Imagem 1 - Aldeia Maracanã, na capital Rio de Janeiro, RJ. Foto: Alenice Baeta, Nov. de 2012. |
Aldeia Maracanã: símbolo de mística e de resistência Indígena em contexto urbano
Por Alenice Baeta[1]
Para quem se interessa pelo tema história e organização indígena nas grandes cidades ou urbes, impossível não ter lido algo sobre a emblemática e fascinante história da luta dos indígenas da aldeia Maraká’nà ou Maracanã, situada no bairro homônimo, na capital Rio de Janeiro, RJ. O território hoje abrangido pelos antigos bairros Imperial de São Cristovão e Maracanã foram originariamente assentamentos indígenas de povos Tamoios que se aliaram aos franceses que buscavam também se estabelecer nas terras fluminenses durante o século XVI, todavia, estes teriam sido expulsos e/ou dizimados pelos colonizadores portugueses e suas tropas militares, que por sua vez, utilizando as inimizades históricas entre os povos indígenas tiveram o auxílio dos índios Temiminó nos combates. Estes, no ano de 1567, quando houve o embate definitivo conhecido como ‘Uruçumirim’, estabeleceram-se nesta região fundando novas aldeias indígenas sobre as dos Povos Indígenas Tamoio. Segundo M. Pimentel, entre flechas e chamas teria então nascido a cidade do Rio de Janeiro, “... em meio a dezenas de incêndios (cerca de 160 aldeias indígenas foram queimadas), a milhares de flechas e tiros de canhão e outras armas de fogo –, o céu enfumaçado se tingiu de cinza e as águas da Guanabara, de vermelho sangue. [...] Eles tiveram suas cabeças espetadas em estacas e os poucos índios sobreviventes fugiram, buscando abrigo nas serras.”[2]
A efetiva colonização desta localidade teria ocorrido somente ao longo do século XVII, sobretudo a partir 1627 com a fundação da Igreja de São Cristovão, local onde ainda eram atracadas as embarcações de pescadores e que também interligava São Sebastião do Rio de Janeiro aos engenhos de açúcar, roças e demais áreas de cultivo do entorno.
Com a vinda da família real e a sua comitiva para a colônia no início do século XIX, esta localidade foi escolhida para abrigar o Paço Imperial Quinta de São Cristovão que serviria para a sua residência (1808 a 1821). Posteriormente, foi morada oficial da família imperial (1822 a 1889) na qualidade de Palácio Imperial (Quinta da Boa Vista), tendo sediado, inclusive, a primeira Assembleia Constituinte Republicana, de 1889 a 1891, antes de ser destinado ao uso como Museu Nacional, em 1892. Em terreno circunvizinho ao Palácio Imperial teria sido construído em 1862 um palacete pelo Duque de Saxe, oficial da Marinha austro-húngara e almirante da Armada Imperial Brasileira que ao se casar com a Princesa Leopoldina de Bragança teria recebido a área como dote por ter contraído matrimônio com uma das filhas do D. Pedro II.
Pouco depois de sua construção, em 1865, o imóvel foi doado pelo genro do imperador ao governo, após uma fase de constantes rebeliões populares acirradas pela crise do sistema escravagista. Segundo o termo de doação, o local deveria ser para “destinação ad eternum à preservação das sementes e das culturas indígenas”. Este ato reconheceu que o terreno tinha a origem indígena e que este deveria ser o seu real destino.
O uso da edificação foi requisitado pelo primeiro diretor como sede do Serviço de Proteção ao Índio (SPI)[3], Marechal Rondon, que na ocasião pertencia ao Ministério da Agricultura e Colonização. Em 1953 se tornou abrigo do recém-criado Museu do Índio por solicitação do antropólogo Darcy Ribeiro que idealizou este centro de referência da memória e da cultura indígena. Mas em 1978, sob a ditadura militar, a sede do Museu foi transferida de forma arbitrária para uma edificação no bairro Botafogo, e o antigo palacete, repatriado por decreto, portanto, de forma autoritária e ilegítima, como patrimônio da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), que, como uma empresa, teria mais facilidade na alienação do patrimônio público, ratificada, também por decreto, no início da década de 1980, pelo então presidente do Brasil José Sarney.
O prédio fica então abandonado desde 1978, porém, moradores da região relatam que o local teria sido utilizado de forma clandestina por grupos militares e paramilitares em sessões de tortura e execução de pessoas. De fato, há marcas características na edificação que confirmam tais denúncias, tais como reformas fora do padrão construtivo, que visavam blindar o porão do prédio, por exemplo.
No início do século XXI, o território passa a ser pretendido pelo movimento indígena, denominado “Instituto Tamoio dos Povos Originários”, sendo que algumas das lideranças seriam também advogados, antropólogos e historiadores, o que certamente fortaleceu a luta e a organização da retomada, sendo que a maioria de seus membros seriam indígenas moradores da região metropolitana do Rio de Janeiro, oriundos de bairros periféricos, favelas ou situações de rua. Afonso Guajajara, advogado indígena e membro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), cumpria uma intensa agenda política entre Brasília e Rio de Janeiro, sendo auxiliado por seu irmão, professor no ensino fundamental e mestrando em línguas indígenas, na época, que o auxiliava nas tarefas políticas (REBUZZI, 2014: 74).
Após a realização de um congresso na Universidade Estadual do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), (vizinha do antigo prédio do Museu do índio), em 2006, a “Confederação Tamui” com o apoio de diversas entidades e organizações ocupa a edificação definitivamente, quando batiza o local posteriormente com o nome “Aldeia Maracanã” (Teko Haw Maraká’nà), reivindicando por Ação Civil Pública (ACP), a posse, gestão e manejo indígena do território, como espaço de uso indígena, voltado para a convivência espiritual comunitária de diversas etnocosmovisões com a criação de um Centro de Etnoconhecimento Socioambiental (CESAC). A Aldeia é constituída como pluriétnica, sendo composta por integrantes de várias etnias, entre elas, Guajajara, Xavante, Pataxó, Fulni-ô, Apurinã, Tukano, Xucuru, Puri, Way-Way, além de inúmeros visitantes tribais de várias partes do país e do planeta.
Visando manter um bom relacionamento com a vizinhança e o seu apoio permanente, buscando ainda provar a “condição de índios”, quebrando assim as barreiras do preconceito e da intolerância, os indígenas desenvolvem inúmeros eventos programados onde realizam rituais religiosos, entre eles, o toré, rezas, contação de histórias, danças, cantos e aulas públicas. Estas atividades vêm fortalecendo o local como espaço de referência da mística indígena se tornando um importante centro de resistência cultural indígena na cidade do Rio de Janeiro e no país, um verdadeiro ‘museu vivo’, como pretendido por seus idealizadores (REBUZZI, 2014: 73).
Com os preparativos da Copa do Mundo, de 2014, e das Olimpíadas, de 2016, começa mais um capítulo tenebroso de perseguição à Aldeia Maracanã e às suas lideranças por parte de empreiteiras consorciadas e dos governos federal e estadual. O terreno passa a ser requerido pelo Estado do Rio de Janeiro como espaço agregado ao projeto do ‘Complexo Desportivo-Empresarial do Maracanã’ para a construção de um estacionamento.
Segundo texto do site do Laboratório de Cartografia Indígena[4], a CONAB teria alienado o patrimônio público federal para o estado do Rio de Janeiro de forma ilegal, por 60 milhões de reais. A operação de compra e venda do espaço ocupado de moradia e uso de dezenas de famílias indígenas não é precedido de qualquer oitiva ‘com as partes interessadas’. A Aldeia Maracanã chegou assim a receber uma notificação da Procuradoria Geral do Estado que estabelecia um prazo de dez dias para que eles se retirassem do local, mas de acordo com Carlos Tukano, uma das lideranças da Aldeia, eles foram orientados pela Defensoria Pública da União, e optaram por não assinar o recebimento do documento. A empresa de licitação já havia sido contratada em 2013, mas a Aldeia Maracanã resistiu bravamente a uma informal ‘ordem de despejo’ no início desse ano, mesmo com a tropa de choque da polícia militar em sua porta. Mas em 22 de março deste mesmo ano a polícia voltou, desta vez com ordem judicial, com operação militar especial, com orientação para remoção da Aldeia. Eclodiram então confrontos sucessivos com os indígenas, ativistas, estudantes, moradores e apoiadores em geral, que tentaram ocupar as ruas em frente à Aldeia em sua defesa. A polícia militar usou de extrema violência contra os indígenas e demais manifestantes. “Pisou na cabeça do advogado da Aldeia sob o asfalto com seu coturno, além de algemá-lo. Uso de gás de “efeito moral” até contra crianças, idosos… Foi um ato de Terrorismo Institucionalizado de Estado...”[5].
As bilionárias obras de engenharia no estádio Maracanã e no seu entorno comprometeram o antigo território Maracanã que teve inúmeras árvores cortadas, benfeitorias destruídas e áreas pavimentadas com asfalto, comprometendo a situação ecológica do espaço e os projetos ambientais e agroecológicos da comunidade, o degradando severamente. Mas em reação, a Aldeia promoveu mutirões de recuperação ecológica e preservação do prédio histórico.
Ainda segundo dados apresentados pelo site do Laboratório de Cartografia Indígena, em dezembro deste mesmo ano, as empreiteiras lideradas pela Odebrecht, começam a demolir uma das edificações do antigo complexo de pesquisa do antigo Ministério da Agricultura e Colonização, mas o movimento indígena, com o apoio, inclusive de trabalhadores e atingidos pelas operações de reurbanização da cidade, ocupa uma destas edificações em protesto contra as demolições e em defesa do patrimônio público-comunitário indígena material e imaterial.
“A Tropa de Choque invade o prédio ocupado sem mandado, expulsa parte dos ocupantes e mantêm três lideranças indígenas em situação de detenção coercitiva por toda a madrugada, vigiados por dezenas de militares. Às 6h da manhã do dia seguinte, a PM, novamente sem mandado judicial, invade o território ocupado pelos indígenas e o interior do prédio, e retira seus ocupantes à força, arrastados sob escadarias em ruínas, sob o uso de gás de pimenta, imobilizados, sob socos e pontapés e golpes de cassetetes, alguns são detidos, de forma exemplar.”[6]
Apesar das inúmeras denúncias e manifestações em outras localidades da capital, quatro prédios e galpões foram lamentavelmente demolidos pelas empreiteiras e pela gestão público-privada do Consórcio Maracanã, tendo só sobrado, ao final, o prédio tombado do antigo Museu do Índio.
A ACP supracitada foi novamente movimentada pelas lideranças indígenas em 2016, quando foi reconhecida na sentença de juízo federal, o direito de uso, de manejo indígena do imóvel ou território. Espera-se que os órgãos de defesa dos direitos indígenas, como o Ministério Público Federal, a FUNAI e a Polícia Federal, cumpram o seu papel institucional neste processo, garantindo tais direitos na prática.
As atrocidades que ocorreram na aldeia Maracanã foram denunciadas e encaminhadas pela organização Justiça Global para diversas plataformas internacionais de Direitos Humanos. Estas serão também analisadas pelo Grupo de Trabalho sobre Detenções Arbitrárias da Organização das Nações Unidas (ONU). Entre as injustiças foram listadas uso indiscriminado do spray de pimenta e de bombas de efeito moral pelo batalhão de choque da polícia militar do Rio de Janeiro, além da prisão de pelo menos seis manifestantes sem justificativas ou permissão de acompanhamento de advogados. As lideranças indígenas solicitam ainda explicações formais às autoridades brasileiras sobre a utilização de acusações de desobediência e desacato como instrumento de criminalização de protestos dos povos tradicionais. Reiteram que a liberdade de expressão deveria ter sido assegurada aos indígenas e apoiadores, sendo um direito presente na Constituição Federal e na Declaração Universal sobre os Direitos Humanos. Lembraram ainda da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da ONU, sobre povos indígenas e tribais, ratificada em 2004 pelo Brasil que garante a noção de territorialidade específica e etnicamente construída, além da promoção à plena efetividade dos direitos sociais, econômicos, culturais, respeitando a sua identidade social, cultural, os seus costumes, tradições e suas instituições.
Uma das atividades culturais e de pesquisa que a Aldeia Maracanã (também considerada “Embaixada Indígena” ou “Acampamento Revolucionário Indígena”) desenvolvia no vizinho Museu Nacional era no Centro de Documentação de Línguas Indígenas, o CELIN, que preservava referências de povos indígenas documentadas há pelo menos duzentos anos, com escritos, fotografias, vídeos e gravações de línguas faladas por muitas tribos, inclusive algumas consideradas extintas, com registros de cantos, discursos e histórias, muitos ainda inéditos. Alguns indígenas da Aldeia, historiadores e pesquisadores da cultura dos povos originários do Brasil passaram assim boa parte dos últimos anos debruçados sobre o acervo etnológico e indígena em laboratórios desta instituição.
Mas infelizmente, mais um momento trágico assola a Aldeia Maracanã e todo o país no dia 02 de setembro de 2018, com um incêndio inaceitável do prédio histórico do Museu Nacional. Segundo os moradores da Aldeia, assim que avistaram as chamas, correram para o local, mas o fogo já teria consumido tudo. Em entrevista para a Revista Piaui[7], o historiador Daniel Tutushamum Puri, de 42 anos, conta que assistiu em silêncio às labaredas que consumiam objetos, fotografias e registros orais de seu povo, os Puri, que já foram considerados extintos pela FUNAI. “O material que estava ali servia de base para pesquisas do nosso povo e de muitos outros povos nativos do Brasil. Era uma forma de ter reconhecida nossa cultura e afirmar nossa existência. Sem eles, é como se fôssemos extintos novamente”, disse Tutushamum, que é mestre em Educação pela USP.
Para José Urutau Guajajara, de 57 anos: “Isso é a morte da memória dos povos originários, uma negligência com o nosso patrimônio. A memória de todas as línguas da América Latina estava aqui. Tínhamos registros sonoros e escritos de povos que já não existem. Estamos vendo a cultura indígena sendo apagada. Uma perda irreparável”, disse Urutau Guajajara, mestre em Linguística e Língua Indígena pela UFRJ. Integrante da tribo Tenetehara-Guajajara, Urutau fez sua tese sobre a estrutura do Ze’egté, sua língua ancestral, no Museu Nacional. Segundo Tutushamum, “a sensação é que nos odeiam... É mais uma destruição para a nossa cultura. Temos a destruição das nossas línguas, dos nossos costumes, das nossas terras e até mesmo dos nossos indivíduos. Então, esse incêndio no Museu Nacional parece parte da mesma agressão. É o que a gente sente,” conclui a liderança em sua entrevista para a revista.
Desde o inexplicável incêndio no Museu Nacional, indígenas da Aldeia Maracanã vem realizando inúmeros rituais, tanto na Aldeia quanto nas proximidades do prédio do Museu em memória ao acervo destruído, pois o imaterial ali permanece... “Rezas para os espíritos ancestrais vem sendo realizadas...” como explica o indígena Dario Jurema Xucuru.
Outra atividade de luta e de expressão deste importante núcleo indígena urbano é a organização da terceira edição do Congresso Intercultural de Resistência dos Povos Indígenas e Tradicionais do Maraka´nà, que busca promover a articulação dos povos tradicionais em torno da luta pela autodemarcação do território, do saber e do seu protagonismo.
Luto sim, contra estas injustiças e tragédias... em permanente Luta. Sigamos.
Referências.
Artigo citado:
REBUZZI, D. C. Aldeia Maracanã: um movimento contra o índio arquivado. Revista de Antropologia da UFSCAR, 6 (2) Jul/Dez de 2014.
Sites /Matérias Consultadas:
Belo Horizonte, MG, 12 de novembro de 2018.
Entre os dias 15 e 19 de Novembro de 2018 ocorrerá o COIREM - Congresso Intercultural de Resistência dos Povos Indígenas e Tradicionais do Maraka´nà.
“Após enormes ataques sofridos e remoções truculentas, a ‘ReXistência’ da Aldeia Maraka'nà completa 12 anos desde a nossa retomada e frente ao quadro nacional de brutais ataques contra os povos indígenas, convocamos todos guerreiros e guerreiras à realização do III Congresso Intercultural da ‘ReXistência’ dos Povos Indígenas e Tradicionais do Maraka'nà. Este Congresso visa promover a articulação dos povos tradicionais em torno da luta pela autodemarcação do saber e do território. Vivemos num dos poucos países do continente onde não existe uma universidade indígena. Nosso protagonismo sempre foi negado e é ferramenta fundamental para avançarmos em nossa luta por garantia de nossa dignidade como povos soberanos.”
https://www.facebook.com/events/255345975185846/ |
[1] Doutora em Arqueologia e Historiadora. Membro do Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (CEDEFES); e-mail: alenicebaeta@yahoo.com.br
[2] Cf. http://multirio.rio.rj.gov.br/index.php/leia/reportagens-artigos/reportagens/1007-entre-flechas-e-chamas-nasceu-o-rio
[3]O SPI foi sucedido pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), em 1967.
[6] Cf. Nota 2 ( Site do Laboratório de Cartografia Indígena)
[7] Entrevista para Camila Zarur em 3 de Setembro de 2018.
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