Carta
de dona Célia, da Ocupação Dandara, em Belo Horizonte, MG, ao receber a medalha
"Comenda da Paz", em 2011, do Conselho Estadual de Direitos Humanos
(CONEDH).
Dona Célia, da Ocupação Dandara, em Belo Horizonte, MG, dia 18/3/2011. Foto: M. R. O. Carneiro. |
Dia 18 de março de 2011, eu recebi uma
noticia que me fez refletir como é bom e importante ser cidadã. Frei Gilvander
me disse que eu ia receber a Comenda da Paz Chico Xavier dia 25 de março lá em
Uberaba, MG. Recebi a medalha feliz da vida. Eu nunca tinha posto o pé num
avião. Fui a Uberaba de Avião. Gostei. Não senti medo.
Voltei um pouco no meu passado e
recordei como foi difícil superar tantas dificuldades. Fui abandonada pelo
esposo que eu confiava, traída e largada em um lugar aonde eu não conhecia
ninguém. Foi difícil cuidar de três filhos. Fui para o Rio de Janeiro com o
sonho de melhorar a vida e ganhar uma casa própria, mas lá não consegui nada.
Cheguei a pesar apenas 35 quilos.
Chegando a Belo Horizonte, MG, fui morar
na casa do meu pai. Fiz um longo tratamento de saúde. Quando eu estava quase
curada comecei a catar latinha, papel etc., para ajudar nas despesas de casa.
Nunca desisti de sonhar, pois ainda teria uma causa para terminar: criar meus
filhos. Morei de favor até chegar à Comunidade Dandara.
O que eu e meus filhos conseguíamos só
dava para sustentar o básico e não dava para comprar um terreno e nem uma casa.
A cada dia meu sonho se tornava mais longe, pois até o cômodo que eu havia
conseguido construir no lote do meu pai por meio de mutirão estava prestes a
cair, pois os cupins fofaram a terra por baixo da casa e cada vez mais aparecia
rachaduras nas paredes e no banheiro. As paredes chegaram a se separar, a chuva
de gelo que deu em Belo Horizonte destruiu todo o meu telhado. Seria fácil
consertar, mas mais uma vez esbarramos no dinheiro, pois a gente não tinha nem
mesmo dinheiro para comprar a mistura do mês. Quem dera para arrumar o telhado!
Remendamos com cacos de telhas. Não dava para saber onde estava molhando mais:
se era lá dentro ou lá fora. Vivíamos apavorados sem saber quando as paredes
iriam cair. Para quem não acredita vou contar: meus olhos estavam em lágrimas
por mais uma vez ter sido humilhada, por estar morando de favor.
Liguei a televisão e vi uma das melhores
notícias da minha vida. Na TV dizia que tinha acontecido uma ocupação no bairro
Céu Azul, em Belo Horizonte. Tomei uma das decisões mais importantes da minha
vida: ir para a ocupação lutar para ter a minha casa própria. Chamei a minha
filha Priscila para ir lutar pela sua moradia, pois ela sonhava em ter sua casa
para morar com seu filho, um dos meus lindos netos: o Ruan. Muito sonhadora e
guerreira, Priscila não pensou duas
vezes para ir. Ficou mais animada do que eu mesma. Mesmo com um filho com
bronquite asmática, Priscila se prontificou ir de vez e começou a morar na
Ocupação Dandara desde o primeiro dia da ocupação: dia 09/4/2009. Não saía de
lá pra nada. Penso que um dia eu vou ver ela recebendo uma medalha parecida com
esta Comenda da Paz Chico Xavier, que tive a alegria e a responsabilidade de
receber. Priscila já lutou muito, mas muito mesmo, para ter uma vida melhor... Ela e todo o povo da ocupação.
Liguei para minha outra filha, a Ideslaine,
que é casada com o José. Hoje têm dois
lindos filhos Isaque e Yasmin, mas na época só tinha a Yasmin que tinha dois
meses. Hoje ela tem dois aninhos e o
Isaque, 10 meses. Eu chamei Ideslaine para ir tentar conseguir uma casa para a
família dela, pois sabia que ela devia mais de dois 2 meses de aluguel e estava
prestes a ser despejada. Contei para Ideslaine o que eu vi e ouvi na televisão.
No início ela ficou receosa, mas, dentro de poucos minutos, resolveu ir, pois
ela sabia que a Yasmin precisava de um lar. Logo que chegou aqui na Ocupação
Dandara, ela não desistiu. Ela e o esposo conseguiram montar uma barraca maior
de lona, pois ela precisava trazer algumas coisas de sua mudança como colchão,
fogão, as roupas da Yasmin. Ali seria sua casa para sempre. O restante de sua
mudança ela pediu para deixar no lote do meu pai. Eu a admirei muito. Mesmo
sabendo que o restante dos seus móveis estava jogado ao relento, ela não se
abatia e nem se preocupava, pois maior seria sua vitória quando conseguisse uma
casa. Ela sempre acreditou em Deus que diz: “não cai uma folha da árvore se
Deus não quiser.” Ideslaine não merece uma medalha, mas várias, pois mesmo com
pressão alta, diabete gestacional, gravidez de alto risco, a filha com
bronquite asmática, ela não desistiu de lutar por terra e moradia.
No dia seguinte liguei para o serviço do
meu filho Edésio e disse a ele que estava na Dandara. Ele perguntou o que era
Dandara e eu respondi que era uma ocupação e ele nos apoiou no mesmo momento.
Saiu do serviço e foi nos ajudar a arrumar nossas barracas. Os meus primeiros
dias na Dandara foram pesadelos, pois a polícia não deixava melhorar as
barracas. Os nossos banheiros eram piores do que banheiro público de
rodoviária, pois foram construídos de tábuas e em mutirão. Pior é que os
banheiros ficaram do lado de fora do cordão de isolamento da polícia e tínhamos
medo até de usá-los. Para usar o banheiro precisávamos ir de duas pessoas, pois
uma usava e a outra olhava a polícia e os homens.
Foi muito difícil a adaptação de morar
debaixo de uma lona preta. Mais triste para mim foi ver as crianças adoecendo
por causa da friagem. Mas o pior de tudo foi quando descobrimos que a água da
mina estava contaminada. Bateu-me um desespero, porque muitas pessoas já tinham
tomado dela. Foi aí então que chegamos à conclusão que não podia ficar assim.
Foi feita reunião com a COPASA exigindo água tratada. Depois de muita
persistência, o caminhão pipa começou a vir, mas como era difícil ver pessoas
idosas, mães com bebê de colo e grávidas carregando água na lata. Houve dia de
não haver tempo de comer ajudando essas pessoas a carregarem suas águas, pois o
caminhão só ia até na rua, não entrava na ocupação. Existiam mais de mil
barracas. Para piorar o nosso caso o caminhão pipa parou de vir. Nós mulheres
nos organizamos e resolvemos manifestar. Fomos para rua. Como era difícil e
revoltante ver nossas crianças sem água há cinco dias. A polícia veio com tudo
e teve mulheres feridas com balas de borracha e cassitetadas, mas valeu a pena.
Conquistamos um padrão de água apesar de a conta vir um absurdo da cara: mais
de nove mil reais por mês. A COPASA não nos deu tarifa social.
Quando me adaptei naquela forma de luta,
me apaixonei pelo nome Dandara. Como são gostosas nossas assembleias. Ver o
povo lutando é uma beleza! Na primeira festa que fizemos, ajudei a fazer
canjicão, fiz caldos de mandioca e feijão. Fiquei cansada, porque na época a gente ainda não tinha água. A gente tinha que
lavar as mandiocas nos vizinhos e buscar água para cozinhá-las. A luz era gato
e não aguentava liquidificador. Tentamos fazer com que a CEMIG colocasse um
padrão para nós, mas depois de a gente ir muitas vezes na Assembleia
Legislativa de Minas, descobrimos que um tal de TAC – Termo de Ajuste de
Conduta – impedia a COPASA de colocar água em assentamentos irregulares. Se
colocasse, teria que pagar uma multa absurda por dia. Esse tal de TAC é uma
forma covarde de negar direito aos pobres e dá uma capa de legalidade a algo
que é injusto. Como pode deixar mil famílias sem água?! Água é bem comum, fonte
de vida ou é mercadoria?
Voltando ao que eu estava falando conseguimos
fazer os caldos e demos conta naquele dia. Senti-me muito importante, porque
descobri que posso conseguir tudo com muito esforço. Uma das lutas maiores que
participei na Dandara foi quando depois de várias tentativas de diálogo com a
prefeitura de Belo Horizonte e não obter sucesso, resolvemos fazer um ato de
misericórdia que foi ir a pé da Dandara até à prefeitura, uns trinta
quilômetros. Para quem não conhece, a Dandara fica depois da Lagoa da Pampulha
no bairro Céu Azul, região da Nova Pampulha. Nesse dia vi tantas pessoas
passarem mal pelo esforço e vi minhas filhas e netos lutando por um sonho que
hoje é real, mas corre o risco de acabar. A cena que eu não consigo explicar,
porque na mesma hora me dá vontade de chorar, foi ver minha neta, tão novinha,
carregada por várias pessoas para que minha filha descansasse. Eu sentia uma
alegria incontrolável que era ver minhas filhas lutando por seus filhos assim como
eu fiz e não simplesmente se tornarem marginais indo para o mundo do crime para
conseguir dinheiro fácil. Minha forma de expressar o que eu estava sentindo era
gritando bravamente nossos gritos de luta, tais como: “Pátria livre!!!” E todos respondiam: “Venceremos!”
Fiquei rouca no final, mas valeu a pena.
Minha maior decepção foi que depois de todo esse esforço não recebemos
respostas positivas. Hoje corro o risco de ter os meus sonhos frustrados e ter
um despejo e ver essa grande família que é a Comunidade Dandara morando na rua.
Agradeço a Deus todos os dias por ter nos enviado seus anjos para nos ajudar: as
Brigadas Populares, o MST, a CPT e um Grupo de apoiadores que nos estenderam a
mão e não nos abandonam. Eles nos trazem a esperança de ter uma vida digna e a
Deus especialmente por ter me dado vida e força para continuar lutando.
O meu clamor aos nossos governantes é
que pensem um pouco mais na nossa situação. Pelo amor de Deus, pensem nas
crianças que ainda não viveram nem a metade do que eu vivi. Ter o futuro delas
interrompidos? Isso não podemos admitir! Por isso estamos dispostos a doar a
nossa vida em defesa da Comunidade Dandara. Não aceitaremos voltar a viver na
humilhação. Basta de sobreviver excluído.
Dandara é filha da Comunidade Camilo
Torres, que já tem uma neta: a Comunidade Irmã Dorothy, nossa filha. Juntas
essas três comunidades – Camilo Torres, Dandara e Irmã Dorothy – somos 1.200
famílias, cerca de 6 mil pessoas. Com muita alegria recebi a Comenda da Paz
Chico Xavier não no meu nome próprio, mas em nome de Dandara, Camilo Torres e
Irmã Dorothy. A Comenda que recebi não é só minha, é de todos nós. Obrigado ao
Conselho Estadual de Direitos Humanos, o CONEDH, que indicou o nosso nome.
Seguiremos lutando, agora, com mais ânimo ainda!
Belo Horizonte, 29 de março de 2011.
Obs.: A carta,
acima, foi escrita pela Dona Célia com a ajuda das duas filhas dela: Priscila e
Ideslaine. Frei Gilvander Moreira corrigiu o português.
—
Informações
sobre a Comenda, por Frei Gilvander:
O vice-governador de Minas Gerais,
Alberto Pinto Coelho, participou, dia 25/3/2011, em Uberaba, da entrega
da Comenda da Paz Chico Xavier. Onze personalidades de destaque na sociedade
foram homenageadas, entre ela dona Célia Maria dos Santos Pereira, da
Comunidade Dandara, de Belo Horizonte; e o cantor e compositor Paulinho Pedra
Azul. Também foram agraciadas duas entidades assistenciais, a Associação de
Combate ao Câncer do Brasil Central (Hospital Dr. Helio Angotti) e a Casa de
Auxílio e Fraternidade Olhos da Luz.
A Comenda da Paz Chico Xavier destina-se
a homenagear pessoas físicas e jurídicas que tenham se destacado na promoção da
paz, por meio de atividades relacionadas com pesquisas científicas, artes e
cultura, campanhas pacifistas, combate à fome e a miséria, geração de emprego e
renda, educação e ações para promoção da dignidade humana.
Instituída em 1999, pelo então
governador Itamar Franco, a medalha é entregue anualmente em Uberaba, cidade
onde o líder espírita, morto em 2002, aos 92 anos, passou parte da vida. A
solenidade faz parte do encerramento das comemorações do centenário de
nascimento de Chico Xavier. Natural de Pedro Leopoldo, ele nasceu em 2 de abril
de 1910. Aos 49 anos, mudou-se para Uberaba, onde viveu até o falecimento.
Entre os agraciados com Comenda da Paz
Chico Xavier estão Arnaldo Rocha, Célia Maria dos Santos Pereira (da
Comunidade Dandara), os empresários Olavo Machado Junior e Geraldo Lemos Neto,
as médicas Maria de Lourdes da Costa e Marlene Rossi Severino Nobre, o cantor e
compositor Paulinho Pedra Azul, os professores Tomaz de Andrade Nogueira e
Wilson Chaves (in memoriam), a Associação de Combate ao Câncer do Brasil
Central – Hospital Dr. Helio Angotti e a Casa de Auxilio e Fraternidade Olhos
da Luz.
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