terça-feira, 15 de março de 2022

Religião é utopia gigante? Por Frei Gilvander

 Religião é utopia gigante? Por Frei Gilvander Moreira[1]


O filósofo Antonio Gramsci (1891-1937) foi um dos primeiros marxistas que tentou entender o papel contemporâneo da Igreja e o peso da cultura religiosa sobre as massas populares. Admirador do socialista cristão francês Charles Péguy, Gramsci escreve: “Lendo Nossa Juventude, de Péguy, embebedamo-nos com esse sentimento místico religioso do socialismo, de justiça que impregna tudo. […] Sentimos em nós uma nova vida, uma crença mais forte, afastada das ordinárias e miseráveis polêmicas dos pequenos e vulgares políticos materialistas” (GRAMSCI apud LOWY, 2007, p. 308). Em Cadernos do Cárcere, Gramsci reconhece a dimensão utópica das ideias religiosas: “A religião é a utopia mais gigante, a mais metafísica que a história jamais conheceu, desde que é a tentativa mais grandiosa de reconciliar, em forma mitológica, as reais contradições da vida histórica. Afirma, de fato, que o gênero humano tem a mesma ‘natureza’, que o homem […] como criado por Deus, filho de Deus, é, portanto, irmão de outros homens, igual a outros e livre entre e como outros homens [...]; mas também afirma que tudo isto não pertence a este mundo mas sim a outro (a utopia). Desta forma, as ideias de igualdade, fraternidade e liberdade entre os homens […] estiveram sempre presentes em cada ação radical da multidão, de uma ou outra maneira, sob formas e ideologias particulares” (GRAMSCI, 1999, p. 205).

Tendo como experiência concreta o fenômeno religioso da Igreja Católica na Itália nas primeiras décadas do século XX, Gramsci entendeu também a diferenciação interna na igreja – atualmente, podemos dizer nas igrejas – segundo uma variedade ideológica e também segundo as diferentes classes sociais: “Toda religião [...] é realmente uma multiplicidade de distintas e, às vezes, contraditórias religiões: há um catolicismo para os camponeses, um para a pequena burguesia e trabalhadores urbanos, um para a mulher, e um catolicismo para intelectuais” (GRAMSCI, 1999, p. 115). O mesmo texto bíblico lido em igrejas de periferia, de bairro nobre ou em um acampamento ou assentamento de reforma agrária é interpretado de formas muitas vezes até contraditórias.

No Brasil, atualmente, podemos dizer parodiando Gramsci que há um tipo de igreja para os bairros nobres, outro tipo para a pequena burguesia e outro para o povo de periferia. E há, como referido acima, as igrejas (neo)pentecostais que com grande inserção nos meios midiáticos usam e abusam do nome de Deus para surrupiar muito dinheiro do povo aflito encurralado pelas injustiças sociais. Isso se faz via teologia/ideologia da prosperidade com missas e cultos de cura, privatizando a fé e reduzindo Deus a um quebra galho para resolver problemas pessoais que são frutos da superexploração promovida pelo capitalismo.

De forma semelhante a Engels, o marxista Ernst Bloch, ao analisar o fenômeno religioso,  distinguiu duas correntes sociais opostas: uma religião ópio do povo e outra subversiva. “Por um lado, a religião teocrática das Igrejas oficiais, ópio dos povos, um aparelho mistificador a serviço dos capitalistas; por outro, a secreta, subversiva e herética religião dos albigenses, husitas, de Joaquim de Flores, Thomas Munzer, Franz von Baader, Wilhelm Weitling e Leon Tolstoi” (BLOCH apud LOWY, 2007, p. 310).

Se fosse hoje, Bloch provavelmente citaria expoentes da teologia da libertação, tais como Rubem Alves, Gustavo Gutierrez, Leonardo Boff, José Comblin, Tomás Balduíno, Pedro Casaldáliga, Hugo Assmann, frei Betto, Marcelo Barros, Benedito Ferraro, Jon Sobrino, Carlos Mesters, Pablo Richard etc. Porém, diferentemente de Engels, Bloch reconhece que a religião pode veicular uma consciência utópica, pela sua força crítica e antecipadora. “Em suas manifestações contestadoras e rebeldes, a religião é uma das formas mais significativas de consciência utópica, uma das expressões mais ricas de O Princípio Esperança. Através de sua capacidade de antecipação criativa, a escatologia judaico-cristã – universo religioso favorito de Bloch – contribui para dar forma ao espaço imaginário do ainda não-existente” (BLOCH apud LOWY, 2007, p. 310).

O filósofo e sociólogo marxista Lucien Goldmann (1913-1970) propõe a renovação dos estudos marxistas da religião. Ele fala em crença religiosa e crença marxista: “Ambas têm em comum o rechaço do puro individualismo (racionalista ou empirista) e a crença em valores trans-individuais – Deus para a religião, a comunidade humana para o socialismo. Em ambos os casos, a crença está apoiada em uma aposta – a aposta pascaliana na existência de Deus e a marxista na libertação da humanidade – que pressupõe o perigo do fracasso e a esperança do êxito” (LOWY, 2007, p. 311).

O que separa os cristãos socialistas e os socialistas ateus é o caráter supra-histórico da transcendência religiosa: “A crença marxista é uma crença no futuro histórico que o ser humano cria por si mesmo, melhor dizendo, que devemos fazer com nossa atividade, uma “aposta” no êxito de nossas ações; a transcendência de que é objeto esta crença não é nem sobrenatural nem trans-histórica, mas sim supraindividual, nada mais, mas tampouco nada menos” (GOLDMANN apud LOWY, 2007, p. 312).

Os adeptos da Teologia da Libertação acreditam na força humano-divina e intra-histórica e não em um Deus extra-história. Não há transcendência em contraposição à imanência, terreno das relações humanas, mas há transdescendência, que é o divino no humano e em toda a biodiversidade. “O espírito (ruah, em hebraico) de Deus está nas águas” (Gen 1,2). O sopro divino (ruah) “agitava, revolvia, sagazeava, bailava, tocava, acariciava, abraçava, envolvia, chocava” as águas. Javé respirava nas águas. Namorava as águas, talvez possamos dizer. Trata-se de algo intimamente ligado às águas. Agitava de dentro para fora. Ruah e água não são duas realidades. Trata-se da mesma realidade sob ângulos diferentes. São “carne e unha”, inseparáveis. Em Gênesis 1,2b “água” é símbolo da realidade. Tudo é água, pois água está em todo ser vivo. Logo, não podemos entender água apenas no sentido físico. O autor bíblico quer dizer que o espírito de Deus está em tudo, permeia e perpassa tudo. Em tudo está uma aura de divino, de sagrado. Existe água não só nos rios, mas em tudo há água, em todos os corpos, em todos os seres vivos. A terra é um grande ser vivo, chamada por muitos de Gaia. Todos os seres vivos integram, mantendo identidades próprias, em uma grande sinfonia, o ser maior: o planeta Terra. Pelo exposto, compreendemos Religião como utopia gigante, porém com concretização dos mais variados jeitos e até contraditórios, às vezes.

Referências.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol. I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

LOWY, Michael. Marxismo e religião: ópio do povo?. In: A teoria marxista hoje. Problemas e perspectivas. Buenos Aires: CLACSO, p. 298-315, 2007.

15/3/2022.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Vale viola direito de ir, vir e de assistência espiritual. Xukuru-Kariri, em Brumadinho/MG. Vídeo 9

2 - Frei Gilvander X Seguranças da Vale S/A e Educação Indígena Xukuru-Kariri, em Brumadinho/MG. Vídeo 7

3 - Retomada Indígena Xukuru-Kariri - Comunidade indígena Arapoã Kakyá -, em Brumadinho, MG – Vídeo 1

4 - Veja a Comunidade indígena Arapoã Kakyá (Retomada Indígena Xukuru-Kariri), Brumadinho/MG – Vídeo 2

5 - “Quando pomos pé num território somos raiz forte.” Arapoã Kakyá Xukuru-Kariri Brumadinho/MG – Vídeo 3

6 - “A terra é nossa mãe; nós, os filhos dela”. Comunidade indígena Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG–Vídeo 4

7 - "Temos direito de (r)existir. Morro na luta." Cacique Merong na Mesa/MG, Kamakã Mongoió/Brumadinho

8 - Dom Vicente: “Precisamos de 1 índio/a na Presidência. Onde tem índio tem floresta.” Xukuru. Vídeo 12


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

  

quarta-feira, 9 de março de 2022

Rosa Luxemburgo na luta das Mulheres: e os cristãos? Por Frei Gilvander

 Rosa Luxemburgo na luta das Mulheres: e os cristãos? Por Frei Gilvander Moreira[1]


Dia 08 de março de 2022, Dia Internacional de Luta das Mulheres. Por que e para quê?  

          Primeiro, temos que dizer que todo dia é dia da mulher, mas o mês de março é especialmente o Mês das Mulheres. Na União Soviética, ainda antes da Revolução Soviética de 1917, mulheres camponesas fizeram muitas lutas por terra, pão e liberdade, o que fez eclodir a Revolução socialista de 1917, e nas repúblicas socialistas soviéticas, todo ano, o dia 08 de março passou a ser celebrado como o Dia Internacional das Mulheres. Nos Estados Unidos tentaram apagar essa história e inventaram uma falsa história que diz ser o dia 8 de março como tendo sido iniciado por mulheres trabalhadoras estadunidenses, o que não é verdade. A maior homenagem que uma mulher pode receber é respeito, admiração e amor. “Não só flores, mas respeito”, exigem as mulheres. “Não apenas nos deseje “feliz dia”. Levante-se e lute conosco!”, bradam as mulheres lutadoras. Sugiro a leitura do nosso artigo “Mulheres na luta sempre, na Bíblia e hoje” em www.gilvander.org.br .[2]

Segundo, precisamos ouvir o que a filósofa Rosa Luxemburgo (1871 a 1919) analisou e denunciou sobre a postura da Igreja na sociedade. No ensaio O socialismo e as igrejas, de 1905, Rosa Luxemburgo defende que os socialistas modernos são mais próximos dos princípios originais do cristianismo e o clero conservador da atualidade, não. Eis algumas afirmações eloquentes de Rosa Luxemburgo para nossa análise: “Desde que os socialistas lutam por uma ordem social de igualdade, liberdade e fraternidade, os padres, se honestamente quisessem implementar na vida da humanidade o princípio cristão “ama ao próximo como a ti”, deveriam dar as boas-vindas ao movimento socialista. [...] Quando o clero apoia o rico, e aqueles que exploram e oprimem o pobre, estão em contradição explícita com os ensinamentos cristãos: servem não a Cristo, mas sim ao Bezerro de Ouro e ao chicote que açoita os pobres e indefesos. [...] A flagrante contradição entre as ações do clero e os ensinamentos do cristianismo deve ser matéria de reflexão para todos nós. [...] De acordo com a situação material dos escravos, os primeiros cristãos fizeram a proposta da propriedade em comum – o comunismo. [...] Os cristãos dos primeiros séculos eram comunistas fervorosos. Mas era um comunismo baseado no consumo de bens acabados e não no trabalho, e demonstrou-se incapaz de reformar a sociedade, de pôr fim à desigualdade entre os homens e de derrubar as barreiras que separavam os pobres dos ricos” (LUXEMBURGO [1905], 2002, p. 112-115).

Segundo Rosa Luxemburgo, os socialistas discordam dos primeiros cristãos comunistas, pois dizem: "não queremos que os ricos compartilhem seus bens com os pobres: não queremos caridade nem esmola; nada disso pode apagar a desigualdade entre os homens. O que exigimos não é que os ricos dividam com os pobres, mas que não haja ricos e pobres” (LUXEMBURGO [1905], 2002, p. 116-117). Rosa aponta uma ingenuidade metodológica na proposta das primeiras comunidades cristãs, narrada na Bíblia, no livro de Atos dos Apóstolos: “Os primeiros cristãos acreditavam poder remediar a pobreza do proletariado com as riquezas dispensadas pelos possuidores. É o mesmo que pegar água com um coador” (LUXEMBURGO [1905], 2002, p. 117)! Ao fazer uma contundente retrospectiva histórica do cristianismo e da igreja, Rosa Luxemburgo reconhece que as primeiras comunidades cristãs, originárias basicamente do seio dos escravos, cultivavam significativa fidelidade ao projeto do evangelho de Jesus de Nazaré. E também na época da Patrística, denunciando as injustiças sociais, os Pais da Igreja prosseguira, no entanto, a luta contra esta penetração da desigualdade social no seio da comunidade cristã, fustigando aos ricos com palavras ardentes e exortando-os a voltarem ao comunismo dos primeiros Apóstolos” (LUXEMBURGO [1905], 2002, p. 117).

Rosa Luxemburgo fez questão de citar alguns dos Pais da igreja - Basílio, João Crisóstomo e Gregório Magno - como mentores de uma espécie de comunismo dos primeiros cristãos. “São Basílio, no Século IV depois de Cristo, predicava assim contra os ricos: "Infelizes, como os justificarei perante o Juiz Celestial? Vós me perguntais: ‘Qual é a nossa culpa, se só guardamos o que nos pertence?’ E vos pergunto: ‘Como conseguistes o que chamais vossa propriedade? Como se enriquecem os possuidores se não é tomando posse das coisas que pertencem a todos? Se cada um tomasse apenas o que necessitasse e deixasse o resto para os demais, não haveria ricos nem pobres" (LUXEMBURGO [1905], 2002, p. 117).

Na mesma linha proclamava também João Crisóstomo, patriarca de Constantinopla. No século VI, Gregório Magno exortava as comunidades cristãs: “Quando dividimos com os que sofrem, não lhes damos o que nos pertence, mas o que lhes pertence. Não é um ato de compaixão, mas o pagamento de uma dívida” (LUXEMBURGO [1905], 2002, p. 118).

Entretanto, constata Rosa Luxemburgo que “as condições econômicas resultaram mais poderosas do que os mais belos discursos. Na Idade Média, enquanto a servidão reduzia o povo trabalhador à pobreza, a Igreja enriquecia-se cada vez mais” (LUXEMBURGO [1905], 2002, p. 119), cobrando dízimo obrigatório no valor de 10% sobre a renda e sobre as propriedades de quem possuía. Além disso, outros impostos e inúmeras doações e testamentos eram recebidos pela igreja. As doações para a igreja provinham de “libertinos ricos de ambos os sexos que à beira da morte queriam pagar por sua vida pecaminosa. Entregavam à Igreja dinheiro, casas, aldeias inteiras com os seus servos e a renda de terra e os impostos em trabalho (corveia)” (LUXEMBURGO [1905], 2002, p. 119).

Rosa Luxemburgo fez muitas outras análises demonstrando que, ao longo da história e no início do século XX a Igreja se caracterizava por atuar sustentando o poder opressor e beneficiando-se dele. Mais algumas colocações de Rosa Luxemburgo são importantes serem aqui fixadas. Por exemplo: “Quando o proletariado do campo e da cidade se levantava contra a opressão e a servidão, encontrava no clero um inimigo feroz. É certo que no seio da Igreja existiam duas classes: o clero superior, que absorvia toda a riqueza, e a grande massa de padres rurais com modestos recursos. Essa classe sem privilégios se insurgia contra o clero superior, e, em 1789, durante a Grande Revolução, uniu-se ao povo para lutar contra o poder da nobreza secular e eclesiástica. [...] O socialismo não é a generosidade dos ricos para com os pobres, mas a abolição total da diferença entre ricos e pobres, obrigando todos/as a trabalhar segundo sua capacidade mediante a abolição da exploração do homem pelo homem” (LUXEMBURGO [1905], 2002, p. 120 e 122).

Rosa Luxemburgo encontrou motivos para ser veemente na crítica aos padres: “Estes Judas caluniam quem desperta a consciência de classe. [...] Quando os padres usam o púlpito como meio de luta política contra a classe operária, os operários devem combater os inimigos de sua libertação, usem batina ou farda” (LUXEMBURGO [1905], 2002, p. 123-124).

Dessa forma, Rosa Luxemburgo compreende o proletariado socialista em luta revolucionária como um movimento que aproxima o Evangelho de Jesus Cristo da fraternidade social e defende a igualdade substantiva de todos a partir dos/as injustiçados/as, e chama as pessoas a estabelecerem na terra o Reino da Liberdade e do Amor ao Próximo. Sigamos na luta pela superação do sistema capitalista ao lado das mulheres de luta, admirando-as, aprendendo com elas e acima de tudo respeitando-as, pois elas estão doando suas vidas na construção de uma sociedade sem exploração, com liberdade e fraternidade real para todos/as.

Referências.

 LÊNIN, Vladimir Ilitch. O Socialismo e a Religião [1905]. In:   https://www.novacultura.info/post/2021/03/17/lenin-socialismo-e-religiao  

08/3/2022.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Verdades que precisam ser ditas em Betim/MG. “O negócio do Medioli é destruir”. Mulher de coragem!

2 - Três mulheres de luta: “O justo é NÃO DESPEJAR a Ocupação Cidade de Deus, de Sete Lagoas/MG”–24/5/21

3 - Presença e atuação das Mulheres na Bíblia. Emancipação ou opressão? Diferentes leituras – 05/03/2021

4 - Margareth da padaria, em Santa Rita de Caldas, sul de MG: mulher imprescindível! 08/9/2019

5 - "Sem medo de ser mulher" e Cruz do Compromisso na IV Romaria/Águas/Terra/Bacia/rio Doce. Vídeo 10

6 - Mulheres guerreiras do MLB no V Congresso Nacional do MLB em Recife. Vídeo 6 - 13/9/2019

7 - Anita Santos, mulher negra, luz para o povo da Ocupação Anita Santos, BH, MG. Vídeo 3. 26/7/2019

8 - Luta contra Racismo/Violência contra as Mulheres/Opressão do Capital. "Uni-vos!" (Frei Gilvander)

9 - Carliusa Kiriri, mulher guerreira: "O nosso lugar é aqui!"(Caldas/MG) - Vídeo 6 - 27/1/2019.



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

quarta-feira, 2 de março de 2022

Religião: jugo ou libertação? Por Frei Gilvander

 Religião: jugo ou libertação? Por Frei Gilvander Moreira[1]

O político e teórico marxista Karl Kautsky (1854-1938) considerava todas as correntes religiosas subversivas, as que protestavam contra a ordem estabelecida, como movimentos “precursores do socialismo moderno”, cujo objetivo era um estilo de comunismo distributivo – oposto ao comunismo produtivo do movimento operário moderno (Cf. LOWY, 2007, p. 304). Kautsky entende Tomas More, autor de Utopia, como um defensor da classe camponesa que estava tendo suas terras expropriadas pela reforma protestante na Inglaterra. “Segundo Kautsky, Tomas More, autor de Utopia, escolheu como religião o catolicismo em lugar do protestantismo porque estava contra a brutal proletarização do grupo de camponeses resultante da destruição da Igreja tradicional e da expropriação de terras comunitárias pela Reforma Protestante na Inglaterra. Por outro lado, as instituições religiosas da ilha Utopia mostram que estava longe de ser um partidário do autoritarismo católico estabelecido: defendia a tolerância religiosa, a abolição do celibato clerical, a eleição de padres por suas comunidades e a ordenação de mulheres” (KAUTSKY apud LOWY, 2007, p. 305).

Questões religiosas defendidas por Tomas More na Utopia também são defendidas por vários teólogos/as da Teologia da Libertação com algumas pequenas diferenças: o ecumenismo como proposta de respeito religioso, a abolição do celibato clerical obrigatório – o celibato deve ser opcional -, a eleição de padres, bispos e até do papa pelas comunidades cristãs e o fim da ordenação sacerdotal de homens para ficar valendo apenas o sacerdócio comum conferido pelo batismo ou a ordenação sacerdotal de mulheres, proposta defendida por uma tendência do Movimento Feminista da Teologia da Libertação. Isso é necessário para a superação do patriarcalismo na Igreja Católica.

No contexto de religião conservadora atrelada aos interesses do Estado e dos senhores feudais do início do século XX na Rússia, no artigo “Socialismo e religião”, de 1905, Lênin compreendeu a religião como uma “névoa mística” e defendeu que religião seja um assunto privado e que as igrejas não podem se imiscuir no Estado e nem na Educação. “A religião é uma das formas de opressão espiritual que pesa em toda a parte sobre as massas populares. [...] A impotência das classes exploradas na luta contra os exploradores gera tão inevitavelmente a fé numa vida melhor além-túmulo como a impotência dos selvagens na luta contra a natureza gera a fé em deuses, diabos, milagres, etc.” (LÊNIN [1905], 2012, p. 1).

Em consonância com o materialismo histórico-dialético, Lênin entende que é a exploração causada pelo modo de produção capitalista que gera a religiosidade nas pessoas. A/o trabalhador/a esfolada/o aqui na terra, sem conseguir fazer a história com as próprias mãos, acaba por projetar uma vida feliz além-morte, acreditar em forças fora de si, em milagres no sentido de acontecimentos que desrespeitem as leis da natureza. Mas, Lênin reconhece que somente combater ideologicamente a expressão religiosa das pessoas ou ignorá-las seria um equívoco tático grave e uma contradição com o método do materialismo histórico-dialético, o qual diz que enquanto não acontecer a superação das relações sociais impostas pelo capital, relações sociais escravocratas, várias ideologias estarão sendo criadas, entre elas a ideologia religiosa. A esse respeito diz Lênin: “Seria estreiteza burguesa esquecer que o jugo da religião sobre a humanidade é apenas produto e reflexo do jugo econômico que existe dentro da sociedade. Não é com nenhum livro e nem com nenhuma propaganda que pode-se esclarecer o proletariado se não o esclarecer a sua própria luta contra as forças do capitalismo” (LÊNIN [1905], 2012, p. 4).

Mas, em tom tático, Lênin defendeu que o ateísmo não deveria ser parte do programa do Partido Comunista porque a “unidade na real luta revolucionária das classes oprimidas por um paraíso na terra é mais importante que a unidade na opinião proletária sobre o paraíso no céu” (LÊNIN [1905], 2012, p. 4).

No calor da primeira revolução soviética, em 1905, interessada em formar a consciência de milhões de trabalhadores russos e poloneses que estavam se engajando na luta socialista revolucionária, Rosa Luxemburgo, mesmo sendo ateia, percebeu a necessidade de mostrar à classe trabalhadora como as igrejas enquanto instituições eram reacionárias e portadoras de exploração implacável. Percebendo que não deveria alimentar discussão filosófica em defesa do materialismo histórico-dialético para criticar as igrejas, Rosa Luxemburgo, vendo que os padres “convertem a igreja e o púlpito num lugar de propaganda política” (LUXEMBURGO [1905], 2002, p. 112) contra os operários socialistas revolucionários que lutavam pela superação do capital e pela derrubada do czarismo na Rússia, Rosa busca resgatar a dimensão social original subversiva do cristianismo. Rosa Luxemburgo reconhece “a consciência e as opiniões pessoais como sendo sagradas. Todo homem pode ter aquela fé e as ideias que ele acredita sejam fonte de felicidade. Ninguém tem o direito de perseguir ou atacar os demais por suas opiniões religiosas” (LUXEMBURGO [1905], 2002, p. 112).

A dimensão religiosa é uma das dimensões que integram a condição humana. Não é a religião em si que gera jugo ou libertação, mas as pessoas que, para atender seus interesses próprios, sua sede de poder, a usam para dominar, explorando a fé do povo, ou para, em comunhão, na luta coletiva, à luz da Palavra de Deus na Bíblia e na realidade, buscar caminhos de transformação e libertação. Portanto, há muitas formas de acolher ou não e de lidar com a dimensão espiritual da vida. Ao longo da história da humanidade, muitos tipos de religiosidade têm sido usados como armas de violência sutil que legitimaram grandes massacres e genocídios. Entretanto, outros modelos de religiosidade têm impulsionado ao longo da história processos de luta pela superação de opressões e explorações. Tenhamos a grandeza de cultivar nossa dimensão espiritual conectada com as lutas por Justiça, por direitos humanos e sociais. Assim Jesus Cristo testemunhou e nos ensinou. Que nossa dimensão religiosa seja instrumento de humanização e libertação e não jugo que oprime, explora e mata.

Referências.

 LÊNIN, Vladimir Ilitch. O Socialismo e a Religião [1905]. In:   https://www.novacultura.info/post/2021/03/17/lenin-socialismo-e-religiao  

LOWY, Michael. Marxismo e religião: ópio do povo?. In: A teoria marxista hoje. Problemas e perspectivas. Buenos Aires: CLACSO, p. 298-315, 2007.

02/3/2022.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Retomada Indígena Xukuru-Kariri - Comunidade indígena Arapoã Kakyá -, em Brumadinho, MG – Vídeo 1

2 - Veja a Comunidade indígena Arapoã Kakyá (Retomada Indígena Xukuru-Kariri), Brumadinho/MG – Vídeo 2

3 - “Quando pomos pé num território somos raiz forte.” Arapoã Kakyá Xukuru-Kariri Brumadinho/MG – Vídeo 3

4 - “A terra é nossa mãe; nós, os filhos dela”. Comunidade indígena Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG–Vídeo 4

5 - Frei Carlos Mesters: CF/22 -Fraternidade e Educação. “Fala com sabedoria, ensina com amor”(Pr 31,26)

6 - Curso Teologias da Libertação para os nossos dias – Aula 02. Por Marcelo Barros - 29/7/2020

7 - COMUNIDADE, FÉ E BÍBLIA, Carmo Vídeo, 1995. Roteiro: Frei Carlos Mesters, Frei Gilvander e Argemiro

8 - "Paulo em Gálatas: Que tipo de fé liberta?" - Para o Mês da Bíblia/2021 - Frei Gilvander -13/8/2021




[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Capitalismo é idolatria do mercado? Por Frei Gilvander

 Capitalismo é idolatria do mercado? Por Frei Gilvander Moreira[1]


Diversas vezes nos seus escritos, Karl Marx se refere ao capitalismo como um Moloch, um ídolo que exige o mundo inteiro como um sacrifício devido e como um monstruoso deus pagão, que só quer beber néctar na caveira da morte. A crítica da economia política de Marx está recheada de referências à idolatria: Baal, Moloch, Mammon, Bezerro de Ouro. E Marx usa também o conceito de fetichismo (Cf. LOWY, 2007, p. 301). Essas referências inspiraram teólogos da Teologia da Libertação, tais como Franz Hinkelammert, Enrique Dussel, Hugo Assmann e Jung Mo Sung, na elaboração da Teologia da Economia que compreende o capitalismo como idolatria do mercado e do capital, pois o mercado e o capital são endeusados.[2] No altar do mercado, o deus capital sacrifica seres humanos e toda a biodiversidade para continuar reproduzindo os ossos do capital.

Mais do que Marx, Friedrich Engels se dedicou a elucidar as formas históricas e sociais concretas da religião cristã em suas relações sociais na luta de classes. A cristandade foi entendida por Engels não como uma “essência” atemporal, mas como um sistema cultural que experimentou transformações em diferentes períodos históricos. Usando o método do materialismo histórico-dialético, o que explica a sociedade capitalista como movida pela luta de classes, Engels, em A guerra camponesa na Alemanha, entende que o clero – coletividade de sacerdotes - é integrado por um corpo socialmente heterogêneo. Assim diz Engels sobre o clero: “em certas conjunturas históricas, dividia-se internamente segundo sua composição social. É desta forma que durante a Reforma, temos por um lado o alto clero, cúpula da hierarquia feudal, e pelo outro, o baixo clero, que dá sustento aos ideólogos da Reforma e do movimento revolucionário camponês” (ENGELS apud LOWY, 2007, p. 302).

Por Reforma se entende aqui o Movimento Protestante que buscava inicialmente mover a Igreja Católica a fazer autocrítica, iniciado pelo padre Martinho Lutero, que afixou 95 teses na Abadia de Westminster na Alemanha, em 31 de outubro de 1517. Lutero denunciava o comércio das indulgências e propunha a leitura dos textos bíblicos como fundamento primordial para a igreja. Na contramão do Evangelho de Jesus Cristo, a Igreja Católica, em vez de fazer autocrítica, promoveu uma contrarreforma se fechando e empurrando para debaixo do tapete seus graves erros; contrarreforma tocada a partir do Concílio de Trento, que aconteceu entre 1545 e 1563.

Guardadas as devidas e evidentes diferenças, essa análise de Engels se verifica também no Brasil, pois uma pequena parcela do clero, com postura crítica, de protesto e subversiva, está comprometida com a luta por direitos humanos fundamentais dos povos superexplorados: luta pela terra, por moradia, pela superação do racismo estrutural e por muitos outros direitos sociais. Referimo-nos aos sacerdotes que acompanham as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), as pastorais sociais (CPT, CIMI, Cáritas, Pastoral Operária, Pastoral dos Migrantes, Pastoral da Criança, Pastoral Afro etc.) e os Movimentos Sociais Populares, inspirando-se na Teologia da Libertação e na leitura bíblica feita pelo Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI)[3]. Mas a maioria dos padres cultiva e fomenta uma religião burguesa, isso por meio de modelos religiosos espiritualizantes, moralistas, com visão funcionalista da sociedade, legitimando, consequentemente, muitas vezes inconscientemente, a opressão e a superexploração perpetrada pelo capital e pela classe dominante. Engels entendeu a distinção entre a religião historicamente constituída e as primeiras comunidades cristãs, que eram formadas basicamente, salvo exceções, por pessoas da classe trabalhadora, entre as quais os ‘escravos do campo’ e os ‘escravos domésticos’[4], camponeses endividados e pessoas livres com direitos negados. O apóstolo Paulo afirma na primeira Carta à comunidade cristã de Corinto a existência do povo trabalhador nas primeiras comunidades cristãs: “Não há entre vós nem muitos sábios aos olhos dos homens, nem muitos poderosos, nem muita gente de família distinta” (1 Coríntios 1,26). O poeta romano Juvenal expõe a crueldade e a brutalidade da escravidão no império romano: “Para sua casa trêmula, era um monstro, nunca tão feliz como quando o torturador estava em ação e algum pobre escravo que roubara um par de toalhas estava sendo marcado com um ferro em brasa (JUVENAL. In: Sátiras 14,18-22)”. “Varas foram quebradas nas costas de uma vítima, a chibata deixou listras de sangue em outra, uma terceira foi açoitada com um chicote de nove tiras. Algumas mulheres pagam um salário anual aos açoitadores” (JUVENAL. In: Sátiras, 6,479-480). No interior do Império Romano, ao viver em comunidade e buscar colocar tudo em comum, as primeiras comunidades cristãs tentaram experimentar um tipo de comunismo primitivo.

Em suas Contribuições à história da cristandade primitiva, Engels assinala uma diferença essencial entre as primeiras comunidades cristãs e o socialismo: “Os cristãos primitivos escolheram deixar sua libertação para depois desta vida enquanto que o socialismo localiza sua emancipação no futuro próximo deste mundo” (ENGELS apud LOWY, p. 2007, p. 303). Na mesma esteira dialética, a Teologia da Libertação apresenta pequena variação dessa perspectiva de Engels, pois aponta que as primeiras comunidades cristãs, ao buscar colocar tudo em comum, já iniciavam a experiência do reino de Deus – sociabilidade sem opressões -, que deve começar no ‘aqui e agora’, mas não termina aqui e nem agora. E, também, pela prática comunitária antiacumulação, as primeiras comunidades cristãs infiltravam no tecido social um germe de subversão à acumulação de riquezas, base da engrenagem do sistema do imperialismo romano. Enfim, Engels trouxe à luz o potencial de protesto e revolucionário de segmentos religiosos, o que abriu pistas para o nascedouro da Teologia da Libertação que, ao usar o materialismo histórico-dialético para analisar a realidade, busca compreender os conflitos e as injustiças sempre considerando a/o trabalhador/a injustiçada/o, colocando em prática a opção pela classe trabalhadora e pelo campesinato.

Enfim, pelo exposto acima, não temos dúvida de que o capitalismo é, sim, na prática, idolatria do mercado e do capital. Portanto, ser pessoa cristã em uma sociedade capitalista implica e exige ser anticapitalista, o que passa necessariamente por viver a vida segundo o princípio da misericórdia, colocando o outro, principalmente o empobrecido como orientador da nossa forma de pensar e agir. Priorizar a luta pelo bem comum, viver em comunidade, superar o egocentrismo e não cair nas seduções do individualismo e nem do “comprar, comprar e acumular, acumular”, pois quem se isola e se reduz a ser consumidor de mercadorias do mercado idolatrado se consome aos poucos e morre lentamente de muitas formas. Viver é belo, mas conviver e lutar pelo bem comum é mil vezes melhor.

Referências.

LOWY, Michael. Marxismo e religião: ópio do povo?. In: A teoria marxista hoje. Problemas e perspectivas. Buenos Aires: CLACSO, p. 298-315, 2007.

22/02/2022.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Frei Carlos Mesters: CF/22 -Fraternidade e Educação. “Fala com sabedoria, ensina com amor”(Pr 31,26)

2 – Celebração da Teologia da Libertação na Ocupação Paulo Freire, em Belo Horizonte, MG. 31/05/15

3 - Curso Teologias da Libertação para os nossos dias – Aula 02. Por Marcelo Barros - 29/7/2020

4 - Teologia Canastreira/Dom Mauro Morelli/2ª Pré-Romaria/XXI Romaria/Águas/Terra/MG/7ª Parte./05/8/2018

5 - “Os evangélicos farão parte da derrota do Bolsonaro" (Pastor Henrique Vieira). Não ao abuso da fé!

6 - Gratidão, emoção, amor, fé e alegria: Culto da Vitória do Beco Fagundes, Betim/MG: Despejo suspenso.

7 - “Fé e coragem!” Culto e Vigília no Beco Fagundes, Betim/MG, sob pressão infernal por despejo injusto

8 - COMUNIDADE, FÉ E BÍBLIA, Carmo Vídeo, 1995. Roteiro: Frei Carlos Mesters, Frei Gilvander e Argemiro

9- "Paulo em Gálatas: Que tipo de fé liberta?" - Para o Mês da Bíblia/2021 - Frei Gilvander -13/8/2021



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Cf. ASSMANN, Hugo; HINKELAMMERT, Franz. A idolatria do mercado: ensaio sobre economia e teologia. Petrópolis: Vozes, 1989. Cf. também SUNG, Jung Mo. Mercado religioso e mercado como religião. In: Horizonte, Belo Horizonte, v. 12, n. 34, p. 290-315, abr./jun. 2014. Disponível em http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/P.2175-5841.2014v12n34p290

 

[4] Eram tratados com menor severidade que os escravos do campo.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

MST: 34 anos de luta em MG, batismo de sangue em Felisburgo. Por Frei Gilvander

 MST: 34 anos de luta em MG, batismo de sangue em Felisburgo. Por Frei Gilvander Moreira[1]


Dia 12 de fevereiro é dia histórico para o campesinato na luta pela terra: dia 12 de fevereiro de 2022 o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em Minas Gerais, celebrou 34 anos de luta árdua que custou sangue e muito suor, mas teve também muitas conquistas. Dia 12 de fevereiro celebramos também 17 anos do martírio de Irmã Dorothy Stang, assassinada brutalmente, em Anapu, no Pará, dia 12 de fevereiro de 2005. Após um trabalho de base de dois anos em conjunto com agentes de pastoral da Comissão Pastoral da Terra (CPT), das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e de Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STRs) autênticos, em Minas Gerais, o MST cravou sua bandeira em um latifúndio pela primeira vez, na madrugada do dia 12 de fevereiro de 1988, noite chuvosa e período de carnaval – a polícia estaria dando segurança aos carnavalescos? -, em meio a muita tensão. Cerca de 400 famílias ocuparam a fazenda Aruega, que se tornou o Projeto de Assentamento (PA) Aruega[2], no município de Novo Cruzeiro, no Vale do Jequitinhonha. Atualmente, são cerca de 6 mil famílias no MST nas terras mineiras, sendo que destas, 1,6 mil já foram assentadas em 56 assentamentos conquistados, junto ao INCRA[3] de MG (SR-06) e ao INCRA de Brasília e Entorno (SR-28), responsável pelo noroeste de Minas.

Atualmente, o MST em Minas Gerais está organizado em 15 brigadas constituídas nas nove regionais existentes em Minas (Regional Rio Doce, Regional do Triângulo Mineiro, Regional da Zona da Mata, Regional do Sul de Minas; Regional do Norte de Minas, Região da Região Grande BH, Regional do Vale do Mucuri, Regional do Vale do Jequitinhonha e Regional do Centro-Oeste de Minas), - sem contar a regional do Noroeste de Minas - , totalizando mais de 110 áreas entre Assentamentos e Acampamentos dentro da organicidade do MST/MG.



Reconhecendo a importância e a necessidade da formação de base e de lideranças, entre 1991 e 1993, o MST publicou nove “Cadernos Vermelhos”, que são imprescindíveis para a compreensão da Organização Interna do MST. São eles: 1) Sobre o Método Revolucionário de Direção; 2) Normas Gerais do MST; 3) Manual de Organização dos Núcleos; 4) Como Organizar a Massa; 5) Disciplina; 6) Alianças; 7) CHE – E os Quadros de Direção; 8) Marcha Popular pelo Brasil; 9) Documento Básico do MST.

Se em nível nacional o Massacre de Eldorado dos Carajás pode ser considerado um divisor de águas na luta do MST, em Minas Gerais, o massacre de cinco Sem Terra do MST em Felisburgo banhou a mãe terra com o sangue de seus filhos, mas fez germinar sementes de luta. Temos o dever de manter acesa a memória dos mártires de Felisburgo que tombaram na luta pela terra. Por isso, na celebração dos 34 anos do MST em Minas Gerais é necessário falarmos da luta pela terra e o Massacre de Felisburgo também. É impossível compreender a atuação e o fortalecimento do MST no Brasil sem analisar o Massacre de Eldorado e suas repercussões na luta pela terra. Assim também não é possível compreender a luta pela terra em Minas Gerais, a atuação e o fortalecimento do MST em Minas, sem analisar e compreender o Massacre de Felisburgo e suas repercussões na luta pela terra no Vale do Jequitinhonha e em todas as regiões das Minas e dos Gerais. Nessa perspectiva apresentamos aqui um pouco da luta pela terra no município de Felisburgo e o Massacre de cinco Sem Terra no Acampamento Terra Prometida.

Dia 19 de agosto de 2009, o então presidente da República Federativa do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, assinou o Decreto que declarou de interesse social para fins de Reforma Agrária o imóvel rural denominado Fazenda Nova Alegria – 1.182 hectares – situado no Município de Felisburgo, Vale do Jequitinhonha, MG. O INCRA ficou autorizado a repassar o imóvel rural de que trata o Decreto para o assentamento de 40 famílias Sem Terra do MST. Por ironia da história, o motivo do Decreto presidencial não foi o fato de ali terem sido massacrados cinco Sem Terra, mas foi crime ambiental cometido pelo proprietário do latifúndio que não cumpria sua função social e era também fruto de grilagem de terras públicas devolutas. Para entender bem o que significa a desapropriação da Fazenda Nova Alegria, em Felisburgo, urge recordar o que segue.

Dia 20 de novembro de 2004, dia de Zumbi dos Palmares e da Consciência Negra, por volta das 11h15, em um dia chuvoso, 17 jagunços, liderados pelo fazendeiro e empresário Adriano Chafik Luedy, invadiram o Acampamento Terra Prometida, do MST, no município de Felisburgo. Renderam um Sem Terra que estava na guarita do acampamento e, com revólver encostado na sua orelha, o obrigaram a soltar um foguete, que era a senha para reunir todo o povo do acampamento em caso de ameaça ou de necessidade de se reunir com rapidez. O povo começou a se reunir. Adriano Chafik, visto por muitos no local, liderava a operação, perguntando “Cadê a Eni e o Jorge?”, e ordenando “Podem atirar e matar...”. O bando de jagunços – uns encapuzados, outros não – iniciou os disparos. Dentro de poucos minutos assassinaram cinco Sem Terra. Todos os tiros foram à queima-roupa. Feriram mais de 12 pessoas, incendiaram com gasolina dezenas de barracos de lona preta, a barraca da Escola, a barraca de alimentos, a barraca da biblioteca, barracos da Maria Gomes dos Santos (Eni) e do Jorge Rodrigues Pereira. Uma criança de doze anos levou um tiro próximo ao olho. Puseram gado nas lavouras dos Sem Terra. Muitos trabalhadores do acampamento ficaram, desde então, amedrontados e portadores de alguma doença, física ou mental, como consequência daquele crime.[4] Assassinaram covardemente cinco Sem Terra do MST: Iraguiar Ferreira da Silva, 23 anos; Miguel José dos Santos, 56 anos; Francisco Nascimento Rocha, 62 anos; Juvenal Jorge da Silva, 65 anos; Joaquim José dos Santos, 65 anos. A perícia feita atestou que todos os tiros foram à queima-roupa. Cada um dos camponeses assassinados recebeu diversos tiros, um levou quatro tiros no peito, outro levou treze. Feriram outras vinte pessoas Sem Terra.

Atearam fogo no acampamento, reduzindo a cinzas 65 barracas de lona preta, inclusive a barraca da escola, onde 51 adultos faziam, todas as noites, o curso de alfabetização. O Sr. Miguel José dos Santos, por exemplo, terminaria a 4a série primária em 2005. Pendurado no corpo do Sr. Joaquim José dos Santos, irmão de Miguel, foram encontrados dois embornais, um com milho e outro com feijão. Ele tinha semeado durante a manhã toda. Veio almoçar, participou da reunião da coordenação do acampamento, mas, antes de voltar para continuar plantando, foi barbaramente assassinado. Sr. Joaquim, um semeador de sementes crioulas, não transgênicas, foi semeado na terra prometida. Os mártires do Acampamento Terra Prometida não foram sepultados, foram plantados.

Escondidas no meio do mato, a polícia encontrou treze armas usadas no massacre de Felisburgo, inclusive armas de grosso calibre. Policiais encontraram uma nota fiscal da compra das armas e mais munição na sede da Fazenda Nova Alegria, que era do fazendeiro Adriano Chafik.  O exame de balística comprovou que as armas apreendidas foram utilizadas na chacina. Dos 17 acusados de participação nesse massacre, somente dois jagunços foram presos. Como todas as chacinas do Brasil, o crime foi premeditado e anunciado.

Viva a luta, vivam as resistências e as conquistas do MST-MG, nesses 34 anos! “Que a noite escura da dor e da morte passe ligeira, que o som dos nossos hinos anime nossas consciências e que a luta redima nossa pobreza, que o amanhecer nos encontre sorridentes festejando a nossa liberdade” (Ademar Bogo – Terra Sertaneja).

15/02/2022.

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - Acampamento Pátria Livre, do MST, em São Joaquim de Bicas, MG: mais de 4 anos de luta, 650 famílias.

2 - Palavra Ética na TVC-BH: Denúncia de Despejo no Quilombo Campo Grande, do MST, no sul de MG–26/09/20

3 - Lições da luta/resistência no Quilombo Campo Grande, do MST, sul de MG, após despejo genocida/cruel

4 - PM de MG bombardeando o Quilombo Campo Grande, do MST, em campo do Meio, MG: barbárie - 14/8/2020

5 - Frei Gilvander contra despejo de famílias Sem Terra do MST em Campo do Meio, sul de MG - 07/7/2020

6 - P.A Terra Prometida do MST em Felisburgo/MG produz alimentos saudáveis e Educação do Campo. Vídeo 3

7 - Memória da luta pela terra em Felisburgo/MG: P.A Terra Prometida, local do massacre de 5 Sem Terra.

8 - Sem Terra sobreviventes do massacre de Felisburgo, MG, jamais vão aceitar despejo. Vídeo 2 12/3/20

9 - Palavra Ética com Jorge Rodrigues e Maíra Gomes, sobreviventes do Massacre do MST, em Felisburgo



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG; colunista dos sites www.domtotal.com , www.brasildefatomg.com.br , www.revistaconsciencia.com , www.racismoambiental.net.br e outros. E-mail: gilvanderlm@gmail.com  – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br       –       www.twitter.com/gilvanderluis         – Facebook: Gilvander Moreira III

 

[2] Sobre a história e a trajetória dos camponeses Sem Terra assentados no PA Aruega, confira: CARVALHO, Maria da Glória. Lutas e conquistas de camponeses sem terra: a trajetória dos assentados da Fazenda Aruega. (Dissertação). Lavras: UFLA, 2000; ZANGELMI, Arnaldo José. História, identidade e memória no Assentamento Aruega – Novo Cruzeiro/MG. Dissertação (Mestrado em Extensão Rural). Viçosa: UFV, 2007; e ZANGELMI, Arnaldo José. Traduções e bricolagens: mediações em ocupações de terra no Nordeste Mineiro nas décadas de 1980 e 1990. Tese (Doutorado). Rio de Janeiro: UFRRJ,  2014, principalmente os capítulos II (Repressão, resistência e revigoramento da luta pela terra em Minas Gerais) e III (Emergência das novas mobilizações: abrindo caminhos para as ocupações de terra), p. 66-152.

[3] Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.

[4] Para maiores informações e detalhes sobre o Massacre de Felisburgo, cf. MOREIRA, Gilvander Luís. Massacre de Felisburgo: o que não pode ser esquecido, publicado no portal Correio da Cidadania, no seguinte link: http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=8370:social150513&catid=71:social&Itemid=180