Pesquisa solidária, sim; solitária, jamais.
Por Gilvander Moreira[1]
Foto: G. L. Moreira, dia 02/6/2018, em Ponte Nova, MG, na 3a Romaria das Águas e da Terra de MG. |
Lutar coletivamente compreendendo
a concepção concreta da dialética é imprescindível para não se azedarem as
relações humanas entre os sujeitos que batalham na luta pela terra e por todos
os direitos humanos fundamentais. Quando, por exemplo, em uma reunião de um
movimento social popular, posições diferentes são postas a partir de um
determinado assunto levantado, o diferente, que muitas vezes soa como
contraditório, não deve ser eliminado, mas incorporado, pois contribuirá, sem
sombra de dúvida, para se chegar a um ponto melhor e fértil. Assim, divergir
quando se está avaliando a luta por direitos ou planejando-a é algo mais do que
benéfico, é necessário, para a superação dos limites e impasses que precisam
ser superados. A busca deve ser coletiva, o que implica passar por lógica
dialética e concreta. Regras prontas também podem sustentar lógicas formais
abstratas que em se mudando o contexto, tempos e espaços diferentes, podem mais
ofuscar o que é o real do que manifestá-lo.
Ao
escolhermos uma determinada linha metodológica, implicitamente escolhemos,
consciente ou inconscientemente, voluntária ou involuntariamente, determinados
pressupostos filosóficos, valorativos, morais e/ou políticos. Certas regras do
mundo universitário que regem vários tipos de pesquisa acadêmica têm pouca
incidência nos grupos pesquisados, são úteis principalmente para uma minoria
privilegiada obter títulos. Por outro lado, segundo um dos maiores expoentes
teóricos e praticantes da pesquisa-ação na América Latina, Michel Thiollent, “a
pesquisa-ação e também certas formas de pesquisa
participante seriam um meio de melhor adequar a pesquisa aos temas e
problemas encontráveis no seio do povo” (THIOLLENT, 1987, p. 87). Há diferentes
jeitos de participação na construção do conhecimento. “Os diferentes estilos
participativos na construção do conhecimento social envolvem tipos de
investigações e pesquisas que, ora mais próximos, ora mais distanciados,
transitam entre a academia e os movimentos sociais” (BRANDÃO; STRECK, 2006, p.
11).
Ninguém é
uma ilha. Pesquisar solitariamente é enveredar-se por um deserto estéril. Na
pesquisa, exige-se caminhar ao lado de muitos que são indispensáveis para o
êxito do trabalho. “O andar coletivo de quem descobre que todo o saber que não
se abre a ser uma vivência de partilha é um saber não confiável, porque suas
motivações podem ser pouco verdadeiras em um sentido humano, mesmo que suas
descobertas sejam corretas e inovadoras, desde um ponto de vista científico”
(BRANDÃO; STRECK, 2006, p. 12).
Apoiando-nos
em Carlos Rodrigues Brandão, afirmamos que não há um único jeito de fazer
pesquisa participante, mas há inúmeras modalidades de pesquisa participante que se refazem no movimento da história e da
sociedade. Nas metodologias tradicionais de pesquisa científica para se afirmar
o caráter científico se recai no cientificismo ao apregoar uma pretensa
neutralidade do/da pesquisador/a, escamoteando sua opção política. Para não se
recair em subjetivismo cai-se em outro extremo que é afirmar a pretensa
neutralidade dos métodos científicos. Assim, parte significativa de uma
metodologia científica adequada “serve para proteger o sujeito de si próprio,
de sua própria pessoa, ou seja: de sua subjetividade. Que entre quem pesquisa e
quem é pesquisado não exista senão uma proximidade policiada entre o método (o sujeito dissolvido em ciência)
e o objeto (o outro sujeito
dissolvido em dado)” (BRANDÃO, 1987, p. 7).
Nessa concepção de pesquisa científica se oculta cuidadosamente o nome
da comunidade pesquisada, sob a desculpa não confessada de se garantir o
anonimato para não colocar em “maus lençóis” o “objeto” investigado dependendo
do que for revelado[2] e
muitas vezes se faz a análise do resultado com base nos questionários que
induzem a pensar que quem pesquisa “possui todas as perguntas e, o outro, todas
as respostas” (BRANDÃO, 1987, p. 10).
A Escola
de Chicago não questiona fundamentalmente a tese da neutralidade científica,
mas insiste, de maneira incisiva, na necessidade de levar em conta o ponto de
vista dos sujeitos sociais que se pesquisa. Arriscamos a dizer que não basta
levar em conta, mas também é benéfico priorizar os pontos de vistas dos injustiçados,
pois são eles os sujeitos protagonistas da luta por direitos sociais. De pouco
adianta garimpar e refinar referências teóricas se não há sujeitos capazes de,
através da práxis – a atividade humana que interpreta e transforma o real -,
mover a realidade para potencializar a transformação.
A
experiência de muitos cientistas sociais comprometidos com a luta por justiça
social, contribuindo com pesquisas que despertam o poder da classe injustiçada
em luta, indica que “só se conhece em profundidade alguma coisa da vida da
sociedade ou da cultura, quando através de um envolvimento – em alguns casos,
um comprometimento – pessoal entre o pesquisador e aquilo, ou aquele, que ele
investiga” (BRANDÃO, 1987, p. 8). O outro
a ser pesquisado, considerado objeto,
não pode ser reduzido a um eu como eu,
um eu subalterno, mas precisa ser
compreendido como outro eu, na sua
alteridade. A existência do diferente precisa ser respeitada.
Como tudo
que é histórico, evolui ou encolhe, se transforma, os métodos de pesquisa
científica também mudaram a partir de quando o pesquisador polonês Malinowski
saiu da Inglaterra para pesquisar nas ilhas Trobriand[3].
“Quando Malinowski desembarcou sozinho nas ilhas de Trobriand, não era apenas
um método que ia ser reinventado ali: era uma atitude. Não mais reconstruir a
explicação da sociedade e da cultura do “outro” através de fragmentos de
relatos de viajantes e missionários. Ir conviver com o outro no seu mundo; aprender a sua língua; viver sua vida; pensar
através de sua lógica; sentir com ele” (BRANDÃO, 1987, p. 11).
Com essa
mudança de postura com relação à pesquisa, nasceu a técnica de observação participante como um meio
para se apreender a lógica interna da vida social, ancorada no princípio
segundo o qual “em todos os mundos sociais todas as instituições da vida estão
interligadas de tal sorte e de tal maneira se explicam através da posição que
ocupam e da função que exercem no interior da vida social total, que somente
uma apreensão pessoal e demorada de tudo possibilita a explicação científica
daquela sociedade” (BRANDÃO, 1987, p. 12).
Brandão
recorda que Marx, pesquisando na Inglaterra, descobriu a participação da pesquisa: “Não é necessário que o pesquisador se
faça operário ou como ele, para conhecê-lo. É necessário que o cientista e sua
ciência sejam, primeiro, um momento de compromisso e participação com o
trabalho histórico e os projetos de luta do outro,
a quem, mais do que conhecer para explicar, a pesquisa pretende compreender
para servir” (BRANDÃO, 1987, p. 12). Pelo exposto acima, concluímos que
pesquisa emancipatória exige ser feita de forma solidária e jamais solitária.
Referências.
BRANDÃO,
Carlos Rodrigues; STRECK, Danilo R. (Org.). Pesquisa participante: o saber da partilha. 2ª edição.
Aparecida/SP: Ideias & Letras, 2006.
BRANDÃO,
Carlos Rodrigues (Org.). Repensando a
pesquisa participante. 3ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1987.
THIOLLENT,
Michel. Notas para o debate sobre pesquisa-ação. In: Carlos Rodrigues Brandão
(Org.). Repensando a pesquisa
participante. 3ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1987.
Belo Horizonte, MG, 07/8/2018.
Obs.: Os
vídeos, abaixo, ilustram o texto, acima.
1 - Daiane, Comunidade Quilombola Baú/MG -
Ameaças e violência por lutar pelo território/24/5/2018.
2 - Cristiano, do MTL, Santa Vitória/MG –
Ameaçado de morte por lutar pelo direito à terra. 24/5/2018.
3 - Aparecida Damasceno, de Uberlândia/MG:
Repressão e ameaças na luta por moradia. 24/5/2018.
[1]
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG;
licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas;
assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais
Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
[2]
Como exemplo, citamos uma pesquisa de uma médica em Belo Horizonte que
demonstrou que os pacientes de três hospitais da capital mineira, ao receberem
alta médica, estavam mais desnutridos do que ao darem entrada nos hospitais por
causa das péssimas condições da alimentação hospitalar. Quando lhe perguntei
qual eram os três hospitais, ela me respondeu: “São os hospitais A, B e C. Não
podemos revelar a identidade dos hospitais por uma exigência do código de ética
do COEP”.
[3]
Ilhas que compõe um arquipélago na costa oriental da Nova Guiné, no Pacífico
Ocidental.
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