nosso sonho, nossa utopia, é a terra sem males.
Esse é o sonho de Deus, pois a terra é de Deus, pertence a Deus. Malditas todas
as cercas ...”
Em 2015, a convite do bispo Dom Adriano
Ciocca, tive a alegria de passar uma semana na Prelazia de São Félix do
Araguaia, MT, assessorando um retiro da equipe de pastoral da prelazia, equipe
composta por Dom Adriano, padres, freis, freiras e leigos/as da caminhada. Vi
que a Prelazia de São Félix, sob a guia de Dom Pedro Casaldáliga, se tornou uma
das locomotivas da profecia na Igreja dos Pobres não apenas no Brasil, mas na
América AfroLatÍndia e em muitas regiões do mundo. Na Prelazia de São Félix,
meu coração se alegrou ao ouvir: “Se não fosse a presença e o apoio firme de
dom Pedro Casaldáliga, das irmãzinhas de Jesus, e de todos/as os/as agentes de
pastoral da Prelazia de São Félix, os povos indígenas Tapirapé, Xavante, Carajá
e outros não teriam reconquistado parte dos seus territórios.” Foi na Prelazia
de São Félix que iniciou a Campanha Permanente de combate ao Trabalho Escravo,
uma das atividades da CPT (Comissão Pastoral da Terra). Um missionário me
informou: “Após as primeiras chuvas e enchentes, todo ano aqui na região do rio
Araguaia, acontece uma grande mortandade de peixes, porque a enorme quantidade
de agrotóxicos pulverizados nas lavouras vai para os cursos d’água. Morre muito
peixe e o número de pessoas doentes cresce assustadoramente.”
Em Ribeirão Cascalheira, na Prelazia de
São Félix do Araguaia, MT, visitei o Santuário dos Mártires da Caminhada.
Emocionante caminhar onde o padre João Bosco Burnier, missionário jesuíta, foi
martirizado de 11 para 12 de outubro de 1976. Ouvi que Dom Pedro Casaldáliga,
ameaçado de morte na Prelazia, e o padre João Bosco Burnier, após celebrarem
com o povo os festejos de N. Sra. Aparecida, incomodados pelos gritos de duas
mulheres presas – Margarida e Santana – foram interceder por elas na
delegacia-cadeia de Ribeirão Cascalheira. As mulheres estavam “impotentes e sob
torturas: um dia sem comer e beber, de joelhos, braços abertos, agulhas na
garganta, sob as unhas; essa repressão desumana”, relata dom Pedro no livrinho
“Martírio do Padre João Bosco Penido Burnier”, da Ed. Loyola.
Aos
92 anos, com 52 anos sendo missionário profeta no Brasil, Dom Pedro Casaldáliga
fez sua páscoa no dia 08 de agosto de 2020 e agora vive em plenitude e em nós
na luta sempre, pela construção do reino de Deus a partir do aqui e do agora. Na
Missa das Exéquias, celebrada em São Félix do Araguaia, no dia 12 de agosto,
Dom Adriano Ciocca, atual bispo de São Felix do Araguaia, afirmou que “o sonho
de Deus foi o sonho de Pedro também, o sonho do Reino”, porque “ele queria
justiça, queria fartura, queria alegria, vida plena para todas e para todos.” E
continuou Dom Adriano: “Ele sonhou, e sonhou com os pés no chão, porque não
ficou só no sonho, mas ele procurou viver e lutar para que este sonho se
realizasse.” E Dom Adriano lembrou a opção radical de Dom Pedro Casaldáliga
pelo seguimento a Jesus de Nazaré, colocando-se ao lado dos oprimidos,
injustiçados, marginalizados: “se fez peão com os peões, se fez índio com os
índios, se fez solidário com quem Deus se solidarizou, os abandonados, os
excluídos, os escravos.” O corpo de Dom Pedro Casaldáliga descansa no cemitério
dos Carajás, onde eram sepultados os sem nome. Seu corpo lá está, debaixo da
cruz, entre um peão e de uma mulher prostituída. Com os pobres, os preferidos
de Deus, na beira do rio Araguaia, com paz inquieta, foi plantado o corpo de
Pedro, semente de vida nova, de ressurreição! Que tenhamos a graça, a coragem e
a sabedoria para honrarmos o imenso legado espiritual e profético que Dom Pedro
nos deixou.
Dom
Pedro Casaldáliga, com paz inquieta, esteve vivo misticamente com todas as
pessoas do Quilombo Campo Grande, do MST, no sul de Minas Gerais, e com
todos/as que se somaram na resistência durante três dias e três noites.
Certamente, Dom Pedro, com ira santa e profética, assina embaixo da denúncia
que se segue, abaixo.
Aconteceu uma tremenda injustiça,
barbárie no Estado de MG dias 12, 13 e 14 de agosto de 2020. No Quilombo Campo
Grande, do MST, em Campo do Meio, no sul de MG, há 22 anos, 453 famílias Sem
Terra vivem dignamente dando função social para megalatifúndio das terras da
ex-Usina Ariadnópolis, de 4.900 hectares, que estava totalmente abandonado e
ocioso, após a Usina falir deixando mais de 400 milhões de reais de dívida
trabalhista. Enquanto o irmão sol voltava a brilhar dia 12 de agosto de 2020,
vimos na cidade de Campo do Meio, um cortejo de morte com dezenas e dezenas de
viaturas, ambulâncias, caminhões do corpo de bombeiro, um aparato de guerra, a
PM de MG, a mando do governador Romeu Zema (do Novo), com decisão liminar de
reintegração de posse do TJMG, com mais de 200 policiais de vários batalhões,
com caveirões, cachorros, helicóptero e pesado arsenal de armas, com tropa de
choque, fazer despejo de várias famílias no Quilombo Campo Grande, do MST. Os
Sem Terra do MST, com a militância de uma vasta rede de apoio, resistiram três
dias e três noites, de 12 a 14/8/2020. Policiais atearam fogo em várias partes
do Quilombo e no final bombardearam o Quilombo com chuva de bombas de gás
lacrimogêneo, com voos rasantes do helicóptero da PM, com policiais apontando
metralhadoras para o povo que resistia bravamente. Asfixiando os Sem Terra com
gás lacrimogêneo e terror, a PM expulsou crianças e professoras e destruiu a
Escola Popular Eduardo Galeano, destruiu setes casas e não ofereceu alternativa
digna de moradia previamente.
Uma das primeiras barreiras de
resistência que a tropa de choque encontrou foi um grupo de crianças Sem
Terrinha, do MST, que, de cabeça erguida e muita coragem, segurando cartazes, bloqueavam
a estrada por onde a tropa de choque deveria passar para fazer o infame
despejo. Uma das cenas mais emocionantes e eloquentes: crianças Sem Terrinha,
na luta, resistindo à investida de um imenso aparato bélico. Diziam: “Não
derrubem nossa escola!” “Não derrubem nossas casas!”
Em meio à pandemia, esse despejo é
genocida. A Liminar de reintegração de posse cumprida com repressão e violência
policial é injusta, inconstitucional, cruel e uma ação genocida do Governador
Romeu Zema. A decisão do TJMG, que expediu a liminar de reintegração e se negou
a cassá-la, mesmo diante de "mil" argumentos da Defensoria Pública,
do Ministério Público e de Advogados Populares, é inconstitucional, porque
viola e pisoteia no principal princípio e básico da Constituição de 1988:
RESPEITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. Além do terror espalhado, da Escola
Popular Eduardo Galeano, de várias casas, sonhos e direitos destruídos, quantas
pessoas terão contraído ou disseminado o coronavírus durante os três dias de
megaoperação de despejo durante a pandemia, violando todas as regras sanitárias
recomendadas pela OMS e por médicos infectologistas?
A Ocupação do megalatifúndio das terras
da ex-usina Ariadnópolis, em Campo do Meio, aconteceu em 1998, 22 anos atrás,
como fruto do combate ao trabalho escravo no sul de MG e como fruto dos
mártires de Eldorado dos Carajás. Todos os presidentes do Brasil, de 1998 até
hoje poderiam e deveriam ter desapropriado o latifúndio que estava abandonado
sem cumprir a função social, mas nenhum presidente nos últimos 22 anos assentou
as 450 famílias Sem Terra do MST que já sofreram seis cruéis despejos, mas não
arredam o pé da terra. “Essa terra é nossa”, bradam heroicamente os Sem Terra
do MST. O poder judiciário também, em 22 anos, se julgasse conforme os
princípios da Constituição do respeito à dignidade humana, função social da
propriedade e direito à terra poderia e deveria ter decidido, justamente, a
favor dos Sem Terra do Quilombo Campo Grande, mas até hoje tem decidido para
beneficiar empresários especuladores. Indignados com mais essa imensa
sexta-feira da paixão promovida pelo Estado em MG, reafirmamos que não há
despejo apropriado e nem oportuno. Todo despejo é maldito, cruel, desumano,
execrável e desintegrador de sonhos e de direitos. Mas a história demonstra que
a força mística e espiritual dos injustiçados é invencível. O mais profundo da
história é construído pelos/as injustiçados/as. Os opressores e os violentos,
mandantes e executores, serão jogados na lata de lixo da história. Vivem e viverão
sempre em nós na luta por tudo o que é JUSTO e BEM COMUM: as profetizas e os
profetas, Jesus Cristo, Che Guevara, Rosa Luxemburgo, Chico Mendes, Padre
Ezequiel Ramin, Padre Josimo, os fiscais massacrados em Unaí, Irmã Dorothy,
Margarida Alves, os Sem Terra assassinados, Dandara, Zumbi, Antônio
Conselheiro, Dom Pedro Casaldáliga ... Enfim, uma multidão de mártires que nos
impulsionam na luta obstinada pela construção de uma terra sem males.
Exigimos que o Governador de MG, Romeu
Zema, e/ou o presidente do TJMG, desembargador Gilson Gomes Lemes, suspendam
esse despejo absurdo em tempo de pandemia e proíbam outros despejos durante a
pandemia. Despejar não é atividade essencial. Exigimos Despejo Zero! E exigimos
com urgência a DESAPROPRIAÇÃO DEFINITIVA do latifúndio das terras da ex-Usina
Ariadnópolis. O MST iniciou o despejo do Zema.
Pedimos em nome de Deus, das crianças e por respeito à dignidade da pessoa humana: Parem todos despejos no Brasil para salvar vidas!
21/8/2020.
Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1 - Exigimos "Despejo Zero"
para salvar vidas - Por frei Gilvander - 1ª Parte - 17/8/2020
2 - "A luta não vai parar!"
MST e Quilombo Campo Grande, em MG: Despejo é crime; na pandemia, genocídio
https://www.youtube.com/watch?v=OKun6Nv7Vcg
3 - Lições da luta/resistência no
Quilombo Campo Grande, do MST, sul de MG, após despejo genocida/cruel
https://www.youtube.com/watch?v=jz0fdDgV-ZQ
4 - Cenário de guerra no Quilombo Campo
Grande, do MST, Campo do Meio/MG: Gov. Zema, TJMG, PM/MG/14/8/20
https://www.youtube.com/watch?v=CUuepv4aq_I
5 - PM de MG bombardeando o Quilombo
Campo Grande, do MST, em campo do Meio, MG: barbárie - 14/8/2020
https://www.youtube.com/watch?v=lsPxVWLJno8
6 - Quilombo Campo Grande, do MST,
resiste há 48 horas ao despejo, em Campo do Meio/MG. Caveirão na área
https://www.youtube.com/watch?v=M42CVmAiuW0
7 - PEDRO, PROFETA DA ESPERANÇA -
Documentário da Verbo Filmes sobre Dom Pedro Casaldáliga - 08/8/2020
https://www.youtube.com/watch?v=hYK33xsBYeY
8 - Homenagens a Dom Pedro Casaldáliga:
místico = Profeta, Pastor e Poeta -missa, Batatais/SP, 09/8/2020
https://www.youtube.com/watch?v=M1_sBWupEgQ
[1] Frei e padre da
Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em
Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese
Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT,
CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e
Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
– Facebook: Gilvander Moreira III
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