Só mudança de mentalidade é insuficiente. Por Gilvander Moreira[1]
Foto: Divulgação do Blog Mafarrico Vermelho.
É “a revolução a força motriz da história e também da religião, da filosofia e de toda forma de teoria” (MARX; ENGELS, 2007, p. 43). A luta pela terra aponta perspectivas emancipatórias capazes de mover a história? “Na atividade revolucionária, o transformar a si mesmo coincide com o transformar as circunstâncias” (MARX; ENGELS, 2007, p. 209). No prólogo de A ideologia alemã, Marx e Engels, de forma contundente, asseveram: “Até o momento, os homens sempre fizeram representações falsas de si mesmos, daquilo que eles são ou devem ser. Eles organizaram suas relações de acordo com suas representações de Deus, do homem normal e assim por diante. Os produtos de sua cabeça tornaram-se independentes. Eles, os criadores, curvaram-se diante de suas criaturas. Libertemo-nos de suas quimeras, das ideias, dos dogmas, dos seres imaginários, sob o jugo dos quais eles definham. Rebelemo-nos contra esse império dos pensamentos. Ensinemos-lhes a trocar essas imaginações por pensamentos que correspondam à essência do homem” (MARX; ENGELS, 2007, p. 523).
Não são com argumentos racionais e silogismos, elucubrações teóricas, que o ser humano prova a verdade do que afirma. Antropologicamente, entendemos o ser humano como um “ser de relações e não apenas de contato, não apenas está no mundo, mas com o mundo” (FREIRE, 2002, p. 47). Segundo Marx, o indivíduo se relaciona por toda atividade humana com as condições objetivas herdadas das gerações anteriores, com as condições materiais objetivas do presente e tem o desafio de produzir e se reproduzir. Segundo Freire, o homem não apenas se adapta ou se ajusta, mas se integra ao meio cultural e histórico. “Herdando a experiência adquirida, criando e recriando, integrando-se às condições de seu contexto, respondendo a seus desafios, objetivando-se a si próprio, discernindo, transcendendo, lança-se o homem num domínio que lhe é exclusivo – o da História e o da cultura” (FREIRE, 2002, p. 49).
Marx demonstra que as ideias passam pela nossa mente, onde podem ser elaboradas, mas a origem das ideias está nas condições históricas materiais, nas relações sociais e no enfrentamento dos problemas. O materialismo histórico-dialético de Marx atesta que nada chega ou sai da mente se não for suscitado pela materialidade das relações sociais. A totalidade das relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, sobre a qual se ergue uma superestrutura constituída pelas instituições jurídicas, políticas, morais e culturais. “Na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência” (MARX, 2005, p. 52).
De fato, enquanto compreensão de que o ser humano se forma e age nas ideias, pelas ideias e para as ideias, o idealismo, de forma explícita ou implícita, admitido ou não, há séculos tem sido uma constante na história da educação, na formatação de princípios e regras éticas e na tentativa de superar os problemas humanos. Entretanto, a história demonstra que não bastam boas intenções e nem só ideias críticas para se resolverem e superarem de forma justa as injustiças sociais.
Ao pesquisar a luta pela terra enquanto pedagogia de emancipação humana no doutorado que defendemos na FAE/UFMG, tínhamos a consciência de que “até o passado registrado – ou narrado oralmente (acréscimo nosso) – muda à luz da história subsequente” (HOBSBAWM, 1998, p. 250). Tínhamos em mente o que afirma Franco Cambi: “Através do passado criticamente revisitado, o presente (também criticamente) se abre para o futuro, que se vê carregado dos impulsos não realizados do passado, mesmo o mais distante ou o mais marginalizado e sufocado” (CAMBI, 1999, p. 36). Dia 22 de outubro de 2014, os Sem Terra acampados no Acampamento Dom Luciano Mendes, desde 26 de agosto de 2006, receberam das mãos do superintendente do INCRA/MG a imissão na posse da Fazenda Monte Cristo, em Salto da Divisa, MG. Fato histórico, pois se tratava do primeiro assentamento que estava sendo autorizado pelo Governo Federal em Salto da Divisa, na região do Baixo Jequitinhonha, MG, um município que tem uma das maiores concentrações fundiárias do mundo. O INCRA repassou a fazenda Monte Cristo a 25 famílias do MST que estavam acampadas no Acampamento Dom Luciano Mendes. Estava nascendo o Projeto de Assentamento (PA) Dom Luciano Mendes.
Pesquisamos a luta pela terra em Salto da Divisa, a partir do Acampamento Dom Luciano Mendes por vários motivos, entre os quais um se destaca. O município de Salto da Divisa, na região do Baixo Jequitinhonha, MG, tem uma das maiores concentrações fundiárias do mundo. Apenas duas famílias – Cunha Peixoto e Pimenta – estima-se que sejam proprietárias de 97,5% do território do município, com a maior parte de terras devolutas griladas e/ou propriedades improdutivas que não cumprem a função social.
Comprometido com a luta do MST, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STRs), desde que se tornou bispo da Diocese de Almenara, dom Hugo Steekelenburg denunciou em uma Audiência Pública: “O município de Salto da Divisa é o único município do Brasil que não tem mais nenhuma comunidade rural, exceto a comunidade do Acampamento Dom Luciano Mendes e as famílias que moram nas ilhas do rio Jequitinhonha. Só estão no campo os vaqueiros que cuidam do gado e são proibidos de plantar (DOM HUGO MARIA VAN STEEKELENBURG, em audiência da Comissão dos Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, na cidade de Salto da Divisa, dia 23/11/2009). Atualmente, como fruto de aguerrida luta pela terra existem em Salto da divisa três comunidades camponesas: as dos Assentamentos Dom Luciano Mendes e Irmã Geraldinha e a Comunidade Quilombola Braço Forte, que está retomando seu território.
Referências.
CAMBI, Franco. História da pedagogia. Tradução de Álvaro Lorencini. São Paulo: Fundação Editora da UNESP (FEU), 1999.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
HOBSBAWM, Eric. Sobre história. São Paulo: Companhia das letras, 1998.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã: crítica da mais recente Filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
______. Karl Marx: para a crítica da Economia Política, Do Capital, O Rendimento e suas fontes. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda, 2005.
Belo Horizonte, MG, 25/9/2018.
Obs.: Os vídeos, abaixo, ilustram o texto, acima.
1 - Ocupação dos Carroceiros, no Bairro Tirol, em Belo Horizonte/MG: Negociação, sim. Despejo, não. 23/9/2018.
2 - Padre Tonhão: "Nossos rios foram secados!" - XXI Romaria das Águas e da Terra de MG: Missões - 3a Parte - 08/9/2018.
3 - Aldeia Kamakã Grayra na FUCAM , em Esmeraldas/MG: Resistência pelo direito à terra/18/8/2018.
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III
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