Sabedoria: “Os justos vivem para sempre”
Por Gilvander Luís
Moreira[1]
No livro da Sabedoria, em Sab 3,1-12, pela primeira
vez na Bíblia, surge a ideia de imortalidade de forma assertiva e categórica e
não como apenas expressando um desejo de que o justo fosse salvo para sempre –
como nos outros livros sapienciais bíblicos. Mas o pensamento semítico e judaico,
desde séculos, buscava caminhos de transformar esse desejo em uma certeza de fé. A filosofia grega forneceu ao autor do
livro de Sabedoria conceitos que
expressassem de forma mais exata o desejo do justo: os conceitos de
imortalidade (athanasia) e
incorruptibilidade (aphtarsía), que
não existiam na língua hebraica. Escrevendo em grego, mas com cabeça hebraica,
o autor do livro da Sabedoria usou os termos da filosofia helênica para se
expressar mais exatamente.
Certamente houve influência da filosofia grega,
disseminada pela cultura helenista durante o período de glória do imperialismo
grego que, através de guerras e invasões anexou muitos territórios de outros
povos. Mais do que apenas defender a vida pós-morte, o sábio autor do Livro da Sabedoria enfatiza um tipo de
fé revolucionária que carrega a seguinte convicção: os justos viverão para
sempre e os injustos serão aniquilados. Em consonância com a defesa do estilo de
vida das pessoas justas, em Sabedoria 3,8 se afirma outra utopia
revolucionária: “Os justos governarão as
nações, (...) e Deus reinará para sempre sobre eles”. Esse tipo de fé é
imprescindível para sustentar a caminhada e luta de quem se dedica a viver na
contramão do sistema opressor, no nosso caso, o sistema do capital, pois mostra
que vale a pena ser pessoa justa e dedicar-se à construção de uma sociedade
justa, solidária, ecumênica e sustentável ecologicamente, o que passa
necessariamente pela superação do capitalismo, máquina de moer vidas humanas e
vidas de todos os seres vivos.
Isso é verdadeiro, libertador e, certamente, não
exclui a fé e a esperança na imortalidade pessoal de cada justo, que se
expressa em muitos Salmos e no próprio Livro de Jó: “Eu sei que o meu Redentor está vivo e que no fim se levantará acima do
pó. (...) Eu mesmo o verei e não outro; eu o verei com meus próprios olhos” (Jó
19,25.27). A fé em Deus, que nos ama e nos quer dar a imortalidade, é uma
aposta que vale a pena ser feita! Apoia-se na convicção de que Deus é justo, e
“criou a pessoa humana para ser
incorruptível e a fez à imagem da sua própria natureza.” (Sab 2,23).
Em Sab 3,13-4,6, o autor da Sabedoria dessacraliza
a concepção judaica segundo a qual a reprodução da família judaica se dava
através da produção de filhos, por meio dos quais continuaria a herança dos
pais. Em ambiente de intensa idolatria e exploração da dignidade humana, o sábio
alerta que é melhor ser estéril do que gerar filhos opressores, adeptos da
ideologia dominante. Casar com filho de família opressora pode corroer a fina
flor da experiência de fraternidade do povo. É o que atesta Sab 3,13. Em Sab
4,1 o sábio autor aponta a alternativa sensata a não ter filhos: “É melhor não ter filhos e possuir a virtude,
porque a memória da virtude é imortal...” (Sab 4,1). Aqui o livro da
Sabedoria faz uma “revolução copernicana”: não mais o simples reproduzir a
prole para se ter futuro, mas cultivar virtude, ou seja, ser pessoa justa
segundo um conhecimento que liberta - o que não é, logicamente, a ideologia
dominante, mas são saberes que envolvem as pessoas na luta pelo bem comum sem
discriminar ninguém e nada.
“As pessoas
injustas se tornarão para sempre cadáveres desonrados e objetos de zombaria
entre os mortos (...) e a memória delas desaparecerá” (Sab 4,19). Ao
contrário, as pessoas justas, mesmo que tenham vida curta, “quando morrem, condenam os injustos que
continuam a viver” (Sab 4,16). Assim acontece com todos os/as oprimidos/as
da história: fazem história e permanecem na história os que são justos e
militam na defesa da justiça, no sentido da construção do bem comum para todos
sem nenhuma discriminação ou privilégio. “Os
justos vivem para sempre” (Sab 5,15), assevera o sábio autor da Sabedoria.
Possuído pela ira divina, o sábio antevê que nas contradições assumidas pelos
injustos e opressores “eles serão
devastados e a própria maldade deles derrubará o trono deles” (Sab 5,23),
pois o projeto dos opressores é um projeto de morte, assassino e suicida.
Em Sab 6,1-11 o sábio autor aponta que os
governantes devem governar com justiça, que é: defender os empobrecidos e
injustiçados diante daqueles que os exploram. A responsabilidade das
autoridades é muito grande, pois das decisões delas depende a vida do povo.
Todos serão julgados proporcionalmente, de acordo com a repercussão social das
suas ações. As autoridades terão julgamento divino implacável (Sab 6,5), pois
das decisões delas dependem a vida e a liberdade do povo. O Deus de Sabedoria
não é neutro, pelo contrário, coloca-se explicitamente ao lado dos
injustiçados: “Os pequenos serão
perdoados com misericórdia, mas os poderosos serão examinados com rigor” (Sab
6,6.8).
O autor demonstra que a Sabedoria não é acessível
apenas aos ricos e estudados, mas ela é democrática e acessível a todos, pois
nascemos e nos despedimos desse mundo de forma semelhante: nus, sem trazer e
sem levar nada (Cf. Sab 7,6). O sábio é aquele que prefere a sabedoria e não
cetros e tronos; é aquele que considera a acumulação capitalista como palha que
o vento leva e o fogo devora (Sab 7,8-9). Por essa perspectiva, em uma
linguagem atualizada, podemos afirmar que a pessoa sábia não se deixa conduzir
pelas seduções da sociedade capitalista, não dedica a vida a acumular riqueza e
gozar poder, mas vive e convive de forma simples e austera, sendo assim
coerente com o projeto do Deus da vida que quer vida e liberdade em abundância
para todos/as e tudo.
O autor do Livro
da Sabedoria compreende que o “senso comum” disseminado pelos injustos
domina a consciência da maioria das pessoas. Em uma linguagem atual, podemos
dizer que a ideologia dominante e hegemônica tem muito poder, conforme nos
ensina István Mészáros, falecido dia 02 de outubro de 2017: “A ideologia dominante tem uma capacidade
muito maior de estipular aquilo que pode ser considerado como critério legítimo
de avaliação do conflito, na medida em que controla efetivamente as
instituições culturais e políticas da sociedade.”[2]
Enfim, o sentido da vida está em ser pessoa justa
e, por isso, comprometida com as lutas libertárias dos povos injustiçados. Os
injustos como palha no fogo desaparecerão da história. Feliz quem não se deixa
seduzir pelo canto da sereia do sistema do capital que reduz tudo a mercadoria
e aniquila o humano que clama para ser cultivado em nós.
Referências Bibliográficas
MÉSZÁROS,
István. O Poder da Ideologia. São
Paulo: Ensaio, 1996.
Belo Horizonte, MG, 22/5/2018.
Obs.: Os vídeos, abaixo,
ilustram o texto, acima.
1) Palavra Ética na TVC/BH com Tio Maurício (Maurício Alves
Pereira), servidor dos pobres da rua. 05/12/2012.
2) Fila do Povo da Ocupação Eliana Silva, na ALEMG, em Belo
Horizonte: Mães e Crianças clamam por moradia. 06/09/2012.
3) Fila do Povo da Ocupação Eliana Silva na ALEMG, em Belo
Horizonte: Palavras de fogo. Quem ouvirá? 06/09/2012.
[1] Frei
e padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR;
bacharel em Teologia pelo ITESP/SP;
mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália;
doutor em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações
Urbanas.
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