Como pesquisar
para transformar?
Por Gilvander Moreira[1]
Casa da Saúde no Acampamento Maria da Conceição, do MST, no município de Itatiaiuçu, MG, dia 13/01/2018. Foto: G. L. Moreira. |
Ao fazer retrospectiva sobre a evolução da
metodologia de pesquisa, Marcela Gajardo define a Pesquisa Participante como
apropriação coletiva do saber, na produção coletiva do conhecimento, algo indispensável
na luta por efetivação de direitos dos grupos explorados. Parte-se do princípio
de que os grupos injustiçados em luta por direitos são sujeitos políticos.
Assim, na década de 1960 se evolui da pesquisa temática para a pesquisa-ação.
Buscam-se estratégias metodológicas que viabilizem a superação de dicotomias,
tais como: sujeito-objeto, teoria-prática, “possibilitando uma produção
coletiva de conhecimentos em torno de vivências, interesses e necessidades dos
grupos situados histórica e socialmente” (GAJARDO, 1987, p. 18).
Em contexto de crise dos sistemas teóricos,
crise nas Ciências Sociais, inclusive, emerge a Pesquisa Participante como uma
proposta metodológica emancipatória. “As primeiras experiências sociais de
vocação participativa surgem em um tempo histórico em que se renovam e se
multiplicam sistemas teóricos de crítica do presente, associados a uma não rara
esperançosa proposta de construção social do futuro” (BRANDÃO; STRECK, 2006, p.
25).
A partir dos anos 70 do século XX, vindo de uma
vertente mais sociológica do que propriamente pedagógica, o conceito de
pesquisa-ação passa a ser utilizado “para caracterizar os estilos
participacionistas de pesquisa” (GAJARDO, 1987, p. 23), embora Paulo Freire
seja considerado o criador desse enfoque metodológico. Iniciador da pesquisa
participante na América Latina, Orlando Fals Borda - pesquisador, historiador e
sociólogo colombiano da Sociologia da Libertação -, um dos criadores da
Investigação-ação participativa, afirma a vinculação da pesquisa com as ações
sociais e políticas desenvolvidas pelos grupos oprimidos e conscientes. Em
entrevista, Orlando Borda faz memória do nascedouro da pesquisa participante.
Diz ele: “Foi em 1970, em protesto pela rotina acadêmica e a falta de apoio a
aquilo que nós pensávamos que devia ser investigado e transformado, porque o
interessante aí foi a ênfase na ação; investigar para transformar, esse foi nosso esquema. Investigar para quê?
Bem, para transformar. Por quê? Porque há injustiça, há exploração e o mundo tem
de ser mais satisfatório” (BORDA, 1981, p. 78).
Orlando Borda sustentava, na década de 1970,
“um conceito de ciência que distinguia (e ainda distingue) entre ciência
popular e ciência dominante. Esta última, definida como uma atividade que
privilegia a manutenção do sistema vigente, capitalista e dependente” (GAJARDO,
1987, p. 23). Por outro lado, a ciência popular é definida como o “conhecimento
empírico, prático, de senso comum que tem sido um bem cultural e ideológico
ancestral das camadas da base social, o qual lhes permitiu criar, trabalhar e
interpretar a realidade predominantemente por meio de recursos que a natureza
oferece ao homem” (BORDA, 1981, p. 152). Com Orlando Fals Borda afirmamos que
toda ciência e todo trabalho científico têm uma conotação de classe, mesmo que
seja negada pelo/pela pesquisador/a. Além disso, o conhecimento para
transformação social não se radica apenas na formação de uma consciência
emancipatória, mas na prática dos grupos oprimidos, pois é com prática, atuação
concreta, que se podem alterar as condições materiais históricas.
Ainda em 1977, em uma reunião internacional
sobre pesquisa participante convocada pelo Consejo Internacional de Educación
de Adultos, restou definido: “A pesquisa participante é um enfoque de investigação
social por meio do qual se busca a plena participação da comunidade na análise
de sua própria realidade com o objetivo de promover a participação social para
o benefício dos participantes da investigação. Esses participantes são os
oprimidos, os marginalizados, os explorados. Trata-se, portanto, de uma
atividade educativa, de investigação e ação social” (GIANOTTEN; WIT, 1987, p.
169).
Na década de 1980, houve a formatação do
instrumento de pesquisa participante. Esta “surge, conceitual e metodologicamente,
no início da década de 1980, quando a realidade de um número importante de
sociedades latino-americanas se caracteriza pela presença de regimes
autoritários e modelos de desenvolvimento manifestamente excludentes, no
aspecto político, e concentradores, no aspecto econômico” (GAJARDO, 1987, p.
39).
“A
pesquisa participante procura auxiliar a população envolvida a identificar por
si mesma os seus problemas, a realizar a análise crítica destes e a buscar as
soluções adequadas” (LE BOTERF, 1987, p. 52). Fazer pesquisa participante e
chegar a um bom termo é um desafio, pois “exige do pesquisador uma postura
muito aberta em relação à investigação, uma grande capacidade de se
“descentrar” para “se colocar no lugar do outro”, do interlocutor” (LE BOTERF,
1987, p. 58). A pesquisa participante pode ser instrumento de pesquisa em
inúmeras modalidades e com muitas características. “Uma das principais
características da pesquisa participante é que ela parte dos problemas
colocados pelos pesquisados, problemas que eles estão dispostos a estudar. Ela
parte do mundo cotidiano do povo e escuta sua voz. Importa igualmente
compreender a história vivida, revelada pela memória individual e coletiva:
quais são os conflitos, as desconfianças, as alianças e as lutas pela terra?”
(LE BOTERF, 1987, p. 57-58).
Realizar pesquisa participativa exige “viver
junto” com a coletividade estudada, partilhar o seu cotidiano, o seu uso do
tempo e do espaço: “Ouvir, em vez de tomar notas ou fazer registros; ver e
observar, em vez de filmar; sentir, tocar em vez de estudar; “viver junto” em
vez de visitar” (LE BOTERF, 1987, p. 58). Sem uma relação de confiança entre
pesquisados e pesquisador não é possível se fazer pesquisa participante. E
confiança se conquista, não se pede ajoelhado e nem se impõe de dedo em riste.
O grupo pesquisado ativo precisa sentir que o pesquisador é “um dos nossos”. Enfim,
pesquisar para transformar exige libertar-se das metodologias acadêmicas
tradicionais, considerar os grupos oprimidos pesquisados como sujeitos
construtores de conhecimentos emancipatórios, conviver com os grupos
subalternizados e construir conhecimento de forma coletiva superando a
hierarquia que muitos estabelecem entre conhecimento científico e conhecimento
popular.
Referências.
BORDA,
Orlando Fals. La ciencia y el pueblo. Nuevas reflexiones sobre la
investigación-acción. In: La Sociología
en Colombia, Bogotá, Asociación Colombiana de Sociología, III Congreso
Nacional de Sociología, p. 149-174, 1981.
BRANDÃO,
Carlos Rodrigues; STRECK, Danilo R. (Org.). Pesquisa participante: o saber da partilha. 2ª edição.
Aparecida/SP: Ideias & Letras, 2006.
GAJARDO,
Marcela. Pesquisa participante: propostas e projetos. In: BRANDÃO, Carlos
Rodrigues (Org.). Repensando a pesquisa
participante. 3ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1987.
GIANOTTEN,
Vera; WIT, Ton de. Pesquisa participante em um contexto de economia camponesa.
In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues (Org.). Repensando
a pesquisa participante. 3ª edição. São
Paulo: Brasiliense, 1987.
LE BOTERF, Guy. Pesquisa participante: propostas e reflexões
metodológicas. In: BRANDÃO,
Carlos Rodrigues (Org.). Repensando a
pesquisa participante. 3ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1987.
Belo Horizonte, MG, 14/8/2018.
Obs.: Os vídeos, abaixo,
ilustram o texto, acima.
1 - Nazaré - Câncer na Família e agrotóxicos
em Unaí: 20ª Romaria das Águas e da Terra/MG. 20/7/2017.
2 - Padre Piggi mostra grilagem de terras na
região da Izidora, em Belo Horizonte, MG. 10/07/2015.
3 - Klemens, prof. Dr./IGC/UFMG, critica a
especulação imobiliária e defende a luta das ocupações.
[1]
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG;
licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas;
assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais
Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
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