Na
Bíblia, Sabedoria é Teologia Política
Por Gilvander Moreira[1]
“Amem a Justiça, vocês
que governam a terra!” (Sabedoria 1,1a)
Em
2018, todas as pessoas e comunidades cristãs são convidadas a refletir e
inspirar a caminhada, especialmente no mês de setembro – mês da Bíblia -, sobre
o livro da Sabedoria. O Livro da
Sabedoria é uma espécie de Chave de Ouro, que encerra a 1ª Aliança e nos
convida para abraçarmos a novidade da 2ª Aliança. O livro da Sabedoria nos
mostra que governo sábio e justo é o que promove o bem comum (Sabedoria
1,1-7.14)
Na
Bíblia, entre o livro de Cântico dos Cânticos e Eclesiástico estão os 19
capítulos do Livro da Sabedoria. Escrito originalmente em grego, o Livro da
Sabedoria é um dos livros deuterocanônicos, o último do Primeiro Testamento a
ser escrito, por volta do ano 40 antes da Era Comum (A. C.). O Livro da
Sabedoria poderia ser chamado Livro da Justiça[2].
O autor escreve o termo Sabedoria, mas está pensando no termo Justiça. Atento à
ênfase que se dá à sabedoria enquanto prática da justiça, como bem comum para
todos, sem discriminar ninguém, o biblista Ivo Storniolo coloca como subtítulo
do livro Como ler o Livro da Sabedoria,
o seguinte: A Sabedoria de Israel é o
Senso da Justiça[3].
Nos
cinco primeiros capítulos, o Livro da Sabedoria tece comparação entre a vida
das pessoas justas e das injustas durante a vida terrena e após a morte. No
Livro da Sabedoria, nos capítulos 6 a 9, há reflexão sobre a origem e a
natureza da sabedoria e o caminho para adquiri-la. A autoria atribuída a Salomão
(Cf. Sabedoria 9,7-8.12) é um artifício literário que busca dar credibilidade
ao livro. Na verdade, o/a autor/a deve ter sido uma pessoa judaica com fé no
“Deus dos Pais” (Cf. Sabedoria 9,1), que, com consciência histórica libertadora,
enfatizava a beleza de se cultivar a memória da libertação do Egito, das garras
do imperialismo dos faraós, mas profundamente influenciado pela cultura
helenista. Sem ser filósofo ou teólogo, mas sábio/a, é possível que o/a autor/a
tenha vivido na grande cidade de Alexandria, no Egito. Essa cidade se tornou
“capital do helenismo” sob o governo dos Ptolomeus, mas, com cerca de 200 mil
judeus, a cidade acolheu milhares de pessoas judaicas em diáspora forçada.
Em
Sabedoria 1,1-15, primeira perícope de abertura do Livro da Sabedoria, são
tecidas reflexões no sentido de demonstrar que o cume da sabedoria é a vivência
e prática da justiça; não é apenas fazer solidariedade ou demonstrar amor
ingênuo ao próximo. Afirma também que só pode ser sabedoria uma justiça que
gera bem comum para todos. Segundo o biblista Luis Afonso Schokel, o livro da
Sabedoria é um tratado de teologia política. Tal conclusão deriva, entre vários
motivos, do fato de iniciar-se o livro com uma exortação a quem tem a missão de
governar, diríamos hoje, os chefes do Estado – poderes Judiciário, Executivo e
Legislativo: “Amem a justiça, vocês que governam a terra...” (Sabedoria 1,1a).
De saída, critica os legalistas e os que friamente e farisaicamente aplicam as
leis como se pudessem ser neutros. “Se você é neutro em situações de injustiça,
você escolhe o lado do opressor”, profetiza o bispo Desmond Tutu. Sem amor aos
injustiçados e oprimidos e sem compromisso com a luta pelos seus direitos, o
exercício do poder de julgar se torna fonte de opressão e de exploração.
“O espírito santo, que educa, foge da fraude, afasta-se dos pensamentos
insensatos, e é expulso quando sobrevém a injustiça” (Sabedoria 1,5). Onde
acontece fraude – opressão e corrupção -, portanto, afugenta-se um espírito
vivificador, pois um espírito diabólico, que desune e cria intriga, se
instaura. Onde domina a injustiça, um espírito destrutivo domina e escorraça um espírito construtivo.
“Haverá investigação sobre os projetos do
injusto, e o rumor das palavras dele chegará até o Senhor, e seus crimes
ficarão
comprovados” (Sabedoria 1,9). O/a sábio/a, autor/a do
Livro da Sabedoria anima a esperança do povo injustiçado ao afirmar que os
injustos não ficarão impunes; os crimes dos injustos serão investigados e
comprovados. Nenhuma luta por justiça é em vão. Essa esperança se constrói na
luta comunitária, ao tornar presentes as lutas libertárias do passado,
cultivando a fé e os feitos “dos nossos pais” (Sabedoria 9,1).
“Deus não fez a morte, nem se alegra com a
perdição dos seres vivos. Ele criou tudo para a existência, e as criaturas do
mundo são sadias” (Sabedoria 1,13-14a). O/a sábio/a autor/a
não apenas alimenta a fé em Deus, como se houvesse um Deus abstrato, mas anima
a fé em um Deus que quer “vida em abundância” (João 10,10), não apenas para os seres
humanos, mas para todos os seres vivos. Esse Deus pula de alegria com a vida de
todos os seres vivos, não quer a morte de nenhum deles. “As criaturas do mundo
são sadias” – diz o/a autor/a (Sabedoria 1,14a). Ou ainda: “Deus
criou o ser humano para ser incorruptível e o fez à imagem da sua própria
natureza” (Sabedoria 1,23). Eis os sinais de que Sabedoria faz
reminiscência – e reafirma – o que está em Gênesis 1: a constatação, em forma
poética, de um refrão seis vezes repetido: que todas as criaturas são boas,
lindas, uma beleza! “E Deus viu que era bom.” (Gênesis 1,4. 10.18.21.25) No
final, ao concluir a obra, nas ondas da evolução: “Deus viu tudo (...) e tudo
era muito bom!” (Gênesis 1,31). Todos os seres vivos são puros, são sagrados.
Essa mística criacional, o Livro da Sabedoria acolhe do Gênesis, reafirma e
dissemina. O mesmo é reafirmado na linguagem do livro de Atos dos Apóstolos;
podemos dizer: não há nada impuro no que Deus criou. (Cf. Atos dos Apóstolos
10,15).
A
maior sabedoria é praticar a justiça que só pode ser justiça verdadeira, se
gerar bem comum para todos. Todo saber que maquina e engendra exploração do
outro não é sabedoria, é injustiça. O livro da Sabedoria é um libelo contra os
injustos e exploradores que vivem no luxo, com vida cômoda, esnobando riqueza e
privilégios e, na prática, cuspindo no rosto dos empobrecidos.
Enfim,
o Livro da Sabedoria é uma espécie de teologia política, que aponta para a
prática da justiça como a chave da sabedoria, de forma que todas/os as/os
filhas e filhos de Deus e da mãe terra sejam respeitados/as em sua dignidade e em
seus direitos, e tenham vida em abundância. Só pode ser sabedoria uma justiça
que gera bem comum para todos os seres vivos. Justiça de fariseu ou de doutor
da lei, ou justiça tardia não é justiça.
Referências Bibliográficas
LINDEZ,
José Vilchez. Sabedoria. Grande
Comentário Bíblico. São Paulo: Paulus, 1995.
STORNIOLO,
Ivo. Como ler o Livro da Sabedoria –
A Sabedoria de Israel é o Senso da Justiça. 4ª edição. São Paulo: Paulus, 2008.
Belo
Horizonte, MG, 08/5/2018.
Obs.: Os vídeos, abaixo,
ilustram o texto, acima.
1) Ocupação-Comunidade Nelson Mandela, no
Bairro Liberdade II, em Contagem, MG – 1ª Parte – 06/1/2018.
2) MC Emily Roots e Poeta Mari Mari - 4a
Parte - Luta, resistência e fé na vida. Belo Horizonte, MG - 05/8/2017.
3) Livro "A Sabedoria do Povo
Aranã", de Vera Lúcia Araújo. Povo indígena Aranã ressurgido, em Minas
Gerais. 10/12/16.
4) Luciana, 11 anos, que sabedoria é essa?
Na Ocupação Paulo Freire, do MLB, em Belo Horizonte, MG. 31/05/15.
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela
FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia
pelo ITESP/SP; mestre em Exegese
Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; assessor da CPT,
CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e
Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
www.twitter.com/gilvanderluis –
Facebook: Gilvander Moreira III
Nenhum comentário:
Postar um comentário