terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Que tipo de religião liberta? Por Frei Gilvander

 Que tipo de religião liberta? Por Frei Gilvander Moreira[1]


Para reconstruirmos a sociedade a partir das vítimas dos escombros e da devastação causada pelo capitalismo, agronegócio e bolsonarismo, tornou-se imprescindível compreendermos de forma libertadora o fenômeno religioso: questão religiosa, religiosidade, ideologia da prosperidade, religião reduzida a autoajuda, intimismo espiritual, moralismos e fundamentalismos com fundo religioso, uso em vão do nome de Deus para enganar as pessoas, lucrar e acumular capital. O contexto religioso atual integra tudo isso. Há também, graças às forças de vida, fenômeno religioso libertador sendo vivenciado por milhares de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), Pastorais Sociais, Movimentos Sociais e por pessoas que pertencem à religiões de matriz africana ou indígena.

A sociologia da religião explica em grande parte como compreender o fenômeno religioso em geral, mas a Teologia da Libertação também é imprescindível para a compreensão da dimensão religiosa do campesinato na luta pela terra e do povo marginalizado nas periferias das cidades na luta por moradia, pão e dignidade. O filósofo e sociólogo da religião Michael Lowy afirma: “A emergência do cristianismo revolucionário e da teologia da libertação na América Latina (e em outras partes do mundo) abre um capítulo histórico e eleva novas e excitantes questões que não podem ser respondidas sem uma renovação da análise marxista da religião” (LOWY, 2007, p. 298). Não é mais possível considerar a participação de sujeitos cristãos na luta pela terra como se fosse uma exceção dentro de uma igreja conservadora e opressora. Para muitos “a morte do padre Camilo Torres, que tinha se unido à guerrilha colombiana, foi considerada um caso excepcional, ocorrida em 15 de fevereiro de 1966. Mas o crescente compromisso de cristãos  inclusive muitos religiosos e padres  com as lutas populares e sua massiva inserção na revolução sandinista claramente mostrou a necessidade de um novo enfoque” (LOWY, 2007, p. 298).

Digo mais: sem a participação de milhares de pessoas cristãs teria sido muito difícil e teria tardado muito mais o nascimento da Central Única dos Trabalhadores (CUT), do Partido dos Trabalhadores (PT), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST, já com 38 anos em 2022) e de outros movimentos socioterritoriais que travaram a luta pela terra nas décadas de 1980 e 1990 e na primeira década do século XXI no Brasil. A partir da Teologia da Libertação, muitos pensadores na área da Teologia passaram a usar como método de análise da realidade o materialismo histórico-dialético, de Karl Marx, para analisar as contradições da realidade, explicitar as causas das injustiças sociais e, assim, convocar os/as injustiçados/as para o engajamento em lutas de emancipação política, social e humana. Por assumir esse compromisso, muitas lideranças cristãs foram assassinadas. Cito alguns padres, freiras e inclusive um arcebispo: padre Camilo Torres, na Colômbia, dia 15 de fevereiro de 1966; padre Antônio Henrique Pereira Neto, auxiliar de Dom Hélder Câmara, em Recife, PE, dia 27 de maio de 1969; padre Rodolfo Lukenbein e o índio Borro Simão, na Terra indígena Merure, no Mato Grosso, dia 15 de julho de 1976; Santo Dias da Silva, em São Paulo, dia 30 de outubro de 1979; o arcebispo Dom Oscar Romero, em San Salvador, dia 24 de março de 1980; irmã Cleusa Rody Coelho, em Labrea, no estado do Amazonas, dia 28 de abril de 1985; padre Ezequiel Ramin, em Cacoal, em Rondônia, dia 24 de julho de 1985; padre João Bosco Burnier, em Ribeirão Cascalheira, no Mato Grosso, dia 11 de outubro de 1985; padre Josimo Tavares, em Imperatriz, no Maranhão, dia 10 de maio de 1986; padre Gabriel Maire, em Cariacica, no Espírito Santo, dia 23 de dezembro de 1989; 19 trabalhadores Sem Terra do MST massacrados brutalmente pela Polícia Militar do Pará, na “Curva do S”, em Eldorado dos Carajás, PA, dia 17 de abril de 1996; irmã Dorothy Stang[2], em Anapu, no Pará, dia 12 de fevereiro de 2005 etc. Em 34 anos, de 1985 a 2019, foram assassinados na luta pela terra no Brasil 1483 camponeses, uma média de 43,6 camponeses por ano. Quase todas estas lideranças camponesas eram pessoas religiosas, de uma fé libertadora. Sentiam impelidas a se comprometer com a luta pela terra também por uma motivação religiosa. A lista é muito grande, principalmente de leigas/os que se comprometeram com a caminhada das CEBs e abraçaram a luta pela terra na Comissão Pastoral da Terra (CPT), ou no MST, ou no Conselho Indigenista Missionário (CIMI) ou em vários outros movimentos camponeses socioterritoriais. Não dá para citar todos.

Caiu no imaginário comum do marxismo vulgar que Marx seria ateu por considerar a ‘religião como ópio do povo’. Precisamos resgatar historicamente a evolução da compreensão da religião como ópio do povo. Quem a considerou assim, em qual contexto histórico e por quê? Fazendo sociologia marxista da religião, Michael Lowy coloca a questão religiosa como ópio, assim compreendida por vários pensadores antes de Marx. Diz ele: “A conhecida frase “a religião é o ópio do povo” é considerada como a quintessência da concepção marxista do fenômeno religioso pela maioria de seus partidários e oponentes. O quão acertado é este ponto de vista? Antes de qualquer coisa, as pessoas deveriam enfatizar que esta afirmação não é de todo especificamente marxista. A mesma frase pode ser encontrada, em diversos contextos, nos escritos de Immanuel Kant, J. G. Herder, Ludwig Feuerbach, Bruno Bauer, Moses Hess e Heinrich Heine. Por exemplo, em seu ensaio sobre Ludwig Borne (1840), Heine já a usava  de uma maneira positiva (embora irônica): “Bem-vinda seja uma religião que derrama no amargo cálice da sofredora espécie humana algumas doces, soníferas gotas de ópio espiritual, algumas gotas de amor, esperança e crença”. Moses Hess, em seu ensaio publicado na Suíça, em 1843, toma uma postura mais crítica (mas ainda ambígua):A religião pode tornar suportável [...] a infeliz consciência de servidão [...] de igual forma o ópio é de boa ajuda em angustiosas doenças”” (LOWY, 2007, p. 299).

Religião no sentido de ópio aparece no artigo de Marx Sobre a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, de 1844, onde Marx assim se expressa: “A angústia religiosa é ao mesmo tempo a expressão da dor real e o protesto contra ela. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, tal como o é o espírito de uma situação sem espírito. É o ópio do povo” (MARX apud LOWY, 2007, p. 300). Aqui nesta citação, ainda fala o jovem Marx, discípulo de Feuerbach, ainda neo-hegeliano. Por isso, trata-se strictu sensu de uma afirmação pré-marxista. Marx não tinha ainda desenvolvido o método do materialismo histórico-dialético, o que considera as relações sociais materiais na sua totalidade como sendo as que geram todas as representações espirituais, morais, jurídicas, etc. Marx não falava ainda de classes sociais e nem de luta de classes como sendo a espinha dorsal da sociedade capitalista. Mas Marx já percebia o caráter contraditório e dialético da religião como suspiro ou protesto, coração de um mundo sem coração, espírito de uma situação sem espírito.

Ao resgatar o Jesus histórico que viveu no nosso meio consolando os/as injustiçados/as, incomodando os opressores dos pobres poderes da política, da economia e da religião, e, acima de tudo, ensinando e testemunhando um jeito de conviver e de construir fraternidade real com justiça econômica, solidariedade social e partilha de poder político, a Teologia da Libertação dinamiza a dimensão libertadora do fenômeno religioso, o que passa por compreendermos a íntima relação que existe entre as dimensões espiritual e social do Evangelho de Jesus Cristo. Nisto acreditamos e por isto lutamos, pois sabemos que muitas formas religiosas são idolátricas e abusam do nome de Deus para fins escusos.

Referências

LOWY, Michael. Marxismo e religião: ópio do povo?. In: A teoria marxista hoje. Problemas e perspectivas. Buenos Aires: CLACSO, p. 298-315, 2007.

Belo Horizonte, MG, 25/01/2022.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Gratidão, emoção, amor, fé e alegria: Culto da Vitória do Beco Fagundes, Betim/MG: Despejo suspenso.

2 - “Fé e coragem!” Culto e Vigília no Beco Fagundes, Betim/MG, sob pressão infernal por despejo injusto

3 - Janeiro de 2022. As lutas do Povo Mineiro, com Frei Gilvander Moreira

4 - Live-tributo ao Frei Cláudio van Balen: Seu imenso legado pastoral, teológico, ético e espiritual ..

5 - O verdadeiro sentido do Natal, com os freis Carlos Mesters e Gilvander Moreira

6 - Frei Gilvander: Evangelho na Missa Afro em Santa Luzia, MG. "Rodoanel, destruição na RMBH". Vídeo 5

7 - "Quem é, o que fez e ensinou Maria, a mãe de Jesus, segundo os Evangelhos?" - Frei Gilvander–15/7/21

8 - A preocupação com os Pobres é Evangelho de Jesus Cristo. Impossível ser pessoa cristã e capitalista



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Cf. no link https://www.youtube.com/watch?v=1rwuGGn4wF4 , reportagem da TV Brasil, em Caminhos da reportagem: um sonho, a terra, mostra os conflitos agrários na região de Anapu, no Pará, onde foi assassinada a Irmã Dorothy Stang e onde atuam agentes de pastoral da CPT. Lá estão ameaçados de morte o padre Amaro Lopes Souza, o Márcio Rodrigues, o Geraldo Lourenço Pereira e as freiras Jane Dwyer e Kátia Webster, missionárias de Notre Dame, colegas de Dorothy Stang, dentre outros, todas/os companheiras/os de Dorothy Stang que seguem firmes na luta pela terra e por direitos sociais. Há muitos grileiros de terra e ameaçadores na região, entre os quais o fazendeiro Silvério Fernandes.

 

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Como o Estado impede a reforma agrária? Por Frei Gilvander

 Como o Estado impede a reforma agrária? Por Frei Gilvander Moreira[1]


Como fruto da luta renhida pela terra, o campesinato organizado conseguiu inscrever na Constituição de 1988 (CF/88) também o artigo 186, que enumera os requisitos indispensáveis para que a propriedade atenda à função social e que já havia sido incluído no Estatuto da Terra, passa a ter a natureza jurídica de princípio fundamental. Pelo artigo 186 da CF/88 toda propriedade deve cumprir, simultaneamente, conforme os graus de exigência fixados em lei – Lei 8629/93, quatro critérios: a) o aproveitamento racional e adequado: deve ser produtiva; b) a utilização adequada dos recursos e preservação do meio ambiente: não pode ser monocultura, por exemplo; c) a observância das disposições que regulam as relações de trabalho: não pode haver desrespeito às leis trabalhistas; e d) a exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores: participação dos trabalhadores no lucro da propriedade.

Para driblar o imperativo constitucional de desapropriar os latifúndios improdutivos e que não cumprem sua função social, o Estado brasileiro começou a usar uma série de subterfúgios, tais como estimular o uso de terras públicas e observar apenas os índices de produtividade e não os outros três critérios prescritos no art. 186 da Constituição Federal. Fernando Henrique Cardoso, então presidente do Brasil, aprovou no Congresso Nacional a Lei 8.629/93, mantida pelos governos Lula, Dilma, Temer - o xerife do golpe de 31 de agosto de 2016 – e o inominável, lei que proíbe vistoria em fazendas que sejam ocupadas durante dois anos. Agravante: os índices de produtividade estabelecidos, cujos parâmetros foram regulamentados pela Lei 8.629/93, permanecem desatualizados há 46 anos, desde 1975. É óbvio que nos últimos 46 anos, com todo o aparato tecnológico usado na agricultura e pecuária, a produtividade aumentou em uma progressão geométrica. Por isso, a não atualização dos índices de produtividade é algo flagrantemente inconstitucional. Concordamos com Ariovaldo Umbelino, ao avaliar os dois mandatos do presidente Lula: “A política de reforma agrária do governo do PT está marcada por dois princípios: não fazê-la nas áreas de domínio do agronegócio e, fazê-la apenas nas áreas onde ela possa “ajudar” o agronegócio” (OLIVEIRA, 2010, p. 308).

Ainda em 2009, em parceria com Delze dos Santos, no artigo MST: 25 anos de luta por reforma agrária, reconhecíamos que a ocupação de terras tornou-se a marca do MST. “É a forma mais eficiente, eficaz e necessária para forçar o Governo a cumprir a sua parte na tarefa da reforma agrária. [...] Desde a sua formação o MST aprendeu que somente ocupando a propriedade que não cumpre a função social conseguem os trabalhadores mover a máquina do Governo e fazer um pouco de reforma agrária. O MST descobriu que reforma agrária não se espera de braços cruzados, mas se conquista na luta, inclusive com ocupações” (LAUREANO; MOREIRA, 2009, p. 23).

Na luta pela terra não dá para ignorar o governo, pois “apenas o governo pode desapropriar terras, conceder indenizações, garantir crédito aos assentados, estabelecer uma política agrária e executá-la” (COMPARATO, 2003, p. 56), ou, pelo menos, comprar fazendas em um regime de reforma agrária de mercado, o que é ceder aos interesses do capital, pois ao se burlar o estatuto constitucional da desapropriação de latifúndios para fins de reforma agrária se fortalece o mercado de terras, peça basilar no capitalismo brasileiro. Boaventura Souza Santos (2007), por exemplo, em Para além do pensamento abissal, nos ajuda a entender como o pensamento moderno é basicamente um pensamento abissal e sacrificial, que justifica a desterritorialização. É abissal, porque cria abismos: um lado é o da existência, o outro é o da inexistência. Boaventura mostra como o Direito, ao legitimar a apropriação da terra como propriedade privada capitalista, tem sido uma arma brutal de sacrificar identidades. O sociólogo de Coimbra afirma que no campo do conhecimento, o pensamento abissal consiste na concessão à ciência moderna do monopólio da distinção universal entre o verdadeiro e o falso. Nessa perspectiva, a luta pela terra e por reforma agrária é desqualificada como algo falso e anacrônico pela ideologia dominante ao veicular o posicionamento dos detentores dos poderes econômico e político. A propaganda dos capitalistas que investem no campo para obter mais-valia à custa da expropriação do campesinato afirma como verdadeiro o agronegócio, projeto agropecuário que sufoca todo e qualquer tipo de reforma agrária e causa uma imensa devastação socioambiental. Relações de subordinação dos camponeses ao capital quando as grandes empresas agropecuárias do agronegócio pelas condições materiais de enorme poder econômico submetem as famílias camponesas da região dos grandes projetos agropecuários aos seus interesses forçando um grande número de camponeses, quando pequenos proprietários, a praticarem o que se chama de ‘agronegocinho’, que é atrelar sua pequena propriedade rural e sua produção aos interesses do capitalista que está ao lado. Isso se faz através de financiamento para se plantar o que interessa aos empresários das monoculturas, através do arrendamento das pequenas propriedades, da venda de sementes com a oferta de técnicos para acompanhar a produção e, consumando com a compra antecipada da produção. Enfim, uma grande empresa do agronegócio, além de comprar a produção dos camponeses, acaba controlando as terras dos pequenos proprietários e reduzindo-os a simples serviçais do capital. Nesse contexto os órgãos ambientais via de regra são implacáveis com os camponeses que provocam alguma agressão ambiental. “Por que se deveria exigir dos sem-terra uma consciência ecológica que nossas elites, com toda a sua educação e o seu cosmopolitismo, nunca têm?” (LEROY, 2010, p. 292).

Referências

COMPARATO, Bruno KonderA Ação Política do MST. São Paulo: Expressão Popular, 2003.

LEROY, Jean Pierre. Territórios do futuro: educação, meio ambiente e ação coletiva. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll/Lamparina Editora, 2010.

MOREIRA, Gilvander Luís; LAUREANO, Delze dos Santos. MST: 25 anos de luta por reforma agrária. In: Veredas do Direito, Belo Horizonte, Vol. 6, n. 11, p. 11-29, nota 5, p. 17, Jan. – Jun./2009.

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. A questão agrária no Brasil: não reforma e contrarreforma agrária no governo Lula. In: Vv.Aa. Os anos Lula: contribuições para um balanço crítico 2003-2010. Rio de janeiro: Garamond, p. 287-328, 2010.

SANTOS, Boaventura de Souza. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 78, p. 3-46, 2007.

Belo Horizonte, MG, 18/01/2022.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Luta pela terra e pela moradia, com justiça agrária e urbana (Frei Gilvander no Dom Debate) –21/7/21



2 - Povo Kiriri e a luta indígena pela terra em Minas Gerais - Por CPT, CEDEFES e Povo Kiriri



3 - Acampamento Dênis Gonçalves, do MST, em Goianá, MG - luta pela terra. Frei Gilvander - 26/8/2010.


4 - Acampamento Eloy Ferreira, do MST, Engenheiro Navarro/MG: luta pela terra. Frei Gilvander. 02/9/2010



5 - MST na luta pela terra no sul de MG - Grito dos Excluídos - Frei Gilvander/luta por direitos/07/9/10



6 - Palavra Ética: Luta pela terra e por moradia em Pirapora e em Santa Luzia, MG. E L. Boff - 29/02/20



7 - 160 famílias na luta pela terra em Pirapora, MG, há 20 anos. Despejar é injusto/violência. 17/2/2020



 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

  

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Peneirando o sentido do Natal de Jesus Cristo. Por Frei Gilvander

 Peneirando o sentido do Natal de Jesus Cristo. Por Frei Gilvander Moreira[1]


 Tempo de Natal e de virada de ano é tempo propício – kairós – para fazermos revisão de vida, retrospectiva e resgatar o que de mais humano existe em nós e na humanidade. Para isso, faz bem peneirarmos o sentido do Natal: o do mercado idolatrado e o de Jesus Cristo. Uma avalanche de mensagens natalinas chegou a nós por meio das redes virtuais, eufemisticamente chamadas de ‘redes sociais’. Mensagens para todos os gostos: muitas ingênuas e uma minoria, críticas, criativas e inspiradoras. Como desejar “feliz natal, boas festas e um próspero ano novo” diante de milhões que tiveram um infeliz natal, não puderam fazer nenhuma festa e não terão um próspero ano, porque estão adoecidos, em luto pelos mais de 620 mil mortos, não apenas pela pandemia da covid-19, mas principalmente pela política genocida que impera no nosso Brasil, porque têm seus corpos bombardeados pela bomba da fome causada pelo latifúndio, pelo agronegócio (que não produz alimentos, mas commodities para a exportação para acumulação de lucro e capital para poucas empresas transnacionais), pela epidemia de câncer e Alzheimer causada principalmente pelas centenas de agrotóxicos jogados pelos agronegociantes na agricultura empresarial, que envenenam a mãe terra, a irmã água, o ar e os alimentos; sob uma política econômica neoliberal/neocolonial que amputa diariamente o braço social do Estado e hipertrofia o braço repressor do Estado, privatizando a terra, as águas, as empresas estatais e públicas, as rodovias, ferrovias, os (aero)portos, cortando direitos trabalhistas, previdenciários e sociais toda semana e, pior, devastando o meio ambiente com desmatamento, mineração, garimpo e monoculturas, com um poder legislativo nos três níveis do Estado onde predomina o centrão e a direita e um poder judiciário que defende mais a propriedade privada capitalista do que a dignidade humana e a dignidade de toda a biodiversidade? Quem lidera ou é coadjuvante ou cúmplice desta brutal violência planejada a sangue frio para matar milhões são os Herodes de hoje e assassinam cotidianamente milhares de meninos-Deus que insistem em nascer todos os dias.

No natal trombeteado aos quatro ventos pelos arautos do mercado idolatrado, um antinatal, o “dono da festa”, que nasceu já ameaçado de morte, fica mais oculto do que o amigo oculto. Uma sociedade capitalista abusa do nascimento de Jesus Cristo para auferir lucro e acumular capital, promovendo gastança, viagens que resultam em centenas de mortes e comilanças; pior, humilham milhões de pessoas que não podem gastar, viajar e nem promover comilanças. Com roupa vermelha para induzir o consumo de um refrigerante (melhor não dizer o nome), de uma transnacional, que mais serve para desentupir pia, o papai noel é um mentiroso, nojento e fantoche do ídolo capital que cumpre uma tarefa suja: seduzir as crianças e as famílias para consumirem ao máximo até se consumirem e se desumanizarem gradativamente. É idolatria colocar esta representação do polo norte para seduzir as crianças para fomentar a cultura do “dar presentes” e encobrir a cultura do menino-Deus nascido em um cocho de curral na periferia de Belém que, como testemunham os pastores e os magos, pedem para sermos PRESENTE, PRESENÇA HUMANA, na vida das outras pessoas, não apenas de nossa família nuclear biológica, mas da família humana e ecológica mundial.

Ver e sentir o menino-Deus nas crianças recém-nascidas é mil vezes mais humano-divino do que ver o menino-Deus representado em presépios artificiais. Estranho pessoas colocarem suas próprias fotos em mensagens de natal. Não seria mais humanizador partilhar uma foto que atualizasse o menino-Deus nascendo atualmente de mil formas no meio dos empobrecidos?

Diante das mensagens natalinas ingênuas e/ou portadoras da ideologia do capitalismo, como desejar prosperidade, algo que diz respeito a crescimento econômico pessoal, sem responsabilidade social, na linha da ideologia da prosperidade, suplico a Deus, mistério de infinito amor: “Pai, perdoai-lhes, pois eles não sabem o que fazem” (Lc 23,34). Porém, sobre os opressores, rezo: Pai, não perdoai-lhes, pois eles sabem que o que fazem, roubam os bens que deveriam ser comuns a todos/as. Fazem isso para curtir poder, status e prazer à custa do sangue de muita gente.

Ao peneirar as mensagens natalinas que recebi, me alegrei com várias e partilho algumas aqui abaixo no intuito de resgatarmos o verdadeiro e libertador sentido do Natal de Jesus Cristo.

Com Dom Hélder Câmara (1909-1999), reafirmamos: “Gosto de pensar no Natal como um ato de subversão... Um menino pobre, uma mãe solteira, um pai adotivo... Quem assiste seu nascimento é a ralé da sociedade, os pastores. É presenteado por gente ‘de outras religiões’, os magos. A família tem que fugir e assim viram refugiados políticos. Depois voltam a viver na periferia. O resto a gente celebra na Páscoa... mas com a mesma subversão... sim! A revolução virá dos pobres! Só deles pode vir a salvação! Feliz Natal subversivo!”

Provavelmente para não ser condenado à pena de morte como Jesus Cristo, um autor desconhecido nos diz: “Romantizamos o presépio, mas ele deveria ser a encarnação da denúncia. Nasce uma criança jurada de morte pelos poderosos. Portas fechadas nas propriedades dos abastados. Ausência de teto para uma família empobrecida. Ausência de leito para uma mulher dar à luz. O que sobra é um insalubre lugar onde ficavam os animais. O fedor do esterco, os ratos que corriam pelas madeiras do telhado. A criança que sai da segurança do útero é recebida já como sobrevivente, vulnerável. No lombo do jumento segue o caminho de tantos refugiados. Império infanticida manda sua polícia matar as crianças, tentando assim abortar a voz de uma vida dedicada à justiça. Mas há fuga. Há resistência. Há desobediência.”

Ao lado de uma fotografia de Jesus, um chargista anônimo, talvez para não assanhar perseguição sobre si mesmo, alerta: “Pô gente, acorda! Não morri só para salvar vocês, mas porque incomodei o sistema opressor”. Que beleza uma charge sobre os Magos visitando Maria com o menino no colo: Padre Júlio Lancellotti distribuindo solidariedade libertadora, um Sem Terra distribuindo alimentos saudáveis para amenizar a fome que golpeia mais de 22 milhões de brasileiros e uma enfermeira do SUS aplicando vacinas contra a covid-19, inclusive nas crianças.

Que maravilha em uma Comunidade Quilombola uma árvore de Natal feita com mandiocas, bananas e adereços simples! “Há presépios que são construídos todos os dias do ano”, onde estão Maria grávida ou com uma criança recém-nascida no colo e José, homem justo, ao lado sendo companheiro. Ou: “Todos os dias, em algum lugar do mundo, o presépio está vivo.” “É contraditório comemorar o nascimento de Jesus, uma criança refugiada, e querer imigrantes longe do seu país.” Inspirador também foi e sempre será participar de uma vigília de Natal em uma Ocupação onde mães com crianças e pais, na iminência de serem despejados, lutam aguerridamente por moradia, pão e dignidade.

Amar o/a próximo/a como Jesus amou, sem discriminar ninguém, sem exceção, nem por ser do grupo LGBTQIA+, espírita, do candomblé ou da umbanda. E jamais armar o próximo como os milicianos, eis a mensagem fundamental do subversivo Jesus de Nazaré que se humanizou a ponto de se tornar o Cristo, nosso Senhor e Salvador. Esta mensagem anima e fortalece a luta pela construção do Reino de Deus aqui e agora, no meio de nós, a partir dos preferidos de Jesus, os empobrecidos! E é com esse propósito que se pode falar de um ano verdadeiramente novo, (re)construindo a esperança que brota das lutas populares e massivas!

Belo Horizonte, MG, 27/12/2021.

 Obs.: Os filmes e vídeos nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Frei Carlos Mesters: “O sentido verdadeiro do Natal de Jesus Cristo.” – 17/12/2021

2 - O verdadeiro sentido do Natal, com os freis Carlos Mesters e Gilvander Moreira

3 - Presépio Natal de Jesus pobre: Acampamento na Porta do Palácio da Liberdade, BH/MG: Luta por Moradia

4 - Mensagem de Natal: Deus revolucionário no humano a partir dos últimos - Frei Gilvander - 24/12/2020

5 - Festa de Natal na Ocupação Esperança, Izidora, BH. Fala de Leonardo Péricles, da UP. 23/12/2019

6 - Natal passa pelo respeito ao direito à moradia/Ocupação Vila da Conquista/BH/MG/Vídeo 2 - 23/12/18

7 - Vem, Senhor, com teu povo caminhar!-Celebração do Natal-Ocupação Vila Nova-BH/MG-3a Parte-10/12/2017

8 - CEBI, CEBs, MST /MNPR: " Somos um Povo que quer Viver". Quilombo Campo Grande, MST, Campo do Meio/MG



 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Natal: O divino no humano, a partir dos últimos. Por Frei Gilvander

 Natal: O divino no humano, a partir dos últimos. Por Frei Gilvander Moreira[1]


 É tempo de natal e de virada de ano. Dá para celebrar o natal de Jesus Cristo no meio da fase mais cruel do capitalismo, máquina de triturar vidas humanas e vidas de todos os seres vivos, que atualmente não apenas explora, mas superexplora a dignidade humana, a dignidade da mãe terra, da irmã água e de toda a biodiversidade? Sob a avalanche do antinatal do mercado idolatrado, necessário se faz resgatar o sentido bíblico do Natal de Jesus Cristo, que é inspirador e revolucionário. Faz bem entendermos a narrativa bíblica do Evangelho de Lucas (Lc 2,1-20) que versa sobre o nascimento de uma criança que se tornou Cristo. O Evangelho de Lucas não é crônica jornalística escrita sob o calor dos fatos. Escrito na década de 80 do século I da era cristã, o Evangelho de Lucas é Teologia da História a partir dos oprimidos e injustiçados e da sua fé na ressurreição de Jesus Cristo. Para o evangelista Lucas, foram os pastores – os trabalhadores mais discriminados da época – os que, por primeiro, reconheceram a encarnação do divino no humano.

Jesus de Nazaré nasceu em tempos de imperialismo romano, com o imperador Augusto baixando decreto para aumentar o peso da tributação nas costas do povo, além de manter a superexploração, por meio de relações sociais escravocratas que aviltavam a dignidade humana de mais de 60 milhões de pessoas nas muitas colônias do Império Romano. Diz o evangelista Lucas: “Naqueles dias, o imperador Augusto publicou um decreto ordenando recenseamento em todo o império” (Lc 2,1). Como o pai de Jesus, José, era descendente de Davi e natural de Belém, ele teve que viajar da cidadezinha de Nazaré, na Galileia – periferia e norte da Palestina -até Belém, na Judeia, mais de 120 quilômetros, a pé ou montando em jumento, com sua esposa Maria, que estava na iminência de dar à luz um menino (Lc 2,3-5). Em uma colônia dominada pelo imperialismo romano, por governadores submissos aos interesses imperiais e com a cumplicidade de um poder religioso – o sinédrio – que usava o nome de Deus para excluir e marginalizar a maioria do povo, como trecheiro, estradeiro, “irmão de rua”, migrante, retirante, sem-terra, sem-teto, refugiado, índio, quilombola, migrante e judeu da periferia, nasceu Jesus Cristo na periferia de Belém, pequena cidade do interior. Jesus não nasceu em Jerusalém nem em Roma, capital do império, nem em Brasília, nem na Avenida Paulista e nem nos Estados Unidos. Maria e José tiveram que ocupar um estacionamento de uma pensão da periferia de Belém, porque não tinham dinheiro para pagar hotel ou uma maternidade particular.

Jesus nasce no meio dos pastores (Lc 2,8), os injustiçados e execrados pela classe dominante (saduceus) onde estão os senhores “de bens”, que por cumplicidade reproduzem a desigualdade social. Entre todos os segmentos da classe trabalhadora e camponesa, os pastores e as pastoras eram os/as mais explorados/as, considerados/as impuros/as, principalmente porque não respeitavam as propriedades privatizadas. Para os pastores e pastoras, o território era um bem comum e, por isso, levavam os rebanhos que cuidavam para pastar em outras propriedades. Assim eram considerados invasores de propriedades privadas. Para os pastores e as pastoras, a terra pertencia (e pertence) a Deus e, por isso, era (e é) um bem comum, não pode ser privatizada.

Diz o Evangelho de Lucas que “um anjo de Deus apareceu aos pastores” (Lc 2,9); não apareceu ao imperador, nem ao governador, nem a nenhum sacerdote e nem a nenhuma pessoa considerada “pura”, integrada à sociedade dos “de bens”. São esses pastores e pastoras que reconhecem o nascimento do menino Deus e vêm ao encontro daquele que iria testemunhar um caminho de libertação para todos/as e tudo, a utopia “vida e liberdade para todos/as e tudo” (Jo 10,10).

Nos Evangelhos de Lucas e de Mateus, o nascimento de Jesus não é apresentado de forma neutra diante das contradições e desigualdades sociais. José, Maria, Jesus, os evangelistas e as primeiras comunidades cristãs (autoras dos Evangelhos) fazem opção de classe, têm lado: o lado dos oprimidos e injustiçados. A luz divina foi experimentada pelos pastores e pastoras, em uma noite escura (Lc 2,8-9), como a noite que se abateu sobre o povo brasileiro com a eleição de Bolsonaro e da maioria do Congresso Nacional do Centrão ou da direita opressora, todos vassalos de um capitalismo ultraliberal. A luz e a força divina irromperam naqueles e naquelas que eram os/as mais rejeitados/as na Palestina, colônia do Império Romano.

Nas primeiras comunidades cristãs se lia na época em que nasceu Jesus Cristo o texto do profeta Isaías que dizia: “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz, uma luz raiou para os que habitavam uma terra sombria” (Is 9,1). A primeira mensagem do anjo aos pastores e pastoras foi: “Não tenham medo! Eis uma ótima notícia para todo o povo explorado: hoje, na cidade de Davi, nasceu para vocês um Salvador, que é o Messias, o Senhor” (Lc 2,10-11). Essa mensagem ganha eloquência se recordarmos que quando se elevava um novo imperador ou rei, arautos do império anunciavam a entronização aclamando o que estava sendo entronizado como novo Salvador (soter, em grego) e Senhor (Kurios, em grego). O povo escravizado passou a acreditar no menor: Senhor e Salvador, agora, é o menino-Deus.

As primeiras comunidades cristãs fazem uma revolução copernicana e subvertem a ideologia dominante que divinizava o poder e quem estava no poder. ‘Salvador’ e ‘Senhor’ não será mais o imperador e nenhum rei. ‘Salvador’ e ‘Senhor’ será aquela criança que nasceu no meio dos superexplorados. O anjo alerta: só quem se mistura com os periféricos e com eles convive consegue experimentar o divino se revelando no humano a partir dos porões da humanidade (Lc 2,12). Quem fica distante dos empobrecidos e empobrecidas acumula preconceitos e se desumaniza. Diz o evangelista Lucas que os anjos fazem festa ao experimentar a glória de Deus e a paz (shalom, em hebraico) no meio do povo (Lc 2,14). A glória de Deus brilha quando o humano em todas as pessoas é respeitado e valorizado. Paz como fruto da justiça, shalom, acontece quando construímos relações humanas e sociais a partir da organização popular que conquiste mudanças estruturais que superem a desigualdade social e promove a justiça social com respeito à imensa diversidade cultural, aos direitos da natureza, dos animais e toda a biodiversidade existente no nosso país e no mundo.

Os pastores da região foram a Belém, às pressas, participar do acontecimento” (Lc 2,15-16); não foram a Jerusalém, nem a Brasília, nem às catedrais do deus mercado, nem ao Império do capital, nem ao agronegócio e nem às mineradoras. “E todos os que ouviram os pastores ficaram maravilhados” (Lc 2,18). Quem não ouve, não respeita e nem participa da luta dos/as sem-terra, dos/as sem-teto, dos atingidos pelas mineradoras, dos/as migrantes, dos/as refugiados/as, dos irmãos e irmãs em situação de rua, dos/as indígenas, dos/as quilombolas, das mulheres e dos nossos irmãos e irmãs LGBTTQIs não consegue compreender o divino se tornando humano a partir de Jesus Cristo, uma criança da periferia.

Os pastores e as pastoras reconhecem o poder popular nascido na periferia de Belém, cidade do pastor Davi que se tornou rei bom. “É de ti Belém, a menor entre todas as cidades, que virá o Salvador” (Miq 5,1), bradava a profecia inspiradora do profeta Miqueias.  Etimologicamente Belém (Betlehem, em hebraico) significa Casa do Pão. Belém é a cidade de Davi, o menor entre os irmãos, aquele que organizou os injustiçados da sociedade para lutar por um governo justo, popular e democrático. O verdadeiro “rei dos judeus” não é violento e sanguinário como Herodes, é um recém-nascido, nascido sem-terra e sem-casa e tendo que se exilar às pressas, logo após o nascimento, como refugiado, para não ser assassinado pelo poder repressor de plantão. Segundo o Evangelho de João, o nascido na “Casa do Pão” se tornou Pão da Vida para todos/as (Jo 6,35-59). Os pastores e as pastoras intuem com sabedoria que o poder democrático, participativo e popular vem da periferia, dos injustiçados, dos pequenos.

Belo Horizonte, MG, 21/12/2021. 

Obs.: Os filmes e vídeos nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Frei Carlos Mesters: “O sentido verdadeiro do Natal de Jesus Cristo.” – 17/12/2021

2 - O verdadeiro sentido do Natal, com os freis Carlos Mesters e Gilvander Moreira

3 - Presépio Natal de Jesus pobre: Acampamento na Porta do Palácio da Liberdade, BH/MG: Luta por Moradia

4 - Mensagem de Natal: Deus revolucionário no humano a partir dos últimos - Frei Gilvander - 24/12/2020

5 - Festa de Natal na Ocupação Esperança, Izidora, BH. Fala de Leonardo Péricles, da UP. 23/12/2019

6 - Natal passa pelo respeito ao direito à moradia/Ocupação Vila da Conquista/BH/MG/Vídeo 2 - 23/12/18

7 - Vem, Senhor, com teu povo caminhar!-Celebração do Natal-Ocupação Vila Nova-BH/MG-3a Parte-10/12/2017


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Queers e Pessoas Intersex.

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Sem função social, a propriedade deixa de existir. Por Frei Gilvander

 Sem função social, a propriedade deixa de existir. Por Frei Gilvander Moreira[1]



De forma contundente, o jurista e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Eros Roberto Grau[2] afirma que a propriedade que não cumpre a função social não existe, e, como consequência, não merece proteção, devendo ser objeto de perdimento, e não de desapropriação. Textualmente, pondera Eros Grau, no livro A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica)“[...] a propriedade dotada de função social, que não esteja a cumpri-la, já não será mais objeto de proteção jurídica. Ou seja, já não haverá mais fundamento jurídico a atribuir direito de propriedade ao titular do bem (propriedade) que não está a cumprir sua função social. Em outros termos, já não há mais, no caso, bem que possa, juridicamente, ser objeto de direito de propriedade [...] não há, na hipótese de propriedade que não cumpre sua função social “propriedade” desapropriável. Pois é evidente que só se pode desapropriar a propriedade; onde ela não existe, não há o que desapropriar” (GRAU, 1990, p. 316).

Na mesma linha, de forma incisiva, o jurista italiano Pietro Perlingieri afirma que o proprietário “(...) só recebeu do ordenamento jurídico aquele direito de propriedade, na medida em que respeite aquelas obrigações, na medida em que respeite a função social do direito de propriedade. Se o proprietário não cumpre e não se realiza a função social da propriedade, ele deixa de ser merecedor de tutela por parte do ordenamento jurídico, desaparece o direito de propriedade” (PERLINGIERI, 1971, p. 71).

Na esteira da crítica à acumulação capitalista moderna, a noção de função social da propriedade da terra foi inscrita na Constituição de 1988 (CF/88) graças à luta dos movimentos sociais camponeses desde as Ligas Camponesas que, após conquistarem o Estatuto da Terra, em 1964, preparou o terreno para a inscrição na CF/88. A luta pela terra tem contribuído para a construção de uma nova jurisprudência no Brasil, já existindo várias decisões dos tribunais que reconhecem a ocupação de propriedades que não cumprem a função social como um direito legítimo do povo, muitas vezes, sem-terra e sem-moradia. Portanto, a luta pela terra como pedagogia de emancipação humana tem avançado também no meio jurídico criando a concepção segundo a qual em uma ocupação coletiva de terra o que ocorre não é invasão, mas legítima ocupação de propriedades que, por não estarem cumprindo a função social, desocupadas e ociosas, perdem o direito do pretenso proprietário. Sem função social, o proprietário perde o critério objetivo inerente à propriedade, que é o direito de posse, mantendo somente o critério subjetivo, que é o direito de ser indenizado pela perda do bem imóvel.

Como fruto da luta renhida pela terra, o campesinato organizado conseguiu inscrever na Constituição de 1988 também o artigo 186, que enumera os requisitos indispensáveis para que a propriedade atenda à função social e que já havia sido incluído no Estatuto da Terra, passa a ter a natureza jurídica de princípio fundamental. Pelo artigo 186 da CF/88 toda propriedade deve cumprir, simultaneamente, conforme os graus de exigência fixados em lei – Lei 8629/ 93, quatro critérios: a) o aproveitamento racional e adequado: deve ser produtiva; b) a utilização adequada dos recursos e preservação do meio ambiente: não pode ser monocultura, por exemplo; c) a observância das disposições que regulam as relações de trabalho: não pode haver desrespeito às leis trabalhistas; e d) a exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores: participação dos trabalhadores na renda da propriedade.

Além das quatro exigências constitucionais para se cumprir a função social da propriedade fundiária, outras duas exigências deveriam estar inscritas na Constituição: um limite para a propriedade fundiária e a expropriação da propriedade fundiária sem ter que pagar algo, pois sem um limite de área há capitalistas proprietários de imensas propriedades, o que reforça a acumulação de capital e ao pagar a terra ao ser desapropriada se premia quem não conferiu função social à terra.

Necessário se faz em uma perspectiva histórica, considerando os camponeses injustiçados, analisar como foi concebida ao longo da história da humanidade a ideia de propriedade privada. O filósofo Jean Jacques Rousseau, por exemplo, analisa a criação da propriedade privada da terra como algo que instaura a desigualdade social. “A transformação da terra em propriedade privada absoluta e individual foi um fenômeno da civilização europeia, histórico, recente e datado, espalhado pelo colonialismo ao resto do mundo” (MARÉS, 2003, p. 133). Karl Marx e outros teóricos marxistas elucidam a noção de propriedade dos meios de produção, a terra no nosso caso, e o que isso significa na sociedade capitalista.  Valiosa é a contribuição de István Mészáros (2007), que em A Educação para além do Capital, tece uma perspicaz análise. Diz ele: “Os defeitos específicos do capitalismo não podem sequer ser observados superficialmente, quanto mais ser realmente resolvidos sem que se faça referência ao sistema como um todo, que necessariamente os produz e constantemente os reproduz. A recusa reformista em abordar as contradições do sistema existente, em nome de uma presumida legitimidade de lidar apenas com as manifestações particulares [...] é na realidade apenas uma forma peculiar de rejeitar, sem uma análise adequada, a possibilidade de se ter qualquer sistema rival e uma forma igualmente apriorística de eternizar o sistema capitalista. “Mudança gradual” é disfarce para continuar o mesmo sistema. As mudanças são admissíveis apenas com o único e legítimo objetivo de corrigir algum detalhe defeituoso da ordem estabelecida, de forma que sejam mantidas intactas as determinações estruturais fundamentais da sociedade como um todo, em conformidade com as exigências inalteráveis da lógica global de um determinado sistema de reprodução” (MÉSZÁROS, 2007, p. 197). Enfim, uma das colunas mestras do capitalismo, a propriedade privada capitalista deixa de existir sem o cumprimento da função social, que é a coluna mestra da propriedade. Não basta apresentar escritura e registro da propriedade, sem a comprovação da função social desta propriedade. Portanto, ocupar propriedades que não cumprem a função social, no campo e na cidade, é um direito constitucional. 

14/12/2021

Referências

GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica). São Paulo: Revista dos tribunais, 1990.

MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003.

MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. In: MÉSZÁROS, István. O desafio e o fardo do tempo histórico: o socialismo do século XXI. São Paulo: Boitempo, p. 195-223, 2007.

PERLINGIERI, Pietro. Introduzione allá problematica della proprietáCamerino: Jovene, 1971.

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - FUNAI VISITA Retomada Kamakã Mongoió, em Brumadinho, MG: mandioca, água e recepção à FUNAI. Vídeo 1

2 - Injusto despejar 30 famílias da Ocupação Vila Fazendinha em BH. Jogá-las na rua? Vídeo 4 - 11/12/21

3 - "O Governo de MG e o TJMG vão despejar a Ocupação Vila Fazendinha em BH e nos jogar na rua?" Vídeo 3

4 - Crianças e mães CLAMAM para não ser despejadas na Ocupação Vila Fazendinha, Belo Horizonte. Vídeo 2

5 - Quatro conquistas em 4 dias e 4 noites de Acampamento na Porta do Palácio da Liberdade. BH, 10/12/21

6 - Carreata contra mineração da Larf e MIB na Serra do Pico Três Irmãos, em Mário Campos/MG. Água, SIM!

7 - Ato Público para engrossar o Acampamento na Porta do Palácio da Liberdade, BH/MG: 3ª noite – 9/12/21

8 - Ameaça de despejo da Ocupação Vila Fazendinha, em Belo Horizonte, MG. Alto lá! Vídeo 1 – 08/12/21



 

 

 

 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

[2]  Jurista brasileiro. Foi ministro do STF de 2004 a 2010.