terça-feira, 26 de abril de 2022

Governo de MG esteriliza e amordaça Consulta Prévia, Live e Informada dos Povos Tradicionais. Por Frei Gilvander

Governo de MG esteriliza e amordaça Consulta Prévia, Live e Informada dos Povos Tradicionais. Por Frei Gilvander Moreira[1]


Dia 20 de abril último (2022), participamos de Audiência Pública da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), ocasião em que todas as Entidades e Organizações de Direitos Humanos e Povos e Comunidades Tradicionais repudiaram com veemência e exigiram a revogação e a anulação da Resolução da SEMAD[2]/SEDESE[3], do Governo de Minas Gerais, publicada dia 05 de abril de 2022, no Diário Oficial do estado, porque é inconstitucional, esteriliza, amordaça e mata a Consulta Prévia, Livre e Informada (CPLI) dos Povos e Comunidades Tradicionais no estado de Minas Gerais. Viola brutalmente todos os direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais. A injusta Resolução fere princípios básicos de participação e da própria Convenção 169 da OIT[4] da ONU[5], que faz parte do ordenamento jurídico do país, desde 2004. A Convenção 169 da OIT “tem por objetivo ser um instrumento de proteção e salvaguarda dos direitos de Povos e Comunidades Tradicionais, garantindo-lhes, entre outros, o direito à autoatribuição/autodeclaração, o direito à consulta e de participação da tomada de decisões que possam trazer impactos ao seu modo de vida”. A famigerada Resolução faz uma inversão: os Povos e Comunidades Tradicionais são tratados como SOBREPOSTOS às áreas dos projetos. Defende a ideia de que injustiça é os Povos e Comunidades Tradicionais estarem em áreas de interesse da gula sem fim do grande capital. A ilegal Resolução restringe muito o número de comunidades diretamente afetadas, que serão consultadas sob mordaça. Diz que só serão consultadas Comunidades certificadas após Certidão de Autorreconhecimento como Comunidade Tradicional emitida pela CEPCT-MG[6], FUNAI[7] e Fundação Palmares. Sabemos que pouquíssimas Comunidades são certificadas e já há um bom tempo a CEPCT-MG não emite mais certidão. O CEDEFES[8] já inventariou mais de 1.000 Comunidades Quilombolas em Minas Gerais e há milhares de outras Comunidades Tradicionais em processo de autorreconhecimento e/ou em fase de solicitação de certificado. No mais, a autoatribuição em si, já seria suficiente, segundo a Convenção 169 da OIT, garantindo a autonomia emancipatória dos Povos e Comunidades Tradicionais. Por isto, restringir a CPLI às comunidades já certificadas é grave infração por parte da Resolução da SEMAD e SEDESE, que joga para a invisibilidade as comunidades que não se apresentaram oficialmente para as instituições públicas e/ou optaram por não se apresentar ainda, mas que tem seus iguais direitos garantidos e constituídos.

Conforme bem apontado pelas representantes da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais (DPE/MG), Dra. Ana Cláudia Alexandre, e do CEDEFES, Dra. Alenice Baeta, durante a Audiência Pública conduzida pelas Deputadas Estaduais Andreia de Jesus e Beatriz Cerqueira, esta Resolução é nitidamente um ato de retrocesso, o que não é admitido pelas cortes internacionais e por todo o corolário de normas internacionais no âmbito dos Direitos Humanos. A “Proibição do Não-Retrocesso” é instituto fulcral e deve ser severamente respeitado, pois configura-se claro interesse por parte do estado de Minas Gerais em reestabelecer o “Regime de Tutela”, já superado por meio das conquistas emancipatórias e de autonomia, sobretudo, no âmbito da alteridade sociocultural e histórica, respeitando de forma incondicional as especificidades culturais e territoriais de cada Povo e Comunidade Tradicional. Tal resolução revela, todavia, por parte do estado de Minas Gerais o seu arraigado Racismo Socioambiental e a Discriminação institucional para com os Povos e Comunidades Tradicionais e desrespeito total aos seus direitos constituídos.

Esta inconstitucional Resolução prevê que, não havendo consenso na Consulta aos Povos e Comunidades Tradicionais, a decisão final será da SEMAD, mesmo que os Povos e Comunidades consultados neguem a aprovação do empreendimento. Isto é, portanto, tentativa insana e irresponsável de retomar a tutela dos Povos Tradicionais, o que é inadmissível! Se a SEMAD com a Câmera de Atividades Minerárias (CMI) do COPAM[9] tem aprovado todos os grandes projetos das grandes mineradoras, é óbvio que é injusto, inconstitucional e violação ao que está prescrito na Convenção 169, deixar a SEMAD decidir. Isto significa, na prática, atropelar e violentar os direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais, pois, injustamente, a SEMAD tem atuado de forma subserviente aos interesses das grandes empresas.

É imoral, injusto e inconstitucional, conforme definido na Resolução, atribuir ao responsável pela CLPI - entre eles as empresas com seus grandes interesses capitalistas – o poder de definir quem são os Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs) afetados, qual é a área diretamente afetada (ADA), ditar prazos, estabelecer a metodologia, o plano e conduzir todo o processo regido pela boa-fé das partes envolvidas. Inadmissível isso tudo.

Esta Resolução é injusta também porque impõe prazos que violam o caráter livre e informado da consulta, como por exemplo, o prazo de 45 dias corridos para a elaboração de Protocolos de Consultas e 120 dias para a conclusão da consulta. Isso é desrespeito ao tempo das Comunidades Tradicionais. Para ser Livre a Consulta, quem deve determinar o tempo são as Comunidades Tradicionais; não pode ser uma Consulta acelerada, no ritmo dos interesses do grande capital. Outro absurdo desta Resolução: apregoa que as empresas poderão contratar empresas consultoras para elaborar a Consulta Prévia, Livre e Informada. Isso é o mesmo que colocar raposa para arrumar o galinheiro. Esta injusta Resolução foi publicada após o Ministério Público expedir Recomendação para suspender as Audiências Públicas do Projeto do Bloco 8 da Mineradora SAM, em Grão Mogol e Fruta de Leite, no norte de MG. São ilegais e inconstitucionais os EIA-RIMA[10] da mineração da SAM no norte de MG, sem antes fazer a Consulta Prévia, Livre e Informada. Da mesma forma, o edital de licitação do Rodoanel, rodominério, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Absurdo dos absurdos o Governo de MG continuar insistindo em fazer a licitação do Rodoanel, obra faraônica, autoritária, eleitoreira, hidrocida, ecocida, dragão do Apocalipse, estrada da morte que levará Belo Horizonte e RMBH da grave crise hídrica ao colapso hídrico. Tudo isso sem fazer a Consulta Prévia, Livre e Informada a mais de dez Comunidades Quilombolas e dezenas de outras Comunidades Tradicionais que estão no trajeto do Rodoanel. É injusto e inconstitucional facultar às empresas determinarem qual é a “área diretamente afetada” e restringir a Consulta Livre, Prévia e Informada a esta eventual “área diretamente afetada”. Os efeitos socioambientais dos grandes empreendimentos ocorrem de forma sistêmica e contínua para além do perímetro deliberado e interessadamente compreendido como “área diretamente afetada”.

Esta Resolução é semelhante às resoluções bolsonaristas do desgoverno Federal que tem o objetivo de desmontar todos os instrumentos legais de proteção dos direitos humanos, sociais e ambientais, conquistados com muita luta. Esta covarde Resolução vai contra a legislação, somos contra ela; é um retrocesso às conquistas dos Povos e Comunidades Tradicionais. O Governo de MG, Romeu Zema, está facilitando a todo custo o licenciamento com esta Resolução e com Audiências Públicas ilegais que são farsas públicas. Reiteramos nosso posicionamento: somos contrários a esta resolução violentadora de direitos. Exigimos que esta Resolução seja Cancelada, anulada e jogada na lata de lixo da história.

A Comissão Pastoral da Terra (CPT) e outras mais de 100 Comunidades Tradicionais, organizações da sociedade civil, Movimentos Sociais Populares publicaram Nota denunciando que o Governo de MG, ao expedir a Resolução conjunta da SEMAD/SEDESE, está violando a Convenção 169 da OIT/ONU e entidades exigem revogação/anulação imediata desta resolução. Esta Resolução é mais uma manobra do Governo Zema, a serviço dos grandes empreendimentos, das mineradoras e empresas do setor de energia, grandes empresas da idolatria do mercado, para criar uma aparência de diálogo. A verdade é que ela é violenta e retira os direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais.

Precisamos dizer o óbvio aqui: à SEDESE compete fortalecer e ampliar instrumentos de democracia direta e participativa; além de promover ações afirmativas e de enfrentamento à discriminação racial contra a população negra, povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. No entanto, injustamente, ao se posicionar como coautora desta inconstitucional Resolução, a SEDESE está traindo sua missão. Como pode a SEDESE e a SEMAD fazerem uma Resolução à revelia da Comissão de Povos e Tradicionais do Governo de MG?

Diante das mudanças climáticas causadas pela imensa devastação ambiental que os capitalistas vêm causando via agronegócio, monoculturas, desmatamentos, garimpo etc., é absurdo dos absurdos uma Resolução fajuta, ilegal, inconstitucional como esta da SEMAD/SEDESE e todas as resoluções, portarias e decretos seja do desgoverno federal bolsonarista ou do desgoverno Zema, que visam apenas “passar a boiada”, acelerando a implantação de grandes projetos do grande capital que têm sido brutalmente devastadores socioambientalmente. Esta resolução põe um manto de legalidade para pavimentar violação brutal dos direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais.

Mais que claro que o tal “Diálogo Social” usado como diretriz do atual governo ZEMA e suas Secretarias parece que não se aplica mesmo aos Povos e Comunidades Tradicionais, mas sim aos interesses do capital, dos empreendimentos econômicos que geram somente a degradação socioambiental de territórios e a pobreza do nosso povo. Perguntamos: o que teria motivado a elaboração desta Resolução esdrúxula? Queremos explicações e transparência sobre este processo absurdo e cobramos firmes posicionamentos por parte do Ministério Público e da Defensoria Pública em nível estadual e federal a respeito.

Basta de devastação socioambiental! Exigimos respeito aos direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais. Que o Ministério Público e o Judiciário anulem esta brutal Resolução. Viva os Povos e Comunidades Tradicionais e Fora todos que insistem em passar o trator em cima dos Povos e Comunidades Tradicionais!

Referências.

http://www.cptmg.org.br/portal/nota-tecnica-da-aba-sobre-a-resolucao-conjunta-sedese-semad-no-01-de-04-04-2022/

http://www.cptmg.org.br/portal/governo-de-mg-viola-convencao-169-da-oit-e-entidades-exigem-revogacao-imediata-da-medida/

 

26/4/2022

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Frei Gilvander: Resolução do Governo de MG violenta direitos dos Povos Tradicionais a Consulta CPLI

2 - “É necessário Resolução do Governo de MG sobre a Consulta aos Povos Tradicionais?” (Dep. Andreia)

3 - Geraizeiros exigem anulação da Resolução do Governo de MG sobre Consulta Prévia Livre e Informada

4 - Prof. Matheus REPUDIA Resolução do Governo de MG sobre Consulta Prévia/Livre aos Povos Tradicionais

5 - Dra. Laiza: "Resolução da SEMAD e SEDESE é inconstitucional com vícios insanáveis. Deve ser anulada"

6 - Dra. Ana Cláudia: “Resolução do Governo de MG impõe RETROCESSO aos Direitos dos Povos Tradicionais.”

7 - Tatinha Alves, CEPCTs/MG: “Resolução é inconstitucional e facilita a entrada de mineradoras nos ...”

8 - Dra. Alenice, do CEDEFES: “Resolução do Governo de MG: retrocesso q violenta os Povos Tradicionais.”

9 - Dra. Alessandra lista série de ilegalidades da Resolução que viola direitos dos Povos Tradicionais



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Secretaria Estadual de Meio Ambiente e desenvolvimento Sustentável.

[3] Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social.

[4] Organização Internacional do Trabalho.

[5] Organização das Nações Unidas.

[6] Comissão estadual de Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais.

[7] Fundação Nacional do Índio.

[8] Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva – www.cedefes.org.br

[9] Conselho Estadual de Política Ambiental.

[10] Estudos de Impacto Ambiental e Relatório de Impactos ao Meio Ambiente.

quarta-feira, 20 de abril de 2022

“Terra, mãe que nos sustenta”. Por Frei Gilvander

 “Terra, mãe que nos sustenta”. Por Frei Gilvander Moreira[1]

Cleonice Silva Souza, camponesa Sem Terra, hoje, assentada no Assentamento Dom Luciano Mendes, em Salto da Divisa, no Baixo Jequitinhonha, MG, dia 21/9/2014, transbordando alegria, assim se expressou sobre a terra: “Essa terra aqui estava praticamente morta. Nós ressuscitamos essa terra da Manga do Gustavo, onde acampamos desde 26/8/2006. Antes, era só monocultura do capim. Hoje essa terra está produzindo muito e de acordo com a agroecologia. Já pensou se tantas terras por aí que está sem gente para plantar estivessem nas mãos dos camponeses? Sem a terra a gente não pode sobreviver. Deus deixou a terra para todos nós. Enquanto a gente vai plantando na terra e lidando com ela, a terra fica viva. Se plantar só capim, a terra morre.

A cosmovisão dos/as camponeses/as, expressa acima, decorre da experiência de quem teve a oportunidade de nascer na terra e crescer trabalhando na terra. A forma como os camponeses veem a terra é instrumento de emancipação humana, porque desconstrói a visão do capital que, ao mercantilizar a terra, retira a noção de terra como ‘mãe que nos sustenta’, como ‘criação de Deus para todos’, como ‘algo vivo’ que precisa ser respeitado e cuidado. Essa concepção camponesa afirma a individualização e nega o individualismo, conforme pontua Roberto Damatta, ao discutir individualidade e liminaridade: “Se a individualização é uma experiência universal, destinada a ser culturalmente reconhecida, marcada, enfrentada ou levada em consideração por todas as sociedades humanas, o individualismo é uma sofisticada elaboração ideológica particular ao Ocidente, mas que, não obstante, é projetada em outras sociedades e culturas como um dado universal da experiência humana” (DAMATTA, 2000, p. 9-10).

No mundo tido como moderno, o sistema do capital dissemina o individualismo, que é altamente ideológico no sentido de ofuscar os valores camponeses na sua relação com a terra. A luta pela terra, seja no campo para viver e plantar ou na cidade para morar e plantar, é luta que fortalece o resgate da visão que reconhece o indivíduo, mas em relação respeitosa com a sociedade, não recaindo no individualismo. Na sociedade capitalista há processos que buscam desistoricizar e mitizar relações sociais de mudança, mas como os poetas, os profetas, as profetizas e quem anda na contramão, os camponeses e as camponesas na luta pela terra “em um processo dialético com a sociedade, movimentam suas estruturas, partejando visões de mundo paralelas e conflitantes, desafiadoras dos valores, e nela introduzem uma consciência diferenciada da moralidade e do tempo, essas dimensões que são o pano de fundo da consciência de mudança social” (DAMATTA, 2000, p. 17).

Em uma Roda de Conversa, dia 21/9/2014, durante minha pesquisa de doutorado, perguntamos: “O que aconteceu que fez vocês darem uma guinada na orientação da vida e abraçar a luta pela terra?” Aldemir Silva Pinto, acampado no Acampamento Dom Luciano Mendes, um experiente Sem Terra saiu na frente e disse: “Pelo que sei, após o INCRA[2] fazer o laudo da fazenda Monte Cristo, aqui no município de Salto da Divisa, MG, o MST veio fazer as reuniões de base e o INCRA cadastrou muitas famílias. Ficamos alegres com a chegada do MST propondo a união nossa para ocupar fazenda improdutiva. Eu sabia que não haveria grande repressão, pois a maioria das terras aqui em Salto da Divisa, no Baixo Jequitinhonha, é sem documentos. Eu pensava: após a gente conquistar a primeira fazenda, o povo vai passar a acreditar e vai entrar para a luta”. Entrevemos aqui a noção de liminaridade ou de ‘soleira’, trabalhada por Roberto Damatta. Na luta pela terra e pela moradia acontece um rito de passagem. Passa-se de sem-terra, o camponês expropriado e oprimido, para Sem Terra, o camponês portador de uma nova identidade, um rebelde em relação às convenções sociais impostas pelo sistema do latifúndio e do capital. Passa-se de um sem-teto para um Sem Teto, com moradia, sujeito com condições objetivas de trilhar um caminho de emancipação humana. Na luta pela terra, a/o camponesa/o sem-terra resignada/o pode tornar-se pessoa altiva, alguém de cabeça erguida, sujeito a construir a história pelas mãos. Hélio Amorim, outro Sem Terra hoje assentado no Assentamento Dom Luciano Mendes, descreve o seu rito de passagem rumo a algum tipo de emancipação na narrativa: “Aqui em Salto da Divisa o que existia era coronelismo. A gente não podia nem conversar sobre nosso sofrimento. O entusiasmo do povo que estava se organizando fez criar a coragem. O ex-prefeito José Eduardo aqui de Salto da Divisa, MG, pediu ao INCRA para vir fazer vistoria na fazenda da Fundação Tinô da Cunha. O incentivo desse ex-prefeito ajudou. Jogamos fora o medo. Minha mãe tem 92 anos, mora no Salto da Divisa e sabe que essa terra onde estamos não é deles, é terra devoluta, terra grilada. Quando for medir os 19 mil hectares de terra, herança da dona Inhá Pimenta, sobre essa terra aqui, que agora ocupamos se verá que grande parte é terra grilada”.

São os pequenos gravetos secos que fazem o fogo pegar e cozinhar o feijão na panela”, dizem muitos camponeses. Assim, um incentivo de um lado, um apoio de outro, um conhecimento aqui, outro lá, etc., acabam despertando entusiasmo, que expulsa o medo e a resignação e atrai processualmente a coragem, condição imprescindível para se engajar na luta pela terra e consequentemente em um movimento emancipatório. Pode até começar com um objetivo pequeno: apenas conquistar um pedacinho de terra, mas como os gravetos fazem crescer o fogo, a luta pela terra faz crescer os objetivos e o horizonte do campesinato. Logo após as primeiras conquistas, os Sem Terra descobrem que ‘podemos mais’ e ‘temos direito a mais’.

Na Roda de Conversa, Antoniel Assis de Oliveira, militante do MST, mestre em Educação do Campo, ponderou: “O povo teve coragem, mas desde o início não foi tranquilo. Houve ameaças de morte durante muitos anos. Irmã Geraldinha teve que andar com escolta. A Cidona do MST e o Aldemir também foram ameaçados. A resistência é muito importante para estarmos onde estamos”. Enfim, por tudo isto, para os camponeses e as camponesas “a terra é mãe que nos sustenta”.

Referências.

DAMATTA, Roberto. Individualidade e liminaridade: considerações sobre os ritos de passagem e a modernidade. In: Revista MANA 6(1): 7-29, 2000.

20/4/2022.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Ocupação Irmã Dorothy, Salto da Divisa/MG: 150 famílias, Páscoa e 1 ano de luta: Mais de 100 casas

2 - Povo segue construindo suas casas na Ocupação Irmã Dorothy, do MMT, de Salto da Divisa, MG. Vídeo 2

3 - Luta pela terra incomoda o capital e o Estado - Por frei Gilvander - 18/11/2021

4 - Luta pela terra e pela moradia, com justiça agrária e urbana (Frei Gilvander no Dom Debate) – 21/7/21

5 - Dandara, 7 anos de luta emancipatória por moradia, em Belo Horizonte, MG. 09/04/2016

6 - Dandara, ocupação-comunidade, em Belo Horizonte, MG: 7 anos de emancipação da cruz do aluguel

7 - Domingo de Ramos em Santa Luzia/MG: MLB, a luta pela terra e pela moradia continua. Frei Gilvander

8 - Semeando Espiritualidades 52: Espiritualidade e luta pela terra. Por Frei Gilvander - 06/12/21



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, do Governo Federal. 

terça-feira, 12 de abril de 2022

Emancipar de que e para quê? Por Frei Gilvander

 Emancipar de que e para quê? Por Frei Gilvander Moreira[1]



Emancipação, o que é isto? Emancipação não é algo que se faça por decreto e nem de uma só vez no atacado, mas trata-se de algo que envolve a vida toda, um processo permanente que implica desvencilhar-se de todas as formas de alienação, resgatar e cultivar o que há de melhor no ser humano e na História. Nos processos emancipatórios podem ocorrer vários tipos de emancipação: a) emancipação política; b); emancipação econômica; c) emancipação ideológica; d) emancipação cultural; e) emancipação religiosa; f) emancipação humana etc. Melhor dizendo, a ‘emancipação humana’ envolve/busca envolver todas as outras emancipações. Em História da Pedagogia, Franco Cambi apresenta uma definição interessante de emancipação. Diz ele: “Emancipação é libertação, é tornar-se autônomo, é constituir-se na luta por parte do sujeito, é consciência de uma complexa dialética entre alienação e “redenção”, e é categoria que, com a ética, a política e o direito moderno, inerva também a pedagogia, a qual, teoricamente, se reconhece como guiada, sempre, por um desejo de emancipação (do sujeito, da sociedade) e, praticamente, age (ainda que de forma às vezes contraditória: até conformadora e conformista) para realizá-la” (CAMBI, 1999, p. 218).

Etimologicamente, Autonomia é ‘norma própria’ e heteronomia ‘norma de outro, de fora’. Uma pedagogia de emancipação humana passa por pedagogia da autonomia, conforme ensina Paulo Freire: “O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros” (FREIRE, 2015, p. 58). Autonomia não se delega a outro. “Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém. [...] A autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser. [...] Uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas da liberdade” (FREIRE, 2015, p. 105). Uma pessoa emancipada se gere por relações autônomas e não heterônomas. Emancipar-se exige (com)viver, (inter)agir, trabalhar e criar se guiando por ‘normas’ próprias, o que implica desvencilhar-se das normas de outro, seja especificamente o patrão que compra a força de trabalho do/a trabalhador/a pagando apenas o mínimo para que a/o trabalhador/a não morra e possa continuar servindo-lhe como mercadoria e produzindo acima de tudo mais-valia, seja obedecendo às normas e leis do modo de produção capitalista imposto pelo capital e pelos capitalistas. “O trabalhador assalariado só tem permissão de trabalhar para sua própria vida, isto é, para viver, desde que trabalhe de graça um determinado tempo para o capitalista. Por isso, também para aqueles que, juntamente com ele, consomem a mais-valia” (MARX, 2012, p. 39).

Aspectos emancipatórios acontecem quando um sem-terra torna-se um Sem Terra, um sem-casa torna-se um Sem Casa, quando descobre que terra é mais do que terra, que casa é mais que casa, que não há um destino predeterminado, mas que ele pode fazer história como sujeito e não está fadado a ser objeto e oprimido sem poder superar a opressão. Algo de emancipação acontece também quando se compreende que “a terra conquistada na luta deixa de ser apenas terra, para ser terra com pessoas buscando encontrar o melhor jeito de trabalhar e de viver nela, o que exige a preocupação com um conjunto bem maior de dimensões humanas, e com um tipo de organização que dê conta delas” (CALDART, 2012, p. 139). Algo de emancipação ocorre quando se descobre que “terra é dignidade, é participação, é cidadania, é democracia” (BALDUÍNO, 2004, p. 25). A terra e a moradia conquistadas apontam para emancipação, porém, se, após a conquista da terra, os Sem Terra recaírem no ‘agronegocinho’, a luta pela terra deixa de ser caminho e jeito de caminhar para emancipação humana. Se após a conquista da moradia acontece um processo de acomodação das pessoas aos ditames do capitalismo: individualismo e apenas luta restrita dentro dos ditames do sistema do capital, o que se conquistou corre-se o risco de se perder gradativamente. “A luta pela terra não está simplesmente em terra por terra, pois a terra é algo sagrado que é muito mais do que terra”, dizia o grande lutador Alvimar Ribeiro dos Santos, agente de pastoral da CPT/MG.

Para os capitalistas, a terra, as águas, as sementes, o ar, as matas, a justiça e o direito são recursos que devem ser explorados sem limite conforme seus interesses econômicos egoístas. Para os camponeses Sem Terra, esses elementos da natureza são dádivas e base da vida, não têm preço e jamais podem ser mercantilizados. Sobre a terra não há uma visão unívoca, pois há muitas formas de se ver a terra. O indígena vê a terra de uma forma, o camponês, de outra forma; o afrodescendente, de outra forma; o fazendeiro, de outra forma; os executivos das empresas do agronegócio veem a terra como mercadoria da qual se pode extrair commodities e, acima de tudo, ampliar a acumulação do capital.

No início da nossa pesquisa de doutorado, em uma Roda de Conversa, no Salão Comunitário do Acampamento Dom Luciano Mendes, dia 21 de setembro de 2014, em Salto da Divisa, ouvindo e dialogando com os Sem Terra da coordenação do Acampamento, fizemos várias perguntas. Incrível a sabedoria e o conhecimento emancipatório que os Sem Terra revelaram. Perguntamos: “O que significa a terra para vocês, camponeses aqui do Acampamento Dom Luciano Mendes, em Salto da Divisa?” O Sr. Raimundo dos Santos foi o primeiro a responder: “A terra é a mãe natureza que nos sustenta. É dela que vem todo o alimento de que precisamos para viver. A terra representa tudo para nós: alimentação, água. Tudo, porque inclusive após a morte vamos para debaixo da terra”. Aldemir Silva Pinto, outro Sem Terra assim se referiu à terra: “A terra foi feita por Deus para todo mundo sobreviver em cima dela, não só gente, mas todos os bichinhos. Uns acabam com a terra, enquanto outros a fazem viver. A terra também morre. Com queimadas ou agrotóxicos se mata a terra. Os poderosos tomaram conta da terra, mas Deus deixou a terra para todos. Muita gente precisa da terra para trabalhar e produzir o sustento de sua família e ajudar a alimentar o povo da cidade”. Por isso, emancipar de tudo que nos aprisiona, aliena e reduz a nossa humanidade para sermos pessoas livres e autônomas, construtoras da nossa própria história, fazendo a diferença no nosso jeito de conviver e lutar, deixando marcas históricas para que as pessoas após a nossa existência terrena possam dizer: “o mundo se tornou melhor, porque fulano/a nele viveu fazendo história”.

Referências.

BALDUÍNO, Dom Tomás. Conferência de abertura do II Simpósio Nacional de Geografia Agrária / I Simpósio Internacional de Geografia Agrária. In: OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de; MARQUES, Marta Inez Medeiros (Orgs. ). O Campo no século XXI: território de vida, de luta e de construção da justiça social. São Paulo: Casa Amarela e Paz e Terra, p. 19-25, 2004.

CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. 4ª Ed. São Paulo: Expressão Popular, 2012.

CAMBI, Franco. História da pedagogia. Tradução de Álvaro Lorencini. São Paulo: Fundação Editora da UNESP (FEU), 1999.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 51ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012.

12/4/2022.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Luta pela terra incomoda o capital e o Estado - Por frei Gilvander - 18/11/2021

2 - Luta pela terra e pela moradia, com justiça agrária e urbana (Frei Gilvander no Dom Debate) – 21/7/21

3 - Dandara, 7 anos de luta emancipatória por moradia, em Belo Horizonte, MG. 09/04/2016

4 - Dandara, ocupação-comunidade, em Belo Horizonte, MG: 7 anos de emancipação da cruz do aluguel

5 - Palavra Ética com Inês Teixeira, professora da FAE-UFMG: Educação que emancipa. 20/12/2012

6 - I Congresso Internacional de Direitos Humanos: Emancipação e ruptura. Mara de Oliveira. 02/09/2012

7 - Domingo de Ramos em Santa Luzia/MG: MLB, a luta pela terra e pela moradia continua. Frei Gilvander

8 - Semeando Espiritualidades 52: Espiritualidade e luta pela terra. Por Frei Gilvander - 06/12/21



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

terça-feira, 5 de abril de 2022

Especular com a terra e explorar trabalho alheio? Por Frei Gilvander

  Especular com a terra e explorar trabalho alheio? Por Frei Gilvander Moreira[1]


O ser humano tem vocação para se emancipar, no sentido de se transformar sempre para melhor, ou seja, libertar-se de todas as amarras que reduzem seu infinito potencial de envolvimento humano sempre na perspectiva da construção de uma sociedade justa economicamente, socialmente igualitária, politicamente democrática, ecologicamente sustentável, culturalmente plural e religiosamente (macro)ecumênica. Mas o sonho comum de transformação da sociedade tem sido obstacularizado por muitas questões. Partimos do pressuposto de que a luta pela terra e pela moradia, em defesa do território, é fator preponderante no processo de educação popular em lutas emancipatórias dos Movimentos Sociais Populares. A prática social dos Movimentos Sociais Populares que lutam pela terra e pela moradia se põe, portanto, como o ponto de partida e o ponto de chegada de uma prática pedagógica. Não é crítica uma pedagogia idealista, fora da histórica e sem ser dialética. Quem advoga a educação como detentora de um poder de transformação social por si só está sendo idealista, ‘bate em ferro frio’ e desconsidera a análise que se faz da realidade pelo método do materialismo histórico-dialético.

Enquanto saber que se tornou (e se torna) cada vez mais necessário: social, política e culturalmente, na segunda década do século XXI, a pedagogia é atualmente um universo em fermentação e ebulição. Franco Cambi já apontava isso, em 1999, ao afirmar: “A pedagogia é um saber em transformação, em crise e em crescimento, atravessado por várias tensões, por desafios novos e novas tarefas, por instâncias de radicalização, de autocrítica, de desmascaramento de algumas – ou de muitas – de suas “engrenagens” ou estruturas” (CAMBI, 1999, p. 641). Nesse contexto de transformação pedagógica afirmamos a luta pela terra e pela moradia, protagonizada pelos sujeitos Sem Terra e Sem Teto, como pedagogia de emancipação humana, isto é, como caminho e jeito de caminhar para a superação do capitalismo e construção de novas relações sociais para além da opressão do capital.

Dependendo da forma como for travada, toda luta pela terra e pela moradia, mesmo que de imediato não obtenha conquistas econômicas, pode se tornar de alguma forma pedagogia de emancipação humana, porque desperta o pensar e o agir autênticos, críticos e criativos e desperta experiência que marca indelevelmente a vida das/os camponesas/es e dos sem-teto que se engajam na luta pela terra e pela moradia. Bem diferente das pedagogias alienadoras da escola tradicional, onde há “lições que falam de Evas e de uvas a homens que às vezes conhecem poucas Evas e nunca comeram uvas. “Eva viu a uva”. Pensamos – diz Paulo Freire - numa alfabetização que fosse em si um ato de criação, capaz de desencadear outros atos criadores” (FREIRE, 2002, p. 112). Na luta pela terra e pela moradia se criam e se constroem realidades emancipatórias, tais como: arte e cultura popular, e se cria, acima de tudo, pessoas novas comprometidas com a luta em prol da superação das injustiças sociais, econômicas, políticas, ecológicas, etc, injustiças criadas pelo “modo de reprodução sociometabólica do capital que em suas contradições antagônicas insuperáveis é incapaz de atacar essas injustiças” (MÉSZÁROS, 2007, p. 76). A luta pela terra e pela moradia é luta anticapitalista, “é uma luta contra a conversão da terra de trabalho, terra utilizada para trabalhar e produzir, em terra de exploração, terra para especular e explorar o trabalho alheio” (MARTINS, 1983, p. 145). Especular com a terra e explorar trabalho alheio são ações que interessam ao sistema do capital, que sempre ‘desemancipa’ o ser humano. Para se superar a expropriação da terra dos camponeses e a superexploração da classe trabalhadora Mészáros aponta uma única solução. Diz ele: “Só pode haver um único tipo de solução: a eliminação do antagonismo social de nossa reprodução sociometabólica. E só é possível concebê-la, em seus termos próprios, se a transformação abarcar tudo, desde as menores células constitutivas de nossa sociedade às maiores corporações monopolistas transnacionais que continuam a dominar nossa vida” (MÉSZÁROS, 2007, p. 77).

Para se compreender a luta pela terra e pela moradia como pedagogia de emancipação humana, urge considerar que “há múltiplas formas de educação, entre as quais se situa a escolar. Segundo essa tendência, a escola não é a única e nem mesmo a principal forma de educar; há, até mesmo, aqueles que consideram a escola negativa, do ponto de vista educacional, o que foi formulado explicitamente pela proposta de desescolarização, cujo principal mentor foi Ivan Illich” (SAVIANI, 2013, p. 83).

A luta pela terra e pela moradia não nega a importância da educação escolar, tanto é que o campesinato luta aguerridamente pelo fortalecimento da educação do campo, mas não hipertrofia a escola como se só ela tivesse um poder preponderante capaz de transformar socialmente a realidade rumo à superação do capitalismo. Uma pedagogia de emancipação humana da luta pela terra e pela moradia desmascara a mistificação da noção de propriedade privada capitalista da terra que ancora os discursos que legitimam o latifúndio como algo natural e excluem a pertinência da socialização da terra. Ainda nas primeiras décadas do século XIX, a noção de propriedade privada capitalista tornou uma ideologia tão forte que em 1835, o governo da França aprovou as Leis de setembro que, entre outras determinações, previam penas de prisão e altas multas para publicações que se manifestassem contra a propriedade privada capitalista e a ordem estatal vigente[2]. Ainda perdura “a ideologia da propriedade privada, individualista e absoluta, mesmo contra o texto da Constituição de 1988 ainda impera no seio do Estado, ou no seio da elite dominante que dita a interpretação que lhe favorece” (MARÉS, 2003, p. 13). Até quando no Brasil se especulará com a terra e explorará trabalho alheio? Até que aconteça a rebelião massiva dos 99% que são superexplorados pela elite escravocrata. Todos os injustiçados/as precisam participar das lutas coletivas por direitos, o que nos levará à libertação. Para isso é preciso priorizar o comunitário e participar da Grande Marcha da Liberdade. “Se isso significa deixar o trabalho e a escola: estejam lá. Ou ascendemos juntos ou caímos juntos”, bradava Martin Luther King, antes de ser martirizado na luta pela superação do racismo e do capitalismo.

 

Referências.

CAMBI, Franco. História da pedagogia. Tradução de Álvaro Lorencini. São Paulo: Fundação Editora da UNESP (FEU), 1999.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

MARTINS, José de Souza. Os Camponeses e a Política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político. 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 1983.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã: crítica da mais recente Filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.

MÉSZÁROS, István. O desafio e o fardo do tempo histórico: o socialismo do século XXI. São Paulo: Boitempo, 2007.

SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. 11ª edição revista. Campinas, SP: Autores Associados, 2013.

 

05/4/2022.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - “Nossa Mãe, nós e nossos filhos e netos viverão aqui no nosso Quilombo Araújo, Betim, MG”. Vídeo 4

2 - Basta de sexta-feira da Paixão em Betim, MG! Construamos Domingos de Ressurreição. Araújo! Vídeo 3

3 - Ato Público e Culto na Comunidade Tradicional Quilombola Família Araújo, de Betim/MG. Início/Vídeo 1

4 - Culto de Resistência n Comunidade Tradicional Quilombola Família Araújo, de Betim/MG. Luta! Vídeo 2

5 - "Se Medioli não respeita pobres e derruba suas casas, não pode mais ser prefeito de Betim/MG": Zélia

6 - “Em Betim/MG, prefeito Medioli faz guerra contra os pobres e destrói casas” (Adv. Dr. Ailton Matias)

7 - Na ALMG: “Da nossa Comunidade Tradicional Quilombola Família Araújo, de Betim/MG, só saímos mortos”

8 - Frei Gilvander, na ALMG: “Despejo Zero não só até 30/6/22, mas para sempre! Cadê a função social?”



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Cf. nota n. 285, MARX; ENGELS, 2007: 564.

terça-feira, 29 de março de 2022

Que tipo de fé ter? Por Frei Gilvander

 Que tipo de fé ter? Por Frei Gilvander Moreira[1]

Considerando o que diversos marxistas e a Teologia da Libertação compreendem sobre a questão religiosa e como lidar com a dimensão religiosa, podemos enunciar alguns pontos imprescindíveis para reflexão e práxis sobre a questão religiosa na luta pela terra, pela moradia e por outros direitos humanos fundamentais. Primeiro, em todas as religiões e suas igrejas enquanto instituições é hegemônica a tendência conservadora que resulta em líderes religiosos, sejam eles padres, pastores ou similares, cúmplices do poder político e econômico da ordem estabelecida. No caso das sociedades capitalistas, são cúmplices das opressões perpetradas pelo capitalismo e pelos capitalistas. E os funcionários das religiões e igrejas se beneficiam do poder também. Segundo, na origem do cristianismo, no baixo clero e atualmente em uma minoria de padres, pastores e leigos/as adeptos da Teologia da Libertação há, sim, compromisso com as causas de emancipação das classes trabalhadora e camponesa. Terceiro, o peruano José Carlos Mariátegui (1894-1930) tem razão ao buscar aproximar os cristãos libertários e os marxistas socialistas, pois há, sim, algum tipo de fé nas pessoas militantes revolucionárias. Não está ainda demonstrado historicamente que com a superação das relações sociais do capital e da exploração humana, quando o ser humano tiver a história nas mãos, não haverá mais necessidade de expressões religiosas. Em Cuba, por exemplo, parte do povo cubano é religioso, frequenta igrejas, mesmo sendo socialistas comunistas. Quarto, se nossa preocupação maior é pedagógica, ou seja, como lutar, caminhar e marchar rumo à emancipação humana, nos parece um erro tático grave não lidar de forma emancipatória com a dimensão religiosa das/os trabalhadoras/es e dos/as camponesas/es. Ignorar ou contestar a dimensão de fé das pessoas com discursos racionais joga mais água no moinho das igrejas e correntes religiosas conservadoras, reacionárias, espiritualizantes e moralizadoras. “Parece muito provável que a revolução social em nosso continente – aliás, como a história tem provado – conte em suas fileiras com companheiros que professam alguma religião, assim como qualquer um pode ter a religião que lhe interessar ou não ter nenhuma” (IASI, 2011, p. 146-147). Sem a participação do povo que frequenta as igrejas (neo)pentecostais e os estádios de futebol não teremos luta revolucionária que nos leve à emancipação humana. Em Havana, no triunfo da revolução cubana, Fidel Castro, ao discursar dia 1º de janeiro de 1959, “dizia da fé que sempre teve no povo de Cuba, que era, em suas palavras, mais que uma fé, uma confiança” (IASI, 2011, p. 152). Fé no sentido bíblico não é crença em dogmas e doutrinas, mas trata-se de coragem e confiança existencial em si mesmo, nas/os companheiras/os e em um mistério maior que nos envolve. Quando, por diversas vezes, nos relatos de milagres nos evangelhos da Bíblia se coloca na boca de Jesus: “Tua fé te salvou”, não se está querendo afirmar nenhuma crença em dogmas e doutrinas, mas está se afirmando uma postura existencial de coragem e confiança na luta pessoal, comunitária ou coletiva de que é possível superar os problemas por maiores que pareçam. ‘Fé na luta!’, digamos como dizem as/os militantes do MST, dos Movimentos Sociais e as/os agentes das pastorais sociais.

Antônio Julio de Menezes Neto corrobora nossa interpretação de Marx relativo à questão religiosa, ao ponderar: “Marx realiza uma crítica concreta, baseada em estudos acerca de relações sociais e econômicas históricas e, não, uma crítica abstrata da religião” (MENEZES NETO, 2012, p. 28). A Comissão Pastoral da Terra (CPT), pela sua práxis, realiza uma espécie de ‘religiosização da política’, conforme afirma Cândido Grzybowski: “A religiosização de categorias políticas se exprime no uso político de símbolos cristãos, como a cruz nos acampamentos, e na realização de atos religiosos com fins políticos, como missas, romarias da terra, etc.” (GRZYBOWSKI, 1987, p. 68).

Como explicitação concreta da perspectiva religiosa questionada por Karl Marx, corroborando podemos citar o seguinte episódio: um cozinheiro dos frades carmelitas em Houston, Texas, nos Estados Unidos, nos disse, em agosto de 1997: “Sou latino-americano, mas participei da guerra do Vietnã defendendo os Estados Unidos e Deus”. Enquanto nos narrava sua experiência na guerra do Vietnã, ele retirou do bolso uma nota de dólar, mostrou-nos e disse: “Está escrito aqui “we trust in God” (= nós acreditamos em Deus). Lá no Vietnã era a guerra entre o mundo ateu e o mundo crente, a guerra entre Deus e o demônio. Estávamos lá defendendo não apenas os Estados Unidos, mas Deus. Queríamos evitar que os ateus comunistas e o mal tomassem conta do mundo”. Ao ouvir isso, boquiaberto, entendemos que ao se declarar teoricamente ateu, o ‘socialismo real’ traiu a filosofia de Karl Marx, pois entregou um argumento de ouro aos capitalistas que, ateus na prática, se sentem defensores de Deus na terra, mas na realidade são arautos de um ídolo: o deus capital/mercado.

As necessidades materiais são o que ‘dá mais liga’ para a coesão interna entre os Sem Terra ou Sem Teto em uma ocupação até a conquista da terra. O cultivo dos valores de uma fé libertadora, segundo a Teologia da Libertação, tem certo grau de fôlego para sustentar a perseverança na luta pela terra, pela moradia e por outros direitos humanos fundamentais na perspectiva de um projeto socialista. No Brasil e na América Latina, com um povo religioso, é impossível fazer revolução socialista sem a Bíblia interpretada considerando os oprimidos da história e ignorando a dimensão de fé das pessoas, mas fé libertadora no Deus que age nas entranhas da história, que combina a fina flor da filosofia de Marx com a fina flor da Teologia da Libertação. A fé, em si mesma é algo ambíguo, pode emancipar ou explorar. No fundo, não basta ter fé. Depende que tipo de fé se cultiva. A questão central não é ter ou não ter fé, mas que tipo de fé ter ou não ter. Importa incorporar uma fé emancipadora como instrumento que pode levar à conscientização do valor da vida, a não submissão às condições de opressão, pois de tanto obedecer adquire-se reflexos de submissão. Trata-se de ter a fé de Jesus Nazaré e não apenas ter fé em Jesus.

Referências.

GRZYBOWSKI, Cândido. Caminhos e Descaminhos dos Movimentos Sociais no Campo. Petrópolis: Vozes/FASE, 1987.

IASI, Mauro Luis. Ensaios sobre consciência e emancipação. 2ª edição. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

MENEZES NETO, Antonio Júlio de. A Ética da Teologia da Libertação e o Espírito do Socialismo no MST. Belo Horizonte: UFMG, 2012.

29/3/2022.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Filme PEDRA EM FLOR, de Argemiro Almeida, 1992. CEBs e Leitura Popular da Bíblia. Frei Carlos Mesters

2 - Retomada Indígena Xukuru-Kariri - Comunidade indígena Arapoã Kakyá -, em Brumadinho, MG – Vídeo 1

3 - Veja a Comunidade indígena Arapoã Kakyá (Retomada Indígena Xukuru-Kariri), Brumadinho/MG – Vídeo 2

4 - “Quando pomos pé num território somos raiz forte.” Arapoã Kakyá Xukuru-Kariri Brumadinho/MG – Vídeo 3

5 - “A terra é nossa mãe; nós, os filhos dela”. Comunidade indígena Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG–Vídeo 4

6 - Frei Carlos Mesters: CF/22 -Fraternidade e Educação. “Fala com sabedoria, ensina com amor”(Pr 31,26)

7 - Curso Teologias da Libertação para os nossos dias – Aula 02. Por Marcelo Barros - 29/7/2020

8 - COMUNIDADE, FÉ E BÍBLIA, Carmo Vídeo, 1995. Roteiro: Frei Carlos Mesters, Frei Gilvander e Argemiro

9 - "Paulo em Gálatas: Que tipo de fé liberta?" - Para o Mês da Bíblia/2021 - Frei Gilvander -13/8/2021



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III