terça-feira, 7 de agosto de 2018

Pesquisa solidária, sim; solitária, jamais.


Pesquisa solidária, sim; solitária, jamais.
Por Gilvander Moreira[1]

Foto: G. L. Moreira, dia 02/6/2018, em Ponte Nova, MG,
na 3a Romaria das Águas e da Terra de MG.
 Lutar coletivamente compreendendo a concepção concreta da dialética é imprescindível para não se azedarem as relações humanas entre os sujeitos que batalham na luta pela terra e por todos os direitos humanos fundamentais. Quando, por exemplo, em uma reunião de um movimento social popular, posições diferentes são postas a partir de um determinado assunto levantado, o diferente, que muitas vezes soa como contraditório, não deve ser eliminado, mas incorporado, pois contribuirá, sem sombra de dúvida, para se chegar a um ponto melhor e fértil. Assim, divergir quando se está avaliando a luta por direitos ou planejando-a é algo mais do que benéfico, é necessário, para a superação dos limites e impasses que precisam ser superados. A busca deve ser coletiva, o que implica passar por lógica dialética e concreta. Regras prontas também podem sustentar lógicas formais abstratas que em se mudando o contexto, tempos e espaços diferentes, podem mais ofuscar o que é o real do que manifestá-lo.
Ao escolhermos uma determinada linha metodológica, implicitamente escolhemos, consciente ou inconscientemente, voluntária ou involuntariamente, determinados pressupostos filosóficos, valorativos, morais e/ou políticos. Certas regras do mundo universitário que regem vários tipos de pesquisa acadêmica têm pouca incidência nos grupos pesquisados, são úteis principalmente para uma minoria privilegiada obter títulos. Por outro lado, segundo um dos maiores expoentes teóricos e praticantes da pesquisa-ação na América Latina, Michel Thiollent, “a pesquisa-ação e também certas formas de pesquisa participante seriam um meio de melhor adequar a pesquisa aos temas e problemas encontráveis no seio do povo” (THIOLLENT, 1987, p. 87). Há diferentes jeitos de participação na construção do conhecimento. “Os diferentes estilos participativos na construção do conhecimento social envolvem tipos de investigações e pesquisas que, ora mais próximos, ora mais distanciados, transitam entre a academia e os movimentos sociais” (BRANDÃO; STRECK, 2006, p. 11).
Ninguém é uma ilha. Pesquisar solitariamente é enveredar-se por um deserto estéril. Na pesquisa, exige-se caminhar ao lado de muitos que são indispensáveis para o êxito do trabalho. “O andar coletivo de quem descobre que todo o saber que não se abre a ser uma vivência de partilha é um saber não confiável, porque suas motivações podem ser pouco verdadeiras em um sentido humano, mesmo que suas descobertas sejam corretas e inovadoras, desde um ponto de vista científico” (BRANDÃO; STRECK, 2006, p. 12).
Apoiando-nos em Carlos Rodrigues Brandão, afirmamos que não há um único jeito de fazer pesquisa participante, mas há inúmeras modalidades de pesquisa participante que se refazem no movimento da história e da sociedade. Nas metodologias tradicionais de pesquisa científica para se afirmar o caráter científico se recai no cientificismo ao apregoar uma pretensa neutralidade do/da pesquisador/a, escamoteando sua opção política. Para não se recair em subjetivismo cai-se em outro extremo que é afirmar a pretensa neutralidade dos métodos científicos. Assim, parte significativa de uma metodologia científica adequada “serve para proteger o sujeito de si próprio, de sua própria pessoa, ou seja: de sua subjetividade. Que entre quem pesquisa e quem é pesquisado não exista senão uma proximidade policiada entre o método (o sujeito dissolvido em ciência) e o objeto (o outro sujeito dissolvido em dado)” (BRANDÃO, 1987, p. 7).
Nessa concepção de pesquisa científica se oculta cuidadosamente o nome da comunidade pesquisada, sob a desculpa não confessada de se garantir o anonimato para não colocar em “maus lençóis” o “objeto” investigado dependendo do que for revelado[2] e muitas vezes se faz a análise do resultado com base nos questionários que induzem a pensar que quem pesquisa “possui todas as perguntas e, o outro, todas as respostas” (BRANDÃO, 1987, p. 10).
A Escola de Chicago não questiona fundamentalmente a tese da neutralidade científica, mas insiste, de maneira incisiva, na necessidade de levar em conta o ponto de vista dos sujeitos sociais que se pesquisa. Arriscamos a dizer que não basta levar em conta, mas também é benéfico priorizar os pontos de vistas dos injustiçados, pois são eles os sujeitos protagonistas da luta por direitos sociais. De pouco adianta garimpar e refinar referências teóricas se não há sujeitos capazes de, através da práxis – a atividade humana que interpreta e transforma o real -, mover a realidade para potencializar a transformação.
A experiência de muitos cientistas sociais comprometidos com a luta por justiça social, contribuindo com pesquisas que despertam o poder da classe injustiçada em luta, indica que “só se conhece em profundidade alguma coisa da vida da sociedade ou da cultura, quando através de um envolvimento – em alguns casos, um comprometimento – pessoal entre o pesquisador e aquilo, ou aquele, que ele investiga” (BRANDÃO, 1987, p. 8). O outro a ser pesquisado, considerado objeto, não pode ser reduzido a um eu como eu, um eu subalterno, mas precisa ser compreendido como outro eu, na sua alteridade. A existência do diferente precisa ser respeitada.
Como tudo que é histórico, evolui ou encolhe, se transforma, os métodos de pesquisa científica também mudaram a partir de quando o pesquisador polonês Malinowski saiu da Inglaterra para pesquisar nas ilhas Trobriand[3]. “Quando Malinowski desembarcou sozinho nas ilhas de Trobriand, não era apenas um método que ia ser reinventado ali: era uma atitude. Não mais reconstruir a explicação da sociedade e da cultura do “outro” através de fragmentos de relatos de viajantes e missionários. Ir conviver com o outro no seu mundo; aprender a sua língua; viver sua vida; pensar através de sua lógica; sentir com ele” (BRANDÃO, 1987, p. 11).
Com essa mudança de postura com relação à pesquisa, nasceu a técnica de observação participante como um meio para se apreender a lógica interna da vida social, ancorada no princípio segundo o qual “em todos os mundos sociais todas as instituições da vida estão interligadas de tal sorte e de tal maneira se explicam através da posição que ocupam e da função que exercem no interior da vida social total, que somente uma apreensão pessoal e demorada de tudo possibilita a explicação científica daquela sociedade” (BRANDÃO, 1987, p. 12).
Brandão recorda que Marx, pesquisando na Inglaterra, descobriu a participação da pesquisa: “Não é necessário que o pesquisador se faça operário ou como ele, para conhecê-lo. É necessário que o cientista e sua ciência sejam, primeiro, um momento de compromisso e participação com o trabalho histórico e os projetos de luta do outro, a quem, mais do que conhecer para explicar, a pesquisa pretende compreender para servir” (BRANDÃO, 1987, p. 12). Pelo exposto acima, concluímos que pesquisa emancipatória exige ser feita de forma solidária e jamais solitária.

Referências.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues; STRECK, Danilo R. (Org.). Pesquisa participante: o saber da partilha. 2ª edição. Aparecida/SP: Ideias & Letras, 2006.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues (Org.). Repensando a pesquisa participante. 3ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1987.
THIOLLENT, Michel. Notas para o debate sobre pesquisa-ação. In: Carlos Rodrigues Brandão (Org.). Repensando a pesquisa participante. 3ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1987.

Belo Horizonte, MG, 07/8/2018.

Obs.: Os vídeos, abaixo, ilustram o texto, acima.
1 - Daiane, Comunidade Quilombola Baú/MG - Ameaças e violência por lutar pelo território/24/5/2018.



2 - Cristiano, do MTL, Santa Vitória/MG – Ameaçado de morte por lutar pelo direito à terra. 24/5/2018.



3 - Aparecida Damasceno, de Uberlândia/MG: Repressão e ameaças na luta por moradia. 24/5/2018.






[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. 
www.twitter.com/gilvanderluis             Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Como exemplo, citamos uma pesquisa de uma médica em Belo Horizonte que demonstrou que os pacientes de três hospitais da capital mineira, ao receberem alta médica, estavam mais desnutridos do que ao darem entrada nos hospitais por causa das péssimas condições da alimentação hospitalar. Quando lhe perguntei qual eram os três hospitais, ela me respondeu: “São os hospitais A, B e C. Não podemos revelar a identidade dos hospitais por uma exigência do código de ética do COEP”.
[3] Ilhas que compõe um arquipélago na costa oriental da Nova Guiné, no Pacífico Ocidental.

Nenhum comentário:

Postar um comentário