quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Concentrar terra para crescer o capital e a violência

Concentrar terra para crescer o capital e a violência
Por frei Gilvander Moreira[1]


Segundo o Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR), do INCRA, de 2012, as propriedades rurais, com áreas com menos de 10 hectares, são 34,1% do total e ocupam somente 1,5% da área total do Brasil, com média de 4,7 hectares, enquanto os imóveis com mais 100.000 hectares (apenas 225 propriedades, menos de 1%) ocupam 13,4% da área total, com média de 361.426,60 hectares. Trata-se de uma das maiores injustiças agrárias do mundo essa estrutura fundiária pautada no latifúndio. A Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a Via Campesina têm feito campanhas para inserir na legislação fundiária brasileira um limite para o tamanho da propriedade fundiária, mas “o céu continua sendo o limite” para isso no Brasil enquanto que em muitos países algo já foi estabelecido limites no arcabouço legal, como por exemplo, em países do Oriente Médio. “Há no Oriente Médio países que estabeleceram limites ao tamanho mínimo e máximo da propriedade individual da terra, como por exemplo, o Iraque, onde a área mínima é de 0,9 hectare, nas áreas irrigáveis, e de 23,4 hectares nas áreas de sequeiro, sendo que a área máxima é de 250 hectares nas áreas irrigadas e 500 hectares nas de sequeiro; a Jordânia, que regulou a área mínima em 3 hectares, e a máxima em 30 hectares. Na Síria, a área mínima possui 8 hectares, nas terras irrigadas, e 30 hectares nas terras secas, e a área máxima é de 80 hectares nas terras irrigadas, e 300 hectares nas terras secas. No Egito, foi estabelecido como área mínima 2 hectares, e como área máxima 40 hectares. A Tunísia, por sua vez, definiu como área mínima 4 hectares” (OLIVEIRA, 2007, p. 88).
Ainda, segundo o SNCR, os proprietários com imóveis com menos de 100 hectares (84,6%) ocupam 16,2% da área total de propriedades, enquanto, os com mais de 1.000 hectares (2%) detêm 52,3% da área total. Os imóveis com posse com menos de 100 hectares (90,0%) ocupam 21,6% da área total de posse, enquanto os com mais de 1.000 hectares (1,1%) têm em poder 53,4% da área total. O censo agropecuário de 2006 apontou que dos 5,17 milhões de propriedades rurais existentes, 84,4% (4,36 milhões) eram da agricultura camponesa. Este contingente de produtores ocupava uma área de 80,25 milhões de hectares, que representava 24,3% da área ocupada pelas propriedades agropecuárias. Por conseguinte, as grandes propriedades – latifúndios -, apesar de representarem somente 15,6% das propriedades, ocupavam, em 2006, 75,7% da área. A agricultura camponesa ocupava, em 2006, somente 25%, enquanto a patronal, 75% da área total das propriedades rurais, confirmando que o predomínio fundiário da economia patronal contrasta com o predomínio demográfico da camponesa. Apesar da defasagem temporal dos dados do Censo Agropecuário de 2006, esse quadro fundiário rural é atual e está se concentrando. Provavelmente o Censo agropecuário de 2016 apontará maior concentração de propriedades, o que acentuará a necessidade de reforço na luta pela terra.
De acordo com o IBGE, a concentração da propriedade privada fundiária no Brasil vem aumentando década após década. As propriedades rurais de menos de 10 hectares ocupam menos de 2,7% da área total ocupada por elas, enquanto a área ocupada pelas propriedades acima de 1000 hectares concentra mais de 43% da área total (Dados do Censo Agropecuário 2006). Isso coloca o Brasil como um dos países com maior concentração fundiária do mundo. De 2010 a 2014, no governo da presidenta Dilma Rousseff, houve um aumento da ordem de 2,5% na concentração de terras das grandes propriedades, “totalizando 66,7%, ou, mais 97,9 milhões de hectares para as grandes propriedades” (OLIVEIRA, 2015, p. 33). A “banda podre dos funcionários do cadastro do INCRA” foi cúmplice de parte dessa concentração fundiária, o que foi confirmado pela Operação Terra Prometida da Polícia Federal realizada no final de 2014 (Cf. OLIVEIRA, 2015, p. 32-32). Assim, mais seis milhões de hectares passaram para as mãos de grandes proprietários, quase três vezes o território do estado de Sergipe. O estoque das terras públicas aumentou muito no Cadastro do INCRA de 2014, pois “somavam 68 milhões de hectares em 2003, e, em 2010 chegaram a 80 milhões de hectares. Porém, em 2014, totalizaram 159,2 milhões de hectares, ou seja, praticamente o dobro de 2010” (OLIVEIRA, 2015, p. 33). Segundo o SNCR, as grandes propriedades privadas saltaram de 238 milhões para 244 milhões de hectares (Dados do Cadastro do INCRA). Há 130 mil grandes imóveis rurais que concentram 47,23% de toda a área cadastrada no INCRA. Para se ter uma ideia do que esse número representa, os 3,75 milhões de minifúndios (propriedades mínimas de terra) equivalem, somados, a quase um quinto disso: 10,2% da área total registrada. O Atlas da Terra Brasil 2015, feito pelo CNPq/USP, mostra que 175,9 milhões de hectares são improdutivos no Brasil. Segundo Ariovaldo Umbelino de Oliveira, um dos principais pesquisadores da questão agrária no Brasil, em 2010, das grandes propriedades privadas e públicas (130,5 mil), 66 mil imóveis foram considerados improdutivos, não atendendo aos critérios de função social da propriedade da terra. Eles somam 175,9 milhões dos 318 milhões de hectares. Os minifúndios caíram de 8,2% para 7,8% da área total de imóveis; as pequenas propriedades, de 15,6% para 14,7%; e as médias, de 20% para 17,9%. As grandes propriedades privadas e públicas foram de 56,1% para 59,6% da área total.[2] O estado de Minas Gerais segue a regra nacional, com alta concentração fundiária. Os dados acima demonstram que “a propriedade latifundista da terra se propõe como sólida base de uma orientação social e política que freia, firmemente, as possibilidades de transformação social profunda e de democratização do País” (MARTINS, 1999, p. 12).
Segundo dados do INCRA, baseados em declarações dos proprietários, existem no Brasil 54.761 imóveis rurais classificados como grandes propriedades improdutivas, portanto desapropriáveis, que somam nada menos que 120 milhões de hectares - uma Europa em espaços vazios! Segundo Estatísticas Cadastrais do INCRA, dados de 2014, o estado de Minas Gerais possui área de terras potencialmente públicas devolutas 13.398.101 hectares  (22,8%), quase todas elas griladas por fazendeiros, grandes empresas ‘reflorestadoras’ - na verdade, eucaliptadoras. “Entre 1967/1978, os latifúndios no Brasil ampliaram sua área em 69,9 milhões de hectares. Foi o período da denominada modernização da agricultura da ditadura militar de 1964, que trouxe consigo o crescimento da concentração fundiária nas grandes propriedades latifundistas (OLIVEIRA, 2015, p. 30).
A ditadura militar-civil-empresarial de 1964 fomentou também a repressão e o assassinato de lideranças camponesas, conforme um integrante da Comissão Nacional da Verdade (CNV). “A ditadura “terceirizou” mortes e desaparecimentos forçados de pelo menos 1.196 camponeses e apoiadores com financiamento do latifúndio. O Estado se omitiu, acobertou e terceirizou a repressão política e social no campo, executada por jagunços, pistoleiros, capangas e capatazes a serviço de alguns fazendeiros, madeireiros, empresas rurais, grileiros e senhores de engenhos, castanhais e seringais” (GILNEY VIANA, ex-coordenador do Projeto Memória e Verdade da Secretaria de Direitos Humanos (SDH) da Presidência da República).[3]
“Com governos petistas – dois mandatos de Lula e um de Dilma – se esperava avanço na reforma agrária, mas as Estatísticas de 2010 [...] mostravam que entre 2003/2010, o número dos imóveis rurais chegava a 5,1 milhões, enquanto que a área total a 568,2 milhões de hectares. Já as grandes propriedades de particulares haviam aumentado absurdamente sua área em 92,1 milhões de hectares, ou seja, passaram de 146,8 milhões de hectares em 2003 para 238,9 milhões de hectares em 2010” (OLIVEIRA, 2015, p. 32). Assim, “no Brasil a concentração da propriedade privada da terra atua como processo de concentração da riqueza e, portanto, do capital” (OLIVEIRA, 2010, p. 287) e gera males paradoxais[4]: violências agrária, urbana, ambiental, geracional etc.

Referências.
MARTINS, José de Souza. O poder do atraso: ensaios de Sociologia da História Lenta. 2ª edição. São Paulo: HUCITEC, 1999.
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Camponeses, indígenas e quilombolas em luta no campo: a barbárie aumenta. In: Conflitos no Campo Brasil 2015. Goiânia: CPT Nacional, p. 28-42, 2015.
______. A questão agrária no Brasil: não reforma e contrarreforma agrária no governo Lula. In: Vv.Aa. Os anos Lula: contribuições para um balanço crítico 2003-2010. Rio de janeiro: Garamond, p. 287-328, 2010.
_____. Modo de Produção Capitalista, Agricultura e Reforma Agrária. São Paulo: Labur Edições, 2007. Disponível em http://www.geografia.fflch.usp.br/graduacao/apoio/Apoio/Apoio_Valeria/Pdf/Livro_ari.pdf .

Belo Horizonte, MG, 21 de novembro de 2017.

Obs.: Vídeo no link, abaixo, ilustra o texto acima:






[1] Padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutor em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, CEBs, SAB e Ocupações Urbanas; professor de “Direitos Humanos e Movimentos Populares” em curso de pós-graduação do IDH, em Belo Horizonte, MG. e-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.freigilvander.blogspot.com.br -  www.gilvander.org.br  – www.twitter.com/gilvanderluis  – Facebook: Gilvander Moreira III

[3] Jornal A Verdade, dez./jan./2017, n. 190, ano 17, p. 5.
[4] Cf. PROUDHON, Pierre Joseph. O que é a propriedade? Lisboa: Editorial Estampa, 1975. E ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

Nenhum comentário:

Postar um comentário