quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Conviver com o diferente nos humaniza. Por Frei Gilvander

 Conviver com o diferente nos humaniza. Por Frei Gilvander Moreira[1]

 

 Viver é belo e bom, mas conviver é melhor. Contudo, para tanto, há que aprender a se relacionar com o diferente, o que é um desafio que nos humaniza, se a gente não se fecha no nosso mundinho, às vezes medíocre. Por que é tão difícil conviver com o diferente? No Brasil, tornou-se difícil conviver com as diferenças por vários motivos, mas, principalmente, porque vivemos em uma sociedade capitalista, uma sociedade estruturada para reproduzir a opressão, a discriminação, a violência social e negar a beleza e a importância do outro na nossa vida. O comportamento geral é marcado por falsos valores que são trombeteados aos quatro ventos e seduzem as pessoas: o individualismo, o consumismo, o ter, o acumular, o competir. Isso desumaniza as pessoas, pois ninguém é uma ilha, vivemos interconectados na teia da vida. Viver é belo, mas conviver é muito mais belo e imprescindível. Conviver dá mais sentido à vida e é uma via de mão dupla, mas para conviver é preciso conhecer o outro e para conhecer é preciso conviver. Para conviver é preciso ouvir e dialogar. Dialogar supõe respeito e  este, por sua vez, supõe viver o amor para além de um sentimento, como ética da vida e como exercício cotidiano de vida. O diferente de nós que não é opressor não é uma ameaça. É algo que pode nos fazer melhor como seres humanos. E em tempos de mundo virtual e de pandemia, com o necessário isolamento social e/ou o distanciamento físico, o diálogo se torna mais desafiador e necessário. É preciso exercitar. Eu me sinto mais humano depois que passei a conviver com pessoas de religiões de matriz ancestral africana, com pessoas que se declaram ateias, com pessoas com orientação homoafetiva nas suas mais distintas formas de concepção de si mesmas. Pessoas que seguiram toda sua vida tentando se entender enquanto seres humanos neste mundo, vivendo tantas formas de angústia e de sofrimento por não serem escutadas e nem compreendidas, por causa da falta de diálogo.

Por que em pleno século XXI, o preconceito e a intolerância no Brasil estão crescendo? Até quando uma minoria com poder econômico, político, midiático e religioso vai impor o modo da maioria das pessoas existirem? O preconceito, a discriminação e a intolerância se reproduzem cotidianamente no Brasil, injustamente. Vivemos sob um sistema econômico que idolatra o mercado desde 1500, quando europeus colonizadores invadiram o Brasil e iniciaram o processo de exploração.  Estima-se que existiam no Brasil mais de 1.200 povos indígenas falando cerca de 1.200 línguas. Há 521 anos, perduram no Brasil relações sociais escravocratas, de dominação, ou seja, estruturas legais, políticas e econômicas que reproduzem e ampliam a injustiça social, a escravização, a intolerância, a discriminação e o preconceito,. Isso beneficia a classe dominante, pois se admitirem que toda pessoa deve ser respeitada na sua dignidade humana não poderá haver um monte de violências sorrateiras que são impostas à maior parte da população. Até 13 de maio de 1888, reinava no Brasil, oficialmente, a escravidão, com milhões de irmãos e irmãs nossos, povo negro arrancado à força da mãe África, onde viviam em liberdade, e jogados em navios negreiros – mais de 12,5 milhões de negros e negras escravizados/as – milhares jogados ao mar durante a travessia. No Brasil, como mercadoria foram escravizados, vendidos e açoitados no pelourinho. Os relatos da escravidão no Brasil são dramáticos e horripilantes. Em 1850, com a Lei de Terras, fizeram o cativeiro da terra, 38 anos antes de se fazer a abolição formal e mentirosa da escravidão. Legalizaram a escravidão da terra ao determinar legalmente com a Lei 601, de 1850, que poderia acessar a terra apenas quem por ela pagasse. Os negros e negras escravizados/as não podiam comprar terra, pois foram libertados de mãos vazias, pavimentando, assim, o caminho para a escravidão contemporânea que persiste até hoje. Assim, para justificar a tremenda injustiça das atuais leis trabalhistas e previdenciárias, é preciso estimular cotidianamente preconceito, discriminação e intolerância, tudo para disseminar a ideologia segundo a qual a maioria da classe trabalhadora deve sobreviver na miséria apenas com migalhas, enquanto a elite goza luxo e mordomia. Não são por acaso as discriminações e intolerâncias, elas são estrategicamente planejadas e executadas. Quem ganha muito com as discriminações e intolerâncias é a classe dominante. Caluniar, difamar e injuriar de muitas formas é antessala para explorar e violentar logo em seguida, pela marginalização, exclusão, empurrando as pessoas para sobreviver sendo humilhadas de mil formas.

Ao longo da história da humanidade, sempre a classe dominante escolhe os grupos que serão os bodes expiatórios e as bruxas a serem execradas. Antes, foram os bárbaros, os gentios, as bruxas, os considerados hereges e atualmente continuam sendo as mulheres, os negros e as pessoas LGBTQI+, entre outros. Em uma sociedade capitalista, quem tem poder econômico passa a ter poder político e jurídico e com esses poderes nas suas garras definem na prática quem deve ser discriminado e excluído da mesa farta da classe dominante. Se não discriminarem, terão que partilhar terra, riqueza, renda e poder. Se houver a partilha, todos ficarão em pé de igualdade e deverão ser respeitados. Logo, manter e reproduzir as discriminações são condições necessárias para manter a injustiça social que garante o luxo e a mordomia de uma minoria à custa da subjugação da maioria do povo.

Há vários tipos de preconceitos, de discriminação e de intolerância: os escrachados, os sutis, os mascarados, os que falam com “voz mansa”, mas apunhalando pelas costas, entre outros. Precisamos sempre nos perguntar: o jeito com o qual eu analiso a realidade, os problemas, as injustiças e as violências beneficia a quem? Se minha análise da realidade ajuda a reproduzir na prática as violências, então estou sendo reprodutor/a da ideologia dominante, que é um mascaramento da realidade. Se assumo a ideologia dominante repleta de ideias da classe dominante, ideias particulares, difundidas como se fossem ideias universais, mas são apenas os pontos de vistas da elite que está no poder, ideias que lhes interessam, assumo que não sou neutro e, de fato, ninguém o é: consciente ou inconscientemente, voluntária ou involuntariamente, todos nós temos lado e sempre tomamos partido diante das situações de conflitos. Inclusive quem diz “sou neutro” jamais é neutro. Em uma sociedade com brutal injustiça social, quem diz ser neutro está se colocando do lado dos opressores e exploradores. A partir de qual lugar social pensamos e agimos? “O lugar social determina o lugar epistemológico”, diz Karl Marx. Ou seja, se vivo na periferia sendo marginalizado, vejo o mundo a partir da ótica da periferia. Quem faz parte da pequena burguesia, eufemisticamente chamada de classe média, vê o mundo a partir da classe média. Quem é empresário vê o mundo a partir da empresa. Quem é latifundiário ou empresário do agronegócio vê a realidade a partir do latifúndio. Estando em uma sociedade injusta socialmente, faz-se necessário sempre perguntar: a partir de qual lugar social estou falando, pensando e agindo? Isso para que “oprimido não seja hospedeiro de opressor”, para que “explorado não seja cúmplice dos exploradores”. Pois a opressão não seria tão forte se os exploradores e violentadores não encontrassem apoiadores no meio dos explorados e violentados, já dizia Hannah Arendt.

Para superarmos os preconceitos, as discriminações e a intolerância temos que fazer muitas coisas de forma sincronizada. A primeira, é adquirirmos um jeito crítico de ler e interpretar a realidade. Temos que reconhecer que ninguém nasce santo ou endiabrado. Nascemos humanos e as condições sociais objetivas podem nos humanizar ou nos desumanizar. Já dizia Rousseau: "O homem nasce bom, a sociedade é que o perverte". Urge conviver com pessoas e grupos injustiçados/as. Sentarmos todos e todas na mesma mesa e partilhamos a vida, a fé, o pão, as alegrias e as dores. Entretanto, essa mesa, a da partilha e do diálogo, precisa ser no mundo dos empobrecidos e injustiçados. O Deus, mistério de infinito amor, invocado sob muitos nomes, se apaixonou pelo outro, o diferente: o humano. E armou sua tenda entre nós a partir dos últimos: sem-terra, sem-casa, sem dignidade.

Que a Campanha da Fraternidade Ecumênica de 2021 desperte em nós a maravilha que é conviver com o outro, o diferente, irmão ou irmã que nos dignifica![2]  

 

24/02/2021

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 – Capitã Pedrina: "Acordão é desgoverno, é desrespeitos aos atingidos/as. Reverenciamos a Natureza." – 03/02/2021

2 - Diálogo Inter-Religioso e Ecologia Integral - CFE 2021 - Por frei Gilvander - 22/2/2021

3 – A beleza do macroecumenismo na luta pelo bem comum - CFE 2021- Por frei Gilvander - 22/2/2021

4 - Hino da Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021: vozes de diversas denominações cristãs de Curitiba

5 - Campanha da Fraternidade Ecumênica de 2021: Conversa de Camila Oliver, Frei Gilvander e Paulo França

6 - (Macro)ecumenismo, SIM! Diálogo e Fraternidade em defesa da vida - Por frei Gilvander - 18/2/2021

7 - "Fraternidade e Diálogo: Compromisso de Amor": Campanha da Fraternidade 2021. Por Frei Gilvander

8 - Texto-Base da Campanha da Fraternidade Ecumênica (CFE/2021)

http://gilvander.org.br/site/%ef%bb%bfcampanha-da-fraternidade-ecumenica-de-2021-tema-fraternidade-e-dialogo-compromisso-de-amor-lema-cristo-e-a-nossa-paz-do-que-era-dividido-fez-uma-unidade/

 

 

 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Tributo-Homenagem ao Padre Nelito Dornelas: extraordinário legado espiritual, ético, pastoral, teológico e profético

 Tributo-Homenagem ao Padre Nelito Dornelas: extraordinário legado espiritual, ético, pastoral, teológico e profético (Live gravada em 13/2/2021) - 16/2/2021


*Promoção: CPT-MG, CEBs de MG, CEBs do Brasil, CNLB e Cáritas MG. Mediador: Frei Gilvander, da CPT, das CEBs, do CEBI, do SAB e da assessoria de Movimentos Populares em Minas Gerais.


Edição: Nádia Oliveira, colaboradora da CPT-MG.

Acompanhe a luta pela terra e por Direitos também via www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com  www.cebimg.org.br  - www.cptmg.org.br - www.cptminas.blogspot.com.br   

No Instagram: Frei Gilvander Moreira (gilvanderluismoreira)

No Spotify: Frei Gilvander luta pela terra e por direitos

*Inscreva-se no Canal Frei Gilvander Luta pela Terra e por Direitos, no link: https://www.youtube.com/user/fgilvander , acione o sininho, receba as notificações de envio de vídeos e assista a diversos vídeos de luta por direitos sociais.

Se assistir e gostar, compartilhe. Sugerimos. #DespejoZero #PalavraÉticacomFreiGilvander #ÁguasParaaVida #BarragemNão #FreiGilvander #NaLutaPorDireitos #PalavrasDeFéComFreiGilvander                                                       

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Diálogo inter-religioso e Ecologia Integral. Por Frei Gilvander

 Diálogo inter-religioso e Ecologia Integral. Por Frei Gilvander Moreira[1]

 

Fotos: Divulgação / www.cesep.org.br


Que beleza espiritual, ética e profética a 58ª Campanha da Fraternidade, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a 5ª Ecumênica, em 2021, sob coordenação do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC) – CFE 2021 -, com o Tema: “Fraternidade e Diálogo: Compromisso de Amor”; e o Lema: “Cristo é a nossa Paz: do que era dividido, fez uma unidade” (Efésios 2,14)!

De forma sórdida, moralista e fundamentalista, um tal Centro dom Bosco, que não é da idônea Congregação dos Salesianos, mas um grupinho de fanáticos reacionários de direita, consciente ou inconscientemente, está insuflando a manutenção e a reprodução de posturas homofóbicas, preconceituosas e de violência contra as mulheres. Ignorando os ensinamentos dos Papas João XXIII, Paulo VI, os documentos do Concílio Vaticano II e do Papa Francisco, “com voz mansa” tem a cara de pau de defender privilégios e discriminações, chegando ao absurdo de defender quem pratica política de morte (necropolítica). São religiosos burgueses que torturam textos bíblicos e usam em vão o nome de Deus para discriminar as mulheres e as pessoas com orientação homoafetiva. Devem ser ignorados. Seus vídeos, cujo grande número de visualizações é resultante de “compras e artificialidades”, são caluniadores da CNBB e do CONIC. Eis dois sinais gravíssimos que esse grupinho fanático ignora: Em 2018, por homofobia, 420 irmãos e irmãs nossos/as do grupo LGBTQIA+ foram assassinados e, por feminicídio, 4.519 mulheres foram mortas, o que equivale a dizer que a cada duas horas uma mulher é assassinada no Brasil, 48 mulheres por dia. De forma justa, ecumênica e necessária, o CONIC e a CNBB, no Texto-Base da CFE 2021, analisam de forma crítica a realidade brasileira tremendamente desigual e recheada de discriminações, intolerância e violências, que devem ser superadas. Quer seja por motivação religiosa ou orientação afetiva/sexual, nenhuma forma de discriminação ou intolerância deve ser aceita. E o Texto-Base sugere pistas concretas para colocarmos em prática o diálogo ecumênico e macroecumênico, como compromisso de amor indispensável na construção de uma sociedade justa, fraterna, ecológica, com admiração e respeito à imensa diversidade existente no nosso país.



Quem fica em oásis de privilégios e se agarra em doutrinas abstratas se torna desumano e alimenta posturas narcisistas que levam a várias formas de violência. De outra forma, a convivência com os pobres e com o diferente faz desabar edifícios erigidos em cima de preconceitos. Quem não conhece o outro e de longe aponta o dedo para julgar de forma fundamentalista e moralista violenta as relações humanas. A mamãe Leontina Rosa de Souza sempre dizia: “para conhecermos alguém precisamos comer um saco de sal juntos”. Ou seja, é pela convivência que a gente passa a conhecer a beleza humana existente no outro, que é diferente. E, ao admirar a beleza do outro, a gente se abre para respeitar e amar quem é diferente e não oprime. Na luta pela terra, pela moradia e pela construção de uma sociedade do Bem Viver e Conviver com sustentabilidade socioambiental, ao lado dos/os atingidos/as pelos crimes/tragédias da mineradora Vale S/A e do Estado, tenho a alegria de conviver com pessoas de muitas igrejas e religiões, vários pastores e pastoras, pais e mães de santo, do Candomblé e da Umbanda, e também com pessoas que seguem o espiritismo. Nunca vi no ensinamento deles e delas e nem nas suas práticas nenhuma postura de discriminação e de intolerância contra católicos, ou evangélicos ou (neo)pentecostais. Sofrendo as mesmas injustiças, estamos juntos e unidos na luta pela bem comum. Sem fazer proselitismo, as pessoas pertencentes a religiões de matriz africana ou indígena apenas reivindicam o direito de manter suas tradições religiosas, a “rezar/orar” de um jeito que é próprio deles. Na esperança de contribuir com o diálogo inter-religioso, com profunda reverência pela Natureza, que é sagrada, e como denúncia de racismo estrutural, partilho, abaixo, um pouco da beleza espiritual, mística, ética e profética da senhora Pedrina de Lourdes Santos, que bradou de forma exuberante na live “Do luto à luta: Vozes do Paraopeba – E o Acordão da Vale S/A com o Governo de Minas Gerais?”, dia 03/02/2021. Pedrina é capitã do Congado de Moçambique há 41 anos, 48 anos no Reinado, é mãe de santo da Umbanda, iniciada no Candomblé e uma das grandes lideranças da luta das comunidades atingidas pelo crime/tragédia da Vale S/A e do Estado da Bacia do Rio Paraopeba, em Minas Gerais. De cabeça erguida, a capitã Pedrina mexeu com todos/as que assistiam à live. Bradou ela:



Eu sou Pedrina de Lourdes Santos. Capitã de Moçambique, há 41 anos e 48 anos no Reinado. Nos últimos anos, iniciei-me no candomblé, sendo que eu nasci de pais umbandistas e há mais de 20 anos eu sigo com as reuniões de umbanda levando à frente a nossa fé, a nossa tradição. Estamos aqui para, mais uma vez, denunciar para a sociedade brasileira e para o mundo o que está acontecendo aqui nas Minas Gerais, a partir de Brumadinho, depois do rompimento da barragem da mina Córrego do Feijão, da mineradora Vale S/A. Vieram como consequências coisas muito tristes. Primeiro, vidas humanas se perderam em meio ao lamaçal desenfreado causado pela inoperância, pela irresponsabilidade da Vale S/A, porque havia sinais desse rompimento. Um crime que poderia ser impedido não foi, trazendo como consequências a tristeza, o desespero para milhares e milhares de pessoas em toda a bacia do Rio Paraopeba. E nós, que somos descendentes dos povos de religião ancestral de matriz africana, assim entendendo os Reinados, a Umbanda, o Candomblé, ficamos terrivelmente prejudicados, porque a nossa fé, devoção, a nossa alma, nossa maneira de ser está na Natureza, onde se dá o nosso culto. Nós reverenciamos a Natureza. O grande criador, invocado sob tantos nomes, é a própria Natureza. Sem a Natureza, nós, os seres criados, não nos perpetuamos, não continuaremos a vivência. Nós estamos impedidos de realizar nossos cultos, de reverenciar a própria Natureza, os nossos antepassados e os nossos ancestrais. Toda a Natureza, com a fauna e a flora, está terrivelmente danificada. Exigimos reparação integral, pois é direito nosso, em toda a bacia do Rio Paraopeba. Nós não pedimos favores, reivindicamos direitos constitucionais. O Estado de Minas Gerais e as instituições de Justiça estão de portas fechadas para nós atingidos/as, sem transparência e sem informação, fazendo acordos que não nos convêm, sem ouvir a cada um de nós atingidos/as.  Nosso povo está adoecido pelos metais pesados que rolaram junto com a lama tóxica, após o rompimento da barragem da Vale S/A em Brumadinho. Muita gente perdeu o seu ganha-pão, pois dependiam das águas correntes e límpidas do Rio Paraopeba. Água é vida. O que se fará com tanto dinheiro, sem a vida? O que vale a vida com dinheiro, sem a água? Sem água doce, como é que vamos viver? Nosso grito é por todas as vidas: vidas humanas, vidas animais, vidas vegetais e vidas minerais. Tudo está interligado. As pessoas também estão perdidas, porque foram afetadas na sua saúde física, mental e emocional, por causa desse desgoverno, que é resultado do sistema capitalista que não deu certo e nunca dará certo, pois valoriza o capital em detrimento da vida das pessoas. Estamos numa luta gigantesca, como a luta de Davi contra Golias. As pessoas estão praticamente morrendo à míngua por falta de saúde pública que não existe. A primeira coisa que se tem que preocupar é se tem água e como é que nós vamos ter saúde. Verificar a contaminação no ar, na terra e no corpo das pessoas.  Como é que eu vou cantar para minha mãe da água doce, para a senhora guardiã, se eu não vejo mais as águas límpidas do rio Paraopeba, que nos possibilitava perpetuar o nosso culto que vem de geração para geração há séculos? Como é que nós vamos ficar aqui sem água? Eles estão querendo nos matar. A minha proposta, meus irmãos e irmãs de toda a bacia do Rio Paraopeba, é que nós vamos sair daqui com a seguinte proposta: se combinaram de nos matar, nós estamos combinando de nos manter vivos na luta até a vitória, juntamente com os povos donos dessa terra chamada Brasil, chamada Minas Gerais, os nossos irmãos indígenas, que também ao longo da Bacia do Rio Paraopeba sofrem com todo tipo de desprezo. Estamos juntos nessa luta para vencer, porque o legado dos nossos antepassados, de nossos ancestrais que floresceram na luta e que deixaram para nós tantos conhecimentos, e é por tantos entendimentos que nós sabemos respeitar a natureza mais do que as autoridades. Nós sabemos ser sensíveis à dor do outro, à lágrima do outro. Admiramos, respeitamos e amamos toda a natureza, que é sagrada. Como é que as autoridades do Estado de Minas Gerais, de Brumadinho, dos Ministérios Públicos Estadual e Federal e das defensorias públicas estadual e da União estão conseguindo deitar a cabeça no travesseiro e dormir com tanta dor, com tanto sangue derramado e com tantos clamores? O Brasil precisa saber que os atingidos e as atingidas não estão sendo considerados, não estão sendo ouvidos, estão desprezados e ignorados. Nós, os povos de tradição de matriz africana, totalmente invisíveis como se nós não existíssemos, denunciamos: ninguém quer nos ver. Deve ser porque incomodamos muito toda vez que juntos entoamos nossas toadas no reinado e nos terreiros. Toda vez que toca um tambor, a vibração desse tambor mexe com o mundo, mexe com a terra, mexe com mar, mexe com as águas dos rios, mexe com as matas, mexe com os animais. Isso é um pulsar, um sentido, que não se aprende na academia, se aprende no dia a dia, no viver, no lutar, no saber aonde tem água e onde é possível tirar um poço e não destruir as fontes dos riachos e dos rios. Como eu aprendi desde criança, repito e vou repetir vida afora: nós negros somos como Aroeira - aroeira para quem não sabe é uma árvore que verga, mas não quebra - esse é o nosso legado, esse é o nosso entendimento. Nós temos um tronco, nós temos uma raiz, nós temos uma sabedoria, um conhecimento que os que estão nos representando não têm. O acordão da Vale S/A com o Governo de Minas Gerais é um desgoverno, um desrespeito aos atingidos/as, uma irresponsabilidade. Sigamos na luta pelos nossos direitos com a bênção do nosso Criador, de Jesus, do Espírito Santo, de Nossa Senhora do Rosário, Senhora das Mercês e de São Benedito. Muito obrigada”.

 Capitã Pedrina, que maravilha seu pronunciamento! Você nos presenteou com uma Aula Magna. O mundo será melhor quando as pessoas admirarem, respeitarem e venerem a Natureza como você nos afirmou, acima.  Dói muito no meu coração quando eu vejo pessoas que se dizem católicas, ou evangélicas, ou (neo)pentecostais revelarem preconceito e muitas vezes criminalizar as religiões ancestrais de matriz africana ou indígena, chegando ao absurdo de destruir terreiros. Tem alguma violência e algo errado nesse testemunho transparente de humanidade, de fraternidade que a capitã Pedrina, mãe de santo e nossa mestra partilhou conosco? Enfim, eis uma amostra da beleza do macroecumenismo colocado em prática na luta pelo bem comum, não “apesar da fé de cada um/a”, mas “por causa da fé de cada um/a”. Isso é o que a Campanha da Fraternidade Ecumênica de 2021 pede de todos/as nós. Feliz quem acolhe a CFE 2021, a coloca em prática e, assim, contribui na construção de uma sociedade do Bem Viver e Conviver com Ecologia Integral![2]

16/02/2021

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 – Capitã Pedrina: "Acordão é desgoverno, é desrespeitos aos atingidos/as. Reverenciamos a Natureza." – 03/02/2021



2 - Hino da Campanha da Fraternidade de 2021. Tema: Fraternidade e Diálogo, compromisso de Amor.

3 – Texto-Base da Campanha da Fraternidade Ecumênica (CFE/2021)

http://gilvander.org.br/site/%ef%bb%bfcampanha-da-fraternidade-ecumenica-de-2021-tema-fraternidade-e-dialogo-compromisso-de-amor-lema-cristo-e-a-nossa-paz-do-que-era-dividido-fez-uma-unidade/

4 - No CEDEFES: INDÍGENAS EM BH/MG: PRECONCEITO, DISCRIMINAÇÃO E VIOLÊNCIA. 1ª PARTE/23/4/2018.

5 - Makota, candomblecista, no MP/DH de MG: por direitos das pessoas de religião afrodescendente

6 - Pai Juvenal de Oxalá: Diversidade Religiosa-Umbanda. E. M. Machado de Assis - Contagem, MG, 23/11/17



 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.

 

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Fraternidade e Diálogo: Compromisso de Amor (CFE/2021). Por Frei Gilvander

Fraternidade e Diálogo: Compromisso de Amor (CFE/2021). Por Frei Gilvander Moreira[1]

 

Desde 1963, há 58 anos, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), anualmente, durante os 40 dias da quaresma, promove a Campanha da Fraternidade (CF), - de cinco em cinco anos ecumênica a partir de 2000, sob coordenação do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC), que tem colocado para estudo, reflexão e ação assuntos desafiadores, clamores ensurdecedores no seio da sociedade. Para este ano de 2021, o Tema é “Fraternidade e Diálogo: Compromisso de Amor”. E o Lema: “Cristo é a nossa Paz: do que era dividido, fez uma unidade” (Efésios 2,14).

Na viagem da CFE/2021, a primeira PARADA é para Ver a Realidade. Somos convidados/as a ver que o mundo está marcado por graves e múltiplas injustiças e violências; brutal desigualdade socio-espacial; política de morte ou “necropolítica”, segundo o camaronês Achille Mbembe, que “é a política em que o Estado se julga soberano para escolher quem morre e quem vive. Na lógica da necropolítica, a humanidade do outro é negada. São estimuladas políticas de inimizade. A violência praticada pelo Estado é legitimada e justificada. No caso brasileiro, sinais da necropolítica são perceptíveis em setores da segurança pública que é altamente repressiva e violenta contra pessoas negras e pobres. Da mesma forma, pode-se ver a necropolítica na não regularização dos territórios indígenas, ou quando o governo brasileiro não adota políticas efetivas no combate à pandemia da Covid-19. A necropolítica se volta contra as maiorias falsamente consideradas minorias: juventude negra, mulheres, povos tradicionais, imigrantes, grupos LGBTQI+, todas e todos que, por causa de preconceito e intolerância, são classificados como não cidadãos e, portanto, inimigos do sistema.” (Texto-Base da CFE/2021, p. 29, n. 58). Estamos sob o governo de políticos fascistas e genocidas; subjugados por uma economia capitalista neoliberal, neocolonial e concentradora de riqueza nas mãos de poucas pessoas e de empresas transnacionais; enfrentamos a devastação ambiental crescente perpetrada por grandes empresas de monoculturas do capim, da soja e do eucalipto, só para citar algumas das culturas praticadas pelos agronegociantes, empresários do campo que com uso indiscriminado de agrotóxicos, em latifúndios, com o uso de tecnologia de ponta e muitas vezes trabalho análogo à escravidão produzem não alimentos, mas commodities para acumulação de capital enquanto promovem a desertificando dos territórios.



Diretora de Saúde Pública e Meio Ambiente da Organização Mundial da Saúde (OMS), a médica María Neira afirma que a pandemia do coronavírus é mais uma prova da perigosa relação entre os vírus e os desmatamentos. Em livro diz ela: “Os vírus do ebola, sars e HIV, entre outros, saltaram de animais para seres humanos depois da destruição de florestas tropicais.” Estamos também no meio de crises múltiplas: interpessoal, familiar, social, institucional, entre outras, que se fortalecem na falta de diálogo, o que reproduz e fomenta muitos ‘vírus’ que adoecem o tecido social, tais como: egoísmo, individualismo, fundamentalismo, consumismo, proselitismo, racismo. Tudo isso alimenta um caldo cultural de violência, intolerância, indiferença e extremismo.

A pandemia da COVID-19 acentuou dramaticamente uma série de problemas humanos no mundo. A humanidade está fazendo a experiência do medo, da impotência, da angústia, da fragilidade, vulnerabilidade, incerteza, da dependência, mas também descobrimos que jamais poderemos voltar à normalidade de antes, pois foi a “normalidade” capitalista que gerou a pandemia. Voltar ao ‘normal’ significa atrair outras pandemias que poderão ser cada vez mais letais. Como ponta do iceberg da injustiça social, estamos no meio de uma realidade capitalista com elevadíssimo número de homicídios por ano, sobretudo, de jovens negros e negras empobrecidos e empobrecidas, que somam 30.873 assassinados só em 2018. O feminicídio está crescendo: em 2018, 4.519 mulheres foram assassinadas, o que equivale a dizer que a cada duas horas uma mulher é assassinada no Brasil. Outra opressão é aquela que se refere à amputação de direitos trabalhistas e previdenciários promovida pelas reformas das leis trabalhista e previdenciária, que não mexeram nos privilégios do judiciário, dos militares e nem da classe política. A rejeição, a agressão e a violência contra as “minorias” se reproduzem cotidianamente: indígenas, LGBTQIA+... (em 2018, por homofobia, 420 irmãos e irmãs nossos/as do grupo LGBTQIA+ foram assassinados). Não nos esqueçamos dos/as estrangeiros/as escravizados/as: “Aproximadamente 12,5 milhões de pessoas africanas foram embarcadas à força nos navios negreiros para serem escravizadas. Pelo menos 1,8 milhão dessas pessoas morreram na travessia do Atlântico” (Cf. GOMES, 2019, p. 19). “Escravização e racismo são cruzes diariamente fincadas entre populações negras e indígenas para a manutenção de privilégios para uma elite bem restrita, que é branca, cuja riqueza, em alguns casos, é originária da escravização de pessoas africanas em tempos passados e que deseja a garantia de sua hegemonia econômica, política e social”, denuncia o profético Texto-Base da CFE/2021, n. 88. Outra forma de dominação se reflete nos altos índices de violência policial e no assassinato de defensores dos Direitos humanos (Em 2017: 156 líderes assassinados no Brasil). E tem ainda a agressão ao meio ambiente: desmatamento e extrativismo ilegais, queimadas, poluição dos rios e nascentes. A violência contra os/as encarcerados/as está sendo brutal. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), até julho de 2020: 882.309 pessoas encontram-se em presídios, muitos deles são na prática novos campos de concentração, novos navios negreiros. Para os pobres e negros, a mão de ferro do direito penal e para empresários e políticos o direito processual que prorroga indefinidamente os julgamentos e as condenações, garantindo impunidade. No Brasil há punição em demasia para os pobres e negros e impunidade generalizada para criminosos da classe dominante.

Na segunda parada da viagem da CFE/2021, somos chamados a JULGAR, não de forma moralista, mas com as luzes das ciências humanas críticas analisar a conjuntura, recordar e perceber a mão maravilhosa, cuidadora, solidária e libertadora de Deus agindo na história das pessoas, das comunidades e na sociedade, Deus de todos os nomes. Para quem é pessoa cristã, o Deus que fez Opção pelos escravizados sob as garras do imperialismo dos faraós no Egito, ouviu seus clamores, desceu para libertá-los e marcha com o povo nos processos libertários. Esse Deus conta conosco para que um sonho bom se realize: “Amor e Verdade se encontram, Justiça e Paz se abraçam” (Sl 85,11) e “a Justiça caminhará à frente” (Sl 85,14). Como testemunha do Pai, Jesus Cristo caminhou no mundo sendo solidário com os/as injustiçados/as e incomodando os opressores ao lutar por Justiça. Jesus não só cuidava das ovelhas feridas, mas enfrentava os lobos agressores do rebanho. Por denunciar suas posturas injustas, Jesus foi perseguido por saduceus, que eram os latifundiários-empresários da época, por Herodes e César, representantes do poder político opressor e pelos chefes do poder religioso opressor, Anás e Caifás. 

Para construirmos relações sociais que viabilizem fraternidade social, ecológica, religiosa ... exige-se diálogo. Porém, diálogo não pode ser apenas troca de palavras – comunicação – entre duas ou mais pessoas, onde uma fala e a/as outra/s ouve/m e vice-versa. Há falsos diálogos que na verdade são monólogos. E há autoritarismo com o uso de palavras educadas e aparentemente suaves. Como caminho para a paz social, como fruto da justiça, o diálogo precisa ser crítico e criativo, não ingênuo. Os/as discriminados/as e injustiçados/as precisam dialogar em pé de igualdade ouvindo atentamente a realidade, a experiência e os clamores do outro integrante da mesma classe pisada e violentada. De outra forma, o diálogo entre oprimidos e opressores, entre explorados e exploradores, precisa ser diferente. Um sem-terra jamais dialogará com latifundiário ou agronegociante do mesmo jeito que dialoga com um indígena, um quilombola, um negro da periferia, um integrante do grupo LGBTQI+, alguém que possui alguma deficiência física ou mental etc. Como não devemos amar todas as pessoas da mesma forma, não dá para dialogar com todos da mesma forma. O diálogo entre os/as oprimidos/as e injustiçados/as deve ser espaço de partilha e de socialização do que precisa uni-los e organizá-los para travarem conjuntamente lutas libertárias. Por outro lado, o diálogo com opressores e violentadores precisa ser com opção de classe que exige respeito, o que passa necessariamente por arrancar as armas de opressão das mãos dos opressores. Todos os cordeiros que arriscaram individualmente a dialogar com lobos foram devorados. Ao final de um diálogo com um ‘jovem rico” (Cf. Mateus 19,16-22), Jesus Cristo conclamou o ‘jovem rico’ a uma mudança radical de vida: “Vá, venda tudo o que tem e partilhe com os pobres” (Mt 19,21). No templo, não para sacrificar, mas ensinando, ao perceber a falta de verdadeiro diálogo de doutores da lei e fariseus que ameaçavam de morte uma mulher por apedrejamento (Cf. João 8,3-13), Jesus de Nazaré, em diálogo autêntico, em postura de quem não condena e nem julga, conclamou a autocrítica e defendeu a mulher ameaçada: “Quem de vocês não tiver pecado, atire nela a primeira pedra” (Jo 8,7).

Na terceira parada, no Agir, a CFE/2021 nos convida a promover o diálogo ecumênico e inter-religioso, a superar os fundamentalismos e dogmatismos; a superar a violência contra religiões de matriz africana, contra mulheres, contra irmãos/ãs LGBTQIA+. Nas relações com irmãos e irmãos de outras igrejas e religiões precisa existir não apenas tolerância ou compreensão, mas RESPEITO. “Exigimos respeito e não apenas tolerância ou compreensão”, dizem de forma pertinente nossos irmãos/as espíritas, pais e mães de santo do Candomblé e da Umbanda. “O orgulho religioso levanta muros” (Texto-Base da CFE/2021, n. 133), mas o conhecimento do outro gera amor e respeito, o que edifica pontes humanizadoras. Convida-nos também a cuidar da Casa Comum lutando para construirmos uma Sociedade do Bem Viver e Conviver, o que implica superar o sistema capitalista, máquina de moer vidas, e os mitos do progresso e do desenvolvimento econômico só para uma minoria, o que tem aprofundado o abismo da desigualdade social.

O profeta Isaías denuncia a hipocrisia religiosa: “Mesmo quando estão jejuando, vocês só cuidam dos próprios interesses e continuam explorando quem trabalha para vocês” (Isaías 58,3). Isaías aponta o que precisa ser verdadeiro jejum, ou seja, a essência da dimensão religiosa: “acabar com as prisões injustas, desfazer as correntes do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e despedaçar qualquer jugo, repartir a comida com quem passa fome, hospedar em sua casa os pobres sem abrigo, vestir aquele que se encontra nu e não se fechar à sua própria gente” (Isaías 58,6-7). E, assim, “não é possível estar com Deus e, ao mesmo tempo, discriminar e desrespeitar as outras pessoas por causa das suas diferenças étnicas, religiosas ou de gênero”, diz o Texto-base da CFE 2021, n. 125. Enfim, cultivar afetos e derrotar todas as formas de violência. Eis o que a vida, o Deus invocado sob tantos nomes, Jesus Cristo revolucionário e a CFE/2021 pedem de nós.[2] 

Referência.

GOMES, Laurentino. Escravidão. Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. Vol 1. Rio de Janeiro: Ed. Globo, 2019, p. 19. 

09/02/2021

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Hino da Campanha da Fraternidade de 2021. Tema: Fraternidade e Diálogo, compromisso de Amor.

2 – Texto-Base da Campanha da Fraternidade Ecumênica (CFE/2021)

http://gilvander.org.br/site/%ef%bb%bfcampanha-da-fraternidade-ecumenica-de-2021-tema-fraternidade-e-dialogo-compromisso-de-amor-lema-cristo-e-a-nossa-paz-do-que-era-dividido-fez-uma-unidade/

3 - No CEDEFES: INDÍGENAS EM BH/MG: PRECONCEITO, DISCRIMINAÇÃO E VIOLÊNCIA. 1ª PARTE/23/4/2018.

4 - Makota, candomblecista, no MP/DH de MG: por direitos das pessoas de religião afrodescendente

5 - Pai Juvenal de Oxalá: Diversidade Religiosa-Umbanda. E. M. Machado de Assis - Contagem, MG, 23/11/17





[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.

 

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Não dá para esperar as eleições de 2022. Por Frei Gilvander

 Não dá para esperar as eleições de 2022. Por Frei Gilvander Moreira[1]



No Brasil, estamos imersos em uma gravíssima crise que afeta de diferentes formas as áreas política, econômica, social, ambiental, religiosa, agrária e urbana, entre outras. Estamos sob o sistema capitalista, máquina de moer vidas, que fomenta de muitas formas o egoísmo, a ganância, a usura, a competição, a concorrência, o egocentrismo, o individualismo e o consumismo, que desumaniza muitas pessoas e as reduz a escravos que consentem e assimilam os processos de opressão como se fossem algo natural e inexorável. Fomentadas pela devastação ambiental, as condições objetivas de vida estão entrando em colapso. A mãe Terra também está sendo agredida de diferentes formas: impedida de respirar por queimadas dos biomas, detonada em suas entranhas para a retirada de minério e destruída por monoculturas que não produzem alimentos, mas commodities para a acumulação de capital e resultam em desertificação gradativa de muitos territórios. Eis o ambiente propício para aparição de diferentes formas de vida, entre as quais se destacam os vírus capazes de gerar pandemias cada vez mais letais. 

Estamos no “fundo do poço” que pode ainda se afundar muito mais. É imprescindível não perdermos de vista o raio de luz que tal como a “estrela de Belém” (Cf. Evangelho de Mateus 2,1-12) deve nos orientar.  Evito usar a palavra ‘nortear’, pois segundo Délcio Monteiro de Lima, em livro de leitura imprescindível Os demônios descem do norte. Do oriente “nasce” o sol irradiando luz e calor necessários para garantir a vida. A UTOPIA é o que pode nos apontar o rumo a ser trilhado e nos animar na caminhada/luta para conseguirmos superar o atoleiro no qual o povo brasileiro entrou. Bússola que nos guia, essa utopia tem vários nomes: nossos parentes indígenas do Altiplano Andino a chamam de Sociedade do Bem Viver e Conviver. Outros, inspirando-se no que há de mais contundente na crítica ao capitalismo, a chamam de Socialismo, uma sociedade sem classes antagônicas, com os bens comuns de fato compartilhados, em que haja gestão política que atenda ao bem comum e não à idolatria do mercado que impõe cruel desigualdade social. Os/as cristãos/as acreditam que nossa utopia é o Reino de Deus que precisa ser construído a partir do aqui e do agora, cultivando Terra Sem Males, com relações sociais que tenham superado a exploração que a classe dominante perpetra contra as classes trabalhadora e camponesa para construirmos uma sociedade onde os/as trabalhadores/as “construirão casas e nelas habitarão, plantarão vinhas e comerão seus frutos. Ninguém construirá para outro morar, ninguém plantará para outro comer. [....] Ninguém gerará filhos para morrerem antes do tempo” (Cf. Isaías 65,17-25).



Assim como “errar é humano, mas permanecer no erro é burrice”, o povo brasileiro tem agora uma missão que não dá mais para adiar. Tornou-se intolerável esperar as eleições de 2022 para retirar do poder o atual presidente do Brasil, por vários motivos, entre os quais dois se destacam: 1) Ele já cometeu vários crimes e precisa ser julgado; 2) Tolerá-lo no poder significa continuar sendo cúmplice da morte de milhares de pessoas, irmãos e irmãs nossas devido à política de disseminação do coronavírus executada por Jair Bolsonaro e seus ministros de governo. Só o povo brasileiro, com organização e assumindo diferentes formas de lutas massivas, pode barrar o genocídio que está em curso. O Supremo Tribunal Federal, o Congresso Nacional e a elite brasileira, uma das mais opressoras do mundo, só agirão sob fortíssima pressão popular. A história nos mostra isso.

Os ex-subprocuradores-gerais da República Deborah Duprat, Álvaro Augusto Ribeiro Costa, Cláudio Lemos Fonteles, Manoel Lauro Volkmer de Castilho, Paulo de Tarso Braz Lucas e Wagner Gonçalves protocolaram uma Representação junto à Procuradoria Geral da República (PGR), na qual acusam o presidente Jair Bolsonaro de ter incorrido no Artigo 267 do Código Penal, que diz: “Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos: Pena - reclusão de dez a quinze anos. § 1º - Se do fato resulta morte, a pena é aplicada em dobro. [...]”. Outra Representação protocolada na PGR, assinada por 354 pessoas - e com milhares de adesões virtuais -, demonstra que Bolsonaro, com a sua conduta, já cometeu os seguintes crimes tipificados no Código Penal: - Artigo 132: perigo para a vida ou saúde de outrem; - Artigo 257: subtração, ocultação ou inutilização de material de salvamento; - Artigo 268: infração de medida sanitária preventiva; - Artigo 315: emprego irregular de verbas ou rendas públicas; - Artigo 319: prevaricação.  

Segundo essa representação, o presidente incorreu nesses crimes ao adotar as seguintes condutas, muitas delas de forma reincidente: 1) reiterados discursos contra a obrigatoriedade da vacinação e lançamento de dúvidas sobre a sua eficácia e efeitos; 2) ausência de adoção das providências necessárias para a adequada conformação logística da distribuição de imunizantes pelo país; 3) imposição de obstáculos à produção e aquisição de insumos, como ocorreu no caso de agulhas e seringas necessárias para vacinar o povo; 4) ausência de resposta do governo brasileiro à oferta da empresa Pfizer, em agosto de 2020, de aquisição de 70 milhões de doses de seu imunizante; 5) declarações públicas diversas, inclusive por meio de suas redes sociais, de que não adquiriria a vacina fabricada pelo Instituto Butantan (CoronaVac), do Estado de São Paulo; 6) desrespeito à recomendação da Organização Mundial da Saúde, sobre necessidade de campanhas eficientes de esclarecimento da população a respeito da imperatividade da máxima cobertura vacinal para eficiência do controle da doença COVID-19; 7) apologia do uso de medicamentos comprovadamente ineficazes e/ou prejudiciais aos pacientes portadores de COVID-19; 8) má utilização de recursos públicos na produção em larga escala, pelo Exército brasileiro, de cloroquina e hidroxicloroquina, contraindicados em muitos casos clínicos por chances de complicações cardiovasculares, e aquisição de insumos com preços até três vezes superiores ao habitual; 9) veto a trecho da Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2021, que impedia o contingenciamento de despesas relacionadas "com ações vinculadas à produção e disponibilização de vacinas contra o coronavírus (Covid-19) e a imunização da população brasileira"; 10) prescrição, pelo governo brasileiro, do chamado "tratamento precoce" diante do alerta da escassez de oxigênio hospitalar na cidade de Manaus, cumulada com o aumento do imposto sobre importação de cilindros dias antes do colapso no estado do Amazonas. Após repercussão negativa, este imposto foi zerado.

Os subprocuradores, na representação, demonstram que o presidente não apenas está sendo incompetente na gestão, mas se tornou um agente dinamizador da pandemia do novo coronavírus. Os subprocuradores afirmam: “Posteriormente a essa bem fundamentada representação, veio a público pesquisa promovida pelo CEPEDISA/FSP/USP e Conectas Direitos Humanos, que, analisando 3.049 normas relativas à Covid-19 no âmbito da Governo Federal, estabelece uma linha do tempo que "demonstra a relação direta entre esses atos normativos, a obstrução constante às respostas locais e a propaganda contra a saúde pública promovida pelo governo federal”. Segundo a pesquisa, "Os resultados afastam a persistente interpretação de que haveria incompetência e negligência por parte do governo federal na gestão da pandemia. Bem ao contrário, a sistematização de dados, ainda que incompletos em razão da falta de espaço para tantos eventos, revela o empenho e a eficiência da atuação da União em prol de ampla disseminação do vírus no território nacional, declaradamente com o objetivo de retomar a atividade econômica o mais rápido possível e a qualquer custo". Também ali se conclui que a ultrapassagem da cifra de 200 mil óbitos no país, em janeiro de 2021, é, em parte, resultado dessa opção, já que, em sua maioria, mortes seriam evitáveis se houvesse alguma estratégia de contenção da doença. Pelos discursos, decisões e medidas implementadas o presidente do Brasil assumiu o risco de ampliar em muito o número de mortos pela pandemia. Juridicamente, isso é dolo: praticar crime de forma intencional, sabendo do dano lesivo irreparável que causará.

Neste contexto, tornou-se necessária a luta pelo impeachment (impedimento) do presidente como caminho necessário para salvar vidas. O quarto Evangelho da Bíblia diz que Jesus Cristo “veio para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (João 10,10). Quem continua apoiando o atual presidente está cometendo um pecado grave, pois está sendo cúmplice da morte de milhares de pessoas. Se formos contabilizar o número de mortos em todas as outras áreas desastradamente desgovernadas, a mortandade é imensa: Amazônia sendo devastada, epidemia de câncer com 250 mil mortos por ano, cuja causa principal está no uso de cerca de 500 tipos de agrotóxicos liberados, incentivo à polícia para matar por “exclusão de ilicitude”, desmantelamento das áreas de saúde e educação públicas (Emenda 95: congelamento dos investimentos em saúde e educação por 20 anos), política econômica que empanturra os banqueiros com lucros abusivos e usurários, e condena à humilhação do desemprego grande parte da classe trabalhadora. Montesquieu dizia: "A pior tirania é a exercida à sombra da lei e com aparência de justiça." Mahatma Gandhi afirmava: “Quando me desespero [...] lembro-me de que [...] em toda a história [...] a verdade e o amor sempre venceram. Houve  tiranos  e  assassinos [...] e, por um tempo, eles pareciam invencíveis [...] mas, no final, sempre caíam. Pense nisto. Sempre.” Nem omissos e nem cúmplices, sejamos aguerridos nas lutas adotando mil formas para destruirmos o poder de quem está tiranizando o povo, os biomas e as próximas gerações. Que Maria, a mãe de Jesus e nossa mãe, nos encoraje a “derrubar do trono os poderosos e a elevar os humildes” (Evangelho de Lucas 1,52). Isto é o que Deus, mistério de infinito amor, e Jesus Cristo revolucionário pedem e esperam de nós.(2)

02/02/2021

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 – Palavra Ética na TVC-BH: Salvar vidas na Pandemia e defesa dos Geraizeiros do norte de MG-27/6/2020

2 - Palavra Ética na TVC-BH: Quarentena para salvar vidas, mineração em Ibirité/MG, não; Quilombo Braço

3 - Frei Gilvander: "Salvar vidas agora, antes que seja tarde!" - Na luta por direitos - 16/4/2020

4 - Quarentena para salvar vidas/2a Parte/Frei Gilvander/Rádio Independente FM 104,9/Ichu/BA- 07/4/2020

5 - Quarentena para salvar vidas - Frei Gilvander/ Rádio Viva Brasil FM - Três Corações, MG - 31/3/2020

6 - Coronavírus: como vencer o capitalismo de desastre?

7 - CORONAVÍRUS, CLIMA E CAPITAL: a irracionalidade destrutiva do capitalismo

8 - PANDEMIA: ESTE SERÁ O FIM DO CAPITALISMO?!!!





[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.

 

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Em BH, carroceiros/as proibidos/as, mas a história é de luta, a Esperança nasce! Por Frei Gilvander

Em BH, carroceiros/as proibidos/as, mas a história é de luta, a Esperança nasce! Por Frei Gilvander Moreira[1]

Poucas horas após a aprovação da Lei 11.285/21 que proíbe o trabalho de dez mil carroceiros/as em Belo Horizonte, nasceu, no bairro Caiçara, em BH, uma égua no curral do carroceiro Ricardo, filho de José Carlos Andrade, o famoso “Zé da Égua” – uma potrinha (uma eguinha), que recebeu o nome de ESPERANÇA. “Chegou um bebê para a nossa família!”, conta Rosemary Pedrosa Leal, esposa de Ricardo. Com a Esperança está aumentando o número de entes desta linda família carroceira.  O nascimento da eguinha ESPERANÇA está sendo saudado como um sinal do Deus da vida, da força e da luz do Povo Carroceiro, que clama: CARROCEIROS/AS, UNI-VOS! Fotos: acervo da família carroceira de Ricardo e Rosemary Pedrosa Leal

22 de janeiro de 2021, um dos dias mais tristes da história de Belo Horizonte, MG, e região: partiram para a vida em plenitude o Padre Pigi (Pier Luigi Bernareggi) e o Professor Michael Marie Le Ven; e o prefeito Alexandre Kalil (PSD) sancionou a lei 11.285/2021 que extingue o trabalho e o sustento financeiro de cerca de 10 mil famílias carroceiras de Belo Horizonte (BH)[2]. A lei prevê que, em prazo máximo de 10 anos, a tração animal em BH não mais exista e seja passível de punição a desobediência dos que permanecerem nesta prática. Dez mil carroceiros/as estão sendo encurralados/as e colocados/as no corredor da morte lenta. Sob a capa do pretenso cuidado com os animais impera o manto do racismo, do ódio aos pobres, do higienismo, do autoritarismo, da violação aos direitos dos povos e comunidades tradicionais, entre os quais estão os/as carroceiros/as, quilombolas, os/as ciganos/as, agricultores familiares e demais comunidades tradicionais que utilizam a carroça no seu dia a dia para trabalhar e viver.

O grande e histórico carroceiro de Belo Horizonte, MG, José Carlos de Andrade, o "Zé da Égua".

Uma cidade com a grandiosidade, a complexidade e a diversidade de Belo Horizonte não pode excluir a população composta por ciganos/as, quilombolas, indígenas, agricultores/as familiares que são carroceiros/as por tradição de cultura e família e são também Povos e Comunidades Tradicionais, protegidos pelos artigos 215 e 216 da Constituição Federal e pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU).

Consideramos a lei 11.285/2021 racista na medida em que proíbe o uso dos animais de tração para sustentar famílias, mas nada diz sobre o fato de estes e outros animais como os cães poderem ser “domesticados” (violentados) para estraçalhar pessoas pelos desígnios de forças militares ou para farejar drogas letais e mergulhar em lama tóxica e biocida. Da mesma forma, não há questionamentos na mesma proporção que a perseguição aos carroceiros sobre o uso dos testes em animais que a indústria farmacêutica, a cosmética e a militar perpetuam. “Para isso pode maltratar os animais”, dizem hipocritamente. O Brasil, tendo adotado a ilegalidade da escravidão há pouco mais de um século, se recusa a abolir a escravidão como prática social sobre os corpos negros. Sob a hipócrita capa da proteção aos animais, há o regozijo sobre o sofrimento negro - “que puxem eles as carroças!” - reverberam!



A prefeitura da capital mineira, a maioria dos vereadores e as agremiações supostamente dedicados à pretensa proteção animal garantirão a vida digna das mais de 10 mil famílias carroceiras, com trabalho e renda!? – NÃO!!! São hipócritas, pois o projeto, transformado em lei, simplesmente não prevê e nem garante isso. Por isso, além de racista e covarde, é um projeto de ódio aos pobres! Não basta a pobreza, devem ser jogados na miséria! A prefeitura de Belo Horizonte sabe que em Porto Alegre, RS, sob administração de direita e antipopular, após a proibição do trabalho dos/as carroceiras, apenas uma ínfima minoria conseguiu algum tipo de outro trabalho, e pesquisa da própria prefeitura demonstrou que milhares de famílias carroceiras foram empurradas para a miséria e a fome.



Pisar, violentar e cuspir na Comunidade Tradicional Carroceira entristece o horizonte e violenta a história de BH, cidade construída com o trabalho do povo carroceiro desde o Curral del Rey que, por várias décadas, antes da tração motora, foi imprescindível para a construção da futura capital mineira. Centenas e centenas de carroças pegavam as mercadorias na Praça da Estação trazida pelos trens e distribuíam para toda a cidade. No Museu de Arte e Ofícios, situado na mesma Praça da Estação, estão expostas nas vitrines carroças antigas e utensílios dos tropeiros. Considerado o primeiro projeto museológico dedicado integralmente ao tema do trabalho, das artes e dos ofícios de todo o país, entende-se que há um reconhecimento desta categoria sociocultural, em nível nacional, mas parece que a atual gestão da capital mineira prefere ouvir os “negacionistas”. Os racistas, na prática, dizem: “No museu e nos livros podem estar, mas nas ruas como cultura viva não pode”. Matar a diversidade cultural é exterminar o futuro de uma cidade que queremos justa, fraterna, solidária, o que passa necessariamente pela valorização e reconhecimento da imensa diversidade biocultural presente na cidade. Tudo isso apunhalado agora por esta lei racista.



O que fazer com os milhares de animais (cavalos, éguas, burros e mulas) que foram proibidos de integrar a comunidade carroceira? A solução apresentada pelos que criminalizam os/as carroceiros/as tem sido a “adoção solidária”. Como proposta, os animais serão adotados por pessoas que possuam e apresentem capacidades técnicas e econômicas suficientes para tratar os animais. Essas “capacidades” indicam um determinado modo de tratamento e certa visão – todas elas estritamente ligadas a uma concepção burguesa que quer limitar o cuidado com os animais à concepção reduzida de se ter os animais como seres enclausurados e castrados em nome da docilidade e submissão. Carroceiras e carroceiros jamais se submeterão ao adestramento e ao controle social preconizados por grupos higienistas e racistas.



Carroceiras e carroceiros construíram a história do mundo e também de Belo Horizonte. Contribuem com a limpeza urbana e, por causa disso, devem ser reconhecidos como agentes de saúde pública e precisam ser respeitados como Comunidade Tradicional composta por homens e mulheres, letrados e analfabetos, que carrega história e cultura, e luta contra os maus-tratos para com animais. Atitudes de maus trabalhadores existem em todas as áreas de trabalho sem que em nenhuma delas a extinção da profissão é apontada como solução. Há maus professores, médicos, juristas, garis, padres, pastores, veterinários, vereadores, deputados, carroceiros etc. Maus trabalhadores devem ser monitorados, indicados para a transformação de práticas nocivas e mesmo retirados e/ou proibidos de exercerem a profissão.

Professor Michael Le Ven. Foto: Rosely Augusto.


Neste contexto de violação de direitos e opressão, lembramos aqui a luta de Michael Marie Le Ven, padre casado, e de Padre Pigi. Michel Marie Le Ven, grande cidadão, Professor da UFMG que partiu para a vida plena aos 89 anos, tendo nascido dia 23 de outubro de 1931. Um dos padres franceses da Igreja do Horto em Belo Horizonte, que foi preso pela ditadura militar-civil-empresarial por incentivar a organização dos/as trabalhadores/as e apoiar a 1ª greve durante a ditadura, nos anos de chumbo, em 1968, dos metalúrgicos, em Contagem e Belo Horizonte. Assessor da Juventude Operária Católica (JOC), posteriormente militante da Pastoral Operária e do Partido dos Trabalhadores, atuante em movimentos comunitários na luta pelos direitos humanos, Professor Michel foi antes de tudo, um grande democrata. Enfrentou a Ditadura e foi vítima do AI-5[3]. Entre os registros históricos que deixou, sua tese de Doutoramento em Ciência Política na USP intitulada Trabalho e Democracia: A Experiência dos Metalúrgicos Mineiros (1978-1984) - Os Movimentos Populares em 1979. Grande Michael Le Ven! Um cristão, outro Cristo libertador. Lutador imprescindível, foi justo e lutou por tudo que é justo até o fim. Deixou-nos um legado extraordinário e revolucionário na Região Metropolitana de Belo Horizonte onde militou organizando grupos solidários de enfrentamento às políticas autoritárias por meio de um lindo movimento de Economia Solidária em Ribeirão das Neves, MG.


Padre Pigi (Pier Luigi Bernareggi). Foto: Frei Gilvander

Padre Pigi: partiu para a vida plena, aos 81 anos. Um gigante na luta pela moradia digna, própria e adequada em BH e Região Metropolitana. Milhares de famílias foram libertadas da pesadíssima cruz do aluguel ou da humilhação que é sobreviver de favor, com o apoio e acompanhamento do nosso mestre e profeta padre Pigi. Inesquecíveis os pronunciamentos do Padre Pigi em Audiências Públicas na Câmara de Vereadores de BH e na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, defendendo com intrepidez e com ira santa a legitimidade da luta dos Sem Casa pelo direito de morar dignamente. Em momentos de gravíssimo risco de despejo da Ocupação Dandara, na zona norte de Belo Horizonte, hoje com mais de 2.500 famílias assentadas em um bairro lindo autoconstruído, Padre Pigi atendeu nosso convite e em Assembleia com o povo, com mais de mil pessoas, disse de cabeça erguida e com dedo em riste: “Esta terra é de vocês. Esta propriedade estava abandonada há séculos, não cumpria a função social. Vocês, povo querido da Ocupação Dandara, têm direito a esta terra e vocês devem construir aqui as moradias dignas de vocês. Não abram mão de nem um centímetro desta terra. Construam aqui uma comunidade justa e solidária, um lugar bom de se viver”. Estas palavras proféticas animaram o povo a não arredar o pé da luta e a espantar o despejo que insistia em atropelá-los. Assim que ficou sabendo que tinham acontecido as Ocupações Rosa Leão, Esperança e Vitória, na região da Izidora, também na zona norte de BH, na divisa com o município de Santa Luzia, padre Pigi me ligou e me chamou para conversar. Ele me disse: “Frei Gilvander, as terras ocupadas na Izidora são terras griladas, abandonadas e não cumprem a função social. O povo não pode deixar acontecer despejo lá”. Durante três meses, o Padre Pigi fez pesquisa criteriosa em cartórios de Santa Luzia e de Belo Horizonte e encontrou uma série de escrituras e documentos que, após PARECER de Advogados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), comprovaram a existência de nove indícios de ilegalidades na cadeia dominial da escritura n. 1202, da Granja Werneck S.A. Nove ilegalidades que apontam indícios sérios de grilagem de terra. Com esses documentos em mãos, padre Pigi nos concedeu entrevista em videorreportagem fazendo estas denúncias. Assim, sempre comprometido com a causa dos pobres, padre Pigi também foi decisivo para impedir despejos nas Ocupações da Izidora, onde hoje vivem cerca de 8 mil famílias libertadas da cruz da falta de moradia, da especulação imobiliária, falta de reformas agrária e urbana.

Por volta do ano 587 antes de Cristo, na Palestina, com a cidade de Jerusalém sitiada pelo exército do rei Nabucodonosor, há 18 anos dominando e escravizando muitos povos, o profeta Jeremias, ouvindo a voz do Deus solidário e libertador, comprou um terreno em Anatot. O povo entendeu como um sinal de Deus de que o terror da opressão do Império Babilônico passaria e “naquela terra ainda se comprarão casas, campos e vinhedos” (Jeremias 32,15), pois “para Deus nada é impossível” (Jer 32,27). Encurralado pelo poderio do rei Nabucodonosor, o povo compreendeu que ali estava um sinal de Deus: “Vou trazê-los de volta para este lugar, e os farei morar tranquilos” (Jer 32,37). Por meio do profeta Jeremias, Deus acrescentou: “Farei com eles uma aliança eterna e nunca deixarei de fazer-lhes o bem” (Jer 32,40). Ontem, o povo da Bíblia; hoje, o Povo Carroceiro.

Poucas horas após a aprovação da Lei 11.285/21 que proíbe o trabalho de dez mil carroceiros/as em Belo Horizonte, nasceu, no bairro Caiçara, em BH, uma égua no curral do carroceiro Ricardo Célio de Andrade, filho de José Carlos de Andrade, o famoso “Zé da Égua” - uma potrinha (uma eguinha), que recebeu o nome de ESPERANÇA. "Chegou um bebê para a nossa família!", conta Rosemary Pedrosa Leal, esposa de Ricardo. Com a Esperança está aumentando o número de entes desta linda família carroceira.  O nascimento da eguinha ESPERANÇA está sendo saudado como um sinal do Deus da vida, da força e da luz do Povo Carroceiro, que clama: CARROCEIROS/AS, UNI-VOS! Será a mascote da luta carroceira em Belo Horizonte. É necessário e possível reverter essa lei que, se mantida, causará um triste horizonte na capital mineira. Mas não basta Esperança, a ela tem que se somar força, organização e muita luta. A Esperança será inspiração desta nova etapa de luta contra as inúmeras injustiças impostas à comunidade carroceira! Nasce a Esperança: símbolo da luta carroceira. Que beleza!

Estão tentando crucificar 10 mil famílias carroceiras, mas estas soerguerão assim como Jesus Cristo ressuscitou após ser crucificado pelos podres poderes de uma religião opressora, da política imperial e do poderio econômico dos saduceus, latifundiários da época. A luta carroceira se erguerá, transformará asfalto em poeira e ocupará as ruas e avenidas de toda a Belo horizonte e região metropolitana! A comunidade carroceira gritará em cada rincão dessa cidade: “A CIDADE É NOSSA ROÇA! NOSSA LUTA É NA CARROÇA!”[4]

26/12/2020

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 – "Carroceiros/as é Povo Tradicional com cultura milenar. Kalil, VETE o PL 142": Alenice Baeta-1/01/21

https://www.youtube.com/watch?v=bpRI7M00HS4

2 - Carroçasso em BH: 10.000 carroceiros/as exigem que Kalil VETE o PL 142 racista. Vídeo 2 - 21/12/20

https://www.youtube.com/watch?v=RoWLc4pldig

3 - "A cidade é nossa roça. Nossa luta é na carroça." Carroceiros/as, SIM! Por frei Gilvander - 20/12/20

https://www.youtube.com/watch?v=1eMVYnnPIjQ

4 - Pelos Direitos do Povo Tradicional Carroceiro e dos Cavalos e Éguas/Frei Gilvander/1ªParte-20/12/20

https://www.youtube.com/watch?v=uF_03VH-g7k

5 - Lei racista e que faz guerra contra 10.000 carroceiros/as foi aprovada em Belo Horizonte -16/12/2020

https://www.youtube.com/watch?v=VwaOg2jbi0s

6 - Em BH, sancionar PL 142 autoritário sem participação dos carroceiros será injustiça. Vídeo 4 -7/1/21

https://www.youtube.com/watch?v=T84NYqFiJeM

7 - "Carroceiros em BH são necessários para solucionar o problema dos resíduos sólidos". Vídeo 3 -7/1/21

https://www.youtube.com/watch?v=c7a7DR1I5xU

8 - "Proibir carroceiros/as em BH é priorizar grandes empresas de caçamba." Prof. Tiago. Vídeo 2 -6/1/21

https://www.youtube.com/watch?v=fxggdayFPVs

9 - Grito dos carroceiros de Belo Horizonte contra o PL 142/2017: "Somos Povo Tradicional!" – 13/12/2020

https://www.youtube.com/watch?v=udEr3TvsMeU#7s8d6f87

10 - Luta de carroceiros/as de BH/MG: Trabalho e respeito aos cavalos e éguas. 6ª Parte. 07/7/2018.

https://www.youtube.com/watch?v=ETKjeT0GIWM

11 - Luta dos carroceiros/as e cavalos em BH/MG: pelo direito de existir na cidade/5ª Parte/07/7/2018.

https://www.youtube.com/watch?v=VZiTzcGHfqM

12 - Luta dos/das carroceiros/as pelo direito de trabalhar com cavalos e éguas/BH/MG. 4ª Parte/07/7/2018

https://www.youtube.com/watch?v=NR-_lxATntc

13 - Carroceiros/as, cavalos e éguas em BH/MG: dignidade e sobrevivência, 3ª Parte. 07/7/2018.

https://www.youtube.com/watch?v=5gMBbeiyu48

14 - Carroceiros/as de BH/MG: Cuidado com o meio ambiente e respeito aos animais/2ª Parte/ 07/7/2018.

https://www.youtube.com/watch?v=M7n2YyDD6Vw

15 - Carroceiros e carroceiras de BH/MG: Respeito à cultura, direito ao trabalho. 1ª Parte. 07/7/2018.

https://www.youtube.com/watch?v=WpwAC8XclZ8

16 - Carroceiros/as de Belo Horizonte PROTESTAM na CMBH contra a aprovação do PL 142 INJUSTO - 14/12/20

https://www.youtube.com/watch?v=OzCK_LEFc1I

17 - TRIBUTO A PADRE PIGI (PIER LUIGI BERNAREGGI): UM GIGANTE NA LUTA PELA MORADIA EM BELO HORIZONTE E RMBH. POR FREI GILVANDER

http://gilvander.org.br/site/%ef%bb%bftributo-a-padre-pigi-pier-luigi-bernareggi-um-gigante-na-luta-pela-moradia-em-belo-horizonte-e-rmbh-por-frei-gilvander/

 

18 - TRIBUTO A MICHAEL MARIE LE VEN, HOMEM IMPRESCINDÍVEL QUE ENFRENTOU A DITADURA MILITAR E LUTOU MUITO PELOS DIREITOS HUMANOS. POR FREI GILVANDER

http://gilvander.org.br/site/tributo-a-michael-marie-le-ven-homem-imprescindivel-que-enfrentou-a-ditadura-militar-e-lutou-muito-pelos-direitos-humanos%ef%bb%bf-por-frei-gilvander/#7s8d6f87



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Não há censo oficial que indique com precisão os dados, estima-se em 10.000 o número de carroceiros/as e 20.000 o número de animais envolvidos nesta prática e na cidade de Belo Horizonte e nas demais que compões a região metropolitana.

[3] Ato Institucional n. 5, um dos 17 decretos dos generais da ditadura militar-civil-empresarial, de 13/12/1968, que implantou o terror e anos de chumbo no Brasil.

[4] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.