PARA QUE SERVE A
EDUCAÇÃO?
Humberto
Maturana[1]
Quero
começar com o “para quê”, por uma razão muito simples. Se perguntamos: A
educação atual serve ao Chile e à sua juventude?, estamos formulando a pergunta
a partir do pressuposto de que todos entendemos o que ela requer. Mas será que
isto acontece? O conceito de servir é um conceito relacionai: algo serve
para algo em relação a um desejo. Nada serve em si mesmo. No fundo, a pergunta
é: O que queremos da educação? Acho que não se pode considerar nenhuma pergunta
sobre os afazeres humanos, no que diz respeito ao seu valor, à sua utilidade ou
àquilo que se pode obter deles, se não se explicita o que é que se quer.
Perguntarmos se a educação chilena serve, requer respostas a questões como: O
que queremos com a educação? O que é educar? Para que queremos educar? E, em
última instância, a grande pergunta: Que país queremos?
Penso
que não se pode refletir sobre a educação sem antes, ou simultaneamente,
refletir sobre essa coisa tão fundamental no viver cotidiano que é o projeto de
país no qual estão inseridas nossas reflexões sobre a educação. Temos um
projeto de país? Talvez nossa grande tragédia atual é que não temos um projeto
de país. É claro que não podemos brincar de voltar ao passado. Sem dúvida, como
professor universitário, me dou conta da existência de dois projetos nacionais,
um do passado e outro do presente, claramente distintos, um que vivi como estudante,
e outro no qual eu vejo os estudantes de hoje serem forçados a viver. Estudei
para devolver ao país o que havia recebido dele. Estava mergulhado num projeto
de responsabilidade social. Era partícipe da construção de um país, no qual se
escutava continuamente conversações sobre o bem-estar da comunidade nacional
que seus membros contribuíam para construir. Eu não era o único.
Numa
ocasião, logo no início dos meus estudos universitários, reunimo-nos todos os
estudantes do primeiro ano para declarar nossas identidades políticas. Quando
isso aconteceu, o que me pareceu sugestivo foi que, na diversidade de nossas
identidades políticas, havia um propósito comum: devolver ao país o que
estávamos recebendo dele. Quer dizer, vivíamos nosso pertencer a ideologias
diversas como diferentes modos de cumprir com nossa responsabilidade social de
devolver ao país o que havíamos recebido dele, num compromisso explícito ou
implícito de realizar a tarefa fundamental de acabar com a pobreza, com o sofrimento,
com as desigualdades e os abusos. A situação e as preocupações dos estudantes
de hoje mudaram.
Hoje,
os estudantes se encontram no dilema de escolher entre o que deles se pede, que
é preparar-se para competir no mercado profissional, e o ímpeto de sua empatia
social, que os leva a desejar mudar uma ordem político cultural geradora de
excessivas desigualdades, que trazem pobreza e sofrimento material e
espiritual.
A
diferença que existe entre preparar-se para devolver ao país o que se recebeu
dele, trabalhando para acabar com a pobreza, e preparar-se para competir no
mercado de trabalho é enorme. Trata-se de dois mundos completamente distintos.
Quando eu era estudante, como já disse, desejava retribuir à comunidade o que
dela recebia, sem conflito, porque minha emoção e minha sensibilidade frente ao
outro e meu propósito ou intenção a respeito do país coincidiam. Mas atualmente
essa coincidência entre propósito individual e propósito social não se dá,
porque, no momento em que uma pessoa se torna estudante para entrar na
competição profissional, ela faz de sua vida estudantil um processo de
preparação para participar num âmbito de interações que se define pela negação
do outro, sob o eufemismo: mercado da livre e sadia competição. A
competição não é nem pode ser sadia, porque se constitui na negação do outro.
A
competição sadia não existe. A competição é um fenômeno cultural e humano, e
não constitutivo do biológico. Como fenômeno humano, a competição se constitui
na negação do outro. Observem as emoções envolvidas nas competições esportivas.
Nelas não existe a convivência sadia, porque a vitória de um surge da derrota
do outro. O mais grave é que, sob o discurso que valoriza a competição como um bem
social, não se vê a emoção que constitui a práxis do competir, que é a que
constitui as ações que negam o outro.
Lembro-me
de haver assistido a um curso de economia na Universidade Católica, ministrado
por um economista da Escola de Chicago, pois queria entender os economistas.
Ele centrou seu discurso nas leis da oferta e da procura. Falou da substituição
de importações por produções locais e das exportações no livre mercado, destacando
os pontos positivos da competição sadia etc. Eu lhe perguntei se no encontro
mercantil há alguma diferença entre a situação em que os que participam
dele são amigos e se respeitam, e aquela em que eles não o são, não se conhecem
e não se respeitam. Ele não soube o que responder. Pelo menos isso
me mostrou que essa era uma pergunta que jamais havia sido feita, porque
quem se fizer essa pergunta há de trabalhar para respondê-la, pois trata-se de
uma pergunta fundamental. Não é a mesma coisa um encontro com alguém que
pertence ao nosso mundo, e a quem respeitamos, e um encontro com alguém que não
pertence ao nosso mundo, e que é indiferente para nós, ainda que isso se dê na
simples transação mercantil, que nos parece tão óbvia e tão clara. Não é a
mesma coisa, porque as emoções envolvidas num e noutro caso são diferentes.
Os
jovens chilenos estão agora, implícita ou explicitamente, sendo forçados pelo
atual sistema de educação a se formar para realizar algo que não está declarado
como um projeto nacional, mas que configura um projeto nacional fundado na
disputa e na negação mútua, sob o convite à livre competição. Além disso,
fala-se de livre competição como se esta fosse um bem transcendente, válido em
si mesmo, e que o mundo todo tem de valorizar positivamente e respeitar como a
uma grande deusa, ou talvez um grande deus que abre as portas
para o bem-estar social, ainda que, de fato, negue a cooperação na convivência,
que é o que constitui o social. Mas vamos deixar de lado, por ora, a pergunta
sobre o projeto nacional e a competição, e vamos refletir sobre seus
fundamentos como aspectos de nosso ser cultural.
[1] O texto, abaixo, está no livro “EMOÇÕES E LINGUAGEM NA EDUCAÇÃO E NA POLÍTICA”, de Humberto Maturana,
Ed. UFMG, 2002.
Nenhum comentário:
Postar um comentário