Em
opressão de classe, pesquisa militante!
Por Gilvander Moreira[1]
Não podemos confundir pesquisa participante com
pesquisa-ação. Há distinção entre elas. “Existem diversos tipos de pesquisa
participante e diversos tipos de pesquisa-ação. Uma clara distinção é
necessária. A pesquisa-ação é uma forma de pesquisa participante, mas nem todas
as pesquisas participantes são pesquisa-ação. [...] A pesquisa-ação não é
apenas uma pesquisa participante, é um tipo de pesquisa centrada na questão do
agir” (THIOLLENT, 1987, p. 83), este embasado em quatro princípios: a) de
identidade: quem age?; b) de oposição: ação contra quem?; c) de totalidade:
ação sobre o quê?; d) de finalidade: com qual utopia? “A pesquisa-ação opera a
partir de certas instruções relativas aos problemas identificados na situação e
relativos aos modos de ação. Essas instruções, ou diretrizes, possuem um
caráter menos rígido do que o das hipóteses. Com os resultados da pesquisa,
essas diretrizes podem sair fortalecidas ou, caso contrário, devem ser
abandonadas e substituídas por outras” (THIOLLENT, 1987, p. 101).
Pesquisar segundo instrumentos metodológicos da
pesquisa participante é um desafio, pois exige perguntar “até que ponto é mais
participação do que pesquisa e em que medida participação pode ser uma maneira
de descobrir a realidade e de a manipular?” (DEMO, 1987, p. 104). A prática não
é o critério da verdade, pura e simplesmente, pois pode uma teoria não
verdadeira chegar a uma prática. Isso porque “de uma mesma teoria podemos
deduzir várias práticas opcionais, inclusive contraditórias” (DEMO, 1987, p.
105). A prática é sempre concreta e específica, enquanto a teoria é
generalizante. “Assim, não se pratica toda a teoria, mas versões concretas
dela” (DEMO, 1987, p. 106). A prática tem um caráter limitante, em face da teoria. “Toda prática apequena a teoria,
porquanto não ultrapassa a condição histórica de uma versão dela. [...] Toda
prática, ao mesmo tempo que realiza a teoria, também a limita, no sentido de
que não consegue esgotar todas as potencialidades teóricas” (DEMO, 1987, p.
106). Exemplos disso não faltam. A ditadura do proletariado não passou até hoje
de uma pretensão teórica; na prática o que houve na Rússia foi ditadura do
partido que dizia ser representante do proletariado. A democracia, entendida
como “poder exercido pelo povo” também tem sido uma pretensão teórica, pois na
prática a ‘democracia’ existente é ‘poder exercido pelos eleitos pelo povo’, em
eleições com pesadíssimo poder econômico e midiático contaminando o processo
eleitoral. Assim como toda teoria, “toda prática é necessariamente ideológica,
porque se realiza dentro de uma opção política” (DEMO, 1987, p. 107). “O
teórico foge muitas vezes da prática, porque tem medo da condenação histórica,
do compromisso atacável. Prefere criticar a propor, porque toda proposta, se
for prática, é também atacável, pois não representará a perfeição histórica,
mas uma versão dela. Todavia, a fuga da prática é, à revelia, uma prática, um
tipo de compromisso político, geralmente conservador. Assim, ao querermos não
sujar as mãos, sujamo-las mais ainda, ou por malandragem, quando escamoteamos
compromissos escusos e que não gostamos de revelar, ou por inocência útil, quando
não chegamos a tomar consciência do compromisso latente que é a falta de
compromisso” (DEMO, 1987, p. 108-109).
A ideia de objeto de pesquisa ainda é cabível nas
ciências naturais, mas nas ciências humanas e sociais não cabe mais tal noção,
pois, mais do que objetos de pesquisa são sujeitos sociais participantes sendo
pesquisados. “Entre sujeito e objeto não há mera observação por parte do
primeiro, nem imposição evidente por parte do segundo, mas interação dinâmica e
dialética. Acabam-se identificando, sobretudo quando os objetos são sujeitos
sociais também o que permite desfazer a ideia de objeto, que caberia somente em
ciências naturais” (DEMO, 1987, p. 115).
Conflitos e desigualdades estão presentes em todas
as sociedades, sejam elas capitalistas ou não, pois há sempre que se lidar com
o poder. “Em toda sociedade existe poder e ele caracteriza-se principalmente
pela desigualdade entre grupo dominante e maioria dominada” (DEMO, 1987, p.
120). Quem faz pesquisa participante acredita na potencialidade da comunidade,
na capacidade criativa de todos, desierarquiza a construção do conhecimento e
fundamenta a noção segundo a qual “o conhecimento não nasce nos cérebros de uma
parte da sociedade, mas é socialmente produzido através de um processo
compartido por todas as partes. Não há diferença qualitativa entre conhecimento
teórico e prático; pertencem a diferentes finalidades do mesmo contínuo” (DEMO,
1987, p. 126).
A pesquisa
participante pode ser considerada como pesquisa militante que apregoa uma
íntima relação – união intrínseca - entre conhecimento e ação. “Conhecimento e
ação são dois aspectos inseparáveis da atividade humana. O conhecimento não é
mera contemplação, nem a prática mera atividade; separada da prática, a teoria
se reduz a meros enunciados verbais; separada da teoria, a prática não é mais
que um ativismo inconducente. Não há, pois, autêntico conhecimento e autêntica
ação, se não se expressam em uma permanente inter-relação unitária” (RIGAL,
1978, p. 3).
A pesquisa militante se constituiu como estratégia
metodológica em um contexto político de opressão de classe e também de reação
frentes às opressões. Entre os anos 20 e 40 do século XX, Gandhi e seus
seguidores inovam e recriam pistas teóricas e práticas de ação não violenta.
Mas, nas décadas de 1950 a 1970, tivemos, por um lado, a ascensão do império
estadunidense na época da guerra fria e, por outro lado, vários movimentos
anti-imperialistas e de libertação nacional na América Latina recriaram
diferentes estratégias de luta, entre as quais, as de guerrilha.[2] Na
Bolívia, em 1952, houve uma tentativa de revolução socialista. Em 1954, o
governo de Jacobo Arbenz na Guatemala tomou medidas anti-imperialistas. Em
1959, a revolução cubana. Em 1965, o movimento constitucionalista na República
Dominicana. E, em 1970, o triunfo da Unidade Popular no Chile. Houve também
movimentos guerrilheiros na Venezuela, Colômbia, Peru, Bolívia, República
Dominicana, Guatemala e Brasil (Cf. BONILLA et al., 1987, p. 132). A dominação
buscada pelo império estadunidense não seria apenas política, militar e
econômica, mas também cultural e necessariamente dominação pelas ciências
também. Com o golpe militar-civil-empresarial no Brasil, em 1964, imediatamente
as universidades foram dominadas e os cursos de filosofia e de sociologia foram
extintos e os professores expulsos, encarcerados ou exilados. “Neste cenário de
conflitos de classe, de luta pelo controle do poder político tanto no plano
nacional como internacional, as ciências em geral, e as ciências sociais em
particular, não poderiam ficar à margem da contenda. Elas se converteram
efetivamente em uma arma do imperialismo não apenas através de investigações
sociais de caráter contrarrevolucionário, como também mediante a difusão de uma
ideologia que pretende mostrar as sociedades capitalistas dominantes –
principalmente os Estados Unidos e seus procuradores ou estandartes – como
metas de desenvolvimento ou modelos de progresso e democracia para os países do
chamado Terceiro Mundo” (BONILLA et al., 1987, p. 132-133).
BONILLA,
Victor Daniel. CASTILLO, Gonzalo; BORDA, Orlando Fals; LIBREROS, Augusto. Causa
popular, ciência popular: uma metodologia do conhecimento científico através da
ação. In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues (Org.).
Repensando a pesquisa participante. 3ª edição. São Paulo:
Brasiliense, 1987.
DEMO,
Pedro. Elementos metodológicos da pesquisa participante. In: BRANDÃO, Carlos
Rodrigues (Org.). Repensando a pesquisa
participante. 3ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1987.
RIGAL, Luis. Sobre el
sentido y uso de la investigación-acción. In: Simposio Mundial de Cartagena. Crítica y Política en Ciencias Sociales,
Vol. I,
Bogotá: Punta de Lanza, 1978.
THIOLLENT,
Michel. Notas para o debate sobre pesquisa-ação. In: Carlos Rodrigues Brandão
(Org.). Repensando a pesquisa
participante. 3ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1987.
Belo
Horizonte, MG, 04/9/2018.
Obs.: Os vídeos, abaixo,
ilustram o texto, acima.
1 -
Livro da Sabedoria: conhecimento de Deus. Luiz Dietrich fala com frei
Gilvander. 19/8/2018.
2 -
Palavra Ética na TVC/BH: Despejo e resistência em Nova Serrana, MG, Ocup. Nova
Jerusalém. 07/6/2018
3 -
Aldeia Kamakã Grayra na FUCAM/Esmeraldas/MG: Resistência pelo direito à
terra/18/8/2018.
[1]
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG;
licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas;
assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais
Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
[2]
Na Guerrilha do Araguaia se expressou uma tensão muito maior do que a sua mera
expressão local. “Um grupo de guerrilheiros do Partido Comunista do Brasil,
erguendo a bandeira política da terra para quem nela trabalha” (MARTINS, 1991a:
125), apenas 69 guerrilheiros, ao lado dos posseiros, de um lado, e do outro
lado, cerca de 20 mil soldados das Forças Armadas Brasileiras em três campanhas
de busca e aniquilamento. Três anos de resistência, de 1972 a 1975. “O
personagem histórico essencial desse conflito foi e é o posseiro, o pequeno
lavrador baseado no trabalho familiar. Ele foi fundamente atingido pela
repressão [...] É estarrecedor saber que o primeiro contato de sertanejos com o
progresso da eletricidade foi através
de um aparelho de choque, de um instrumento de tortura, de uma máquina da ordem. [...] O combate à guerrilha
agravou a questão da terra em várias regiões da Amazônia” (MARTINS, 1991a:
126). O regime militar, ao reprimir, piorou muito o conflito agrário no
Araguaia e em todo o Brasil. Cf. MARTINS, José de Souza. Guerrilha do Araguaia:
o vencedor e o vencido. In: MARTINS, José de Souza. Expropriação e violência: a questão política no campo. 3ª edição.
São Paulo: HUCITEC, 1991, p. 115-127.
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