terça-feira, 15 de setembro de 2020

DEUTERONÔMIO: “Não despeça de mãos vazias seu irmão ou irmã!” - Por Gilvander

DEUTERONÔMIO: “Não despeça de mãos vazias seu irmão ou irmã!” - Por Gilvander Moreira[1]

 


Em setembro de 2020, estamos refletindo sobre o quinto livro da Bíblia: Deuteronômio, que busca resgatar os ideais do Êxodo em tempos de monarquia na iminência de mais um exílio. Os autores e as autoras de Deuteronômio resgatam o ensinamento e o testemunho dos Levitas – lideranças que não podiam ter terra, o que gerava poder – que buscam alertar o povo para não recair nas agruras de outra escravidão semelhante à imposta pelo imperialismo dos faraós no Egito. Imersos na ditadura de monarquia opressora que reproduzia relações sociais escravocratas, os levitas, em textos inseridos no livro do Deuteronômio, propõem a superação de toda e qualquer escravidão e que o povo conquiste liberdade, mas não liberdade abstrata e formal como a ocorrida no Brasil com a Lei Áurea de 13 de maio de 1888, que despediu de mãos vazias o povo negro escravizado, somente após 38 anos da criação do ‘cativeiro da terra”[2] por meio da Lei de Terras, Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850.

Quando um de seus irmãos, hebreu ou hebreia, for vendido a você como escravo, ele servirá a você no máximo seis anos” (Dt 15,12). Nem um dia a mais. Para não se repetir a escravização em novos moldes, o Deuteronômio alerta: “Não despeça seu irmão ou irmã escravizado/a de mãos vazias: carregue os ombros dele com o produto do rebanho de você, da sua colheita e de cereais e de uva” (Dt 15,13). Com essa prescrição se denunciam as propostas de liberdade abstrata e se defende a conquista de condições objetivas que garantam a liberdade e emancipação efetivas. No caso, os frutos da mãe terra, da irmã água e do trabalho humano devem ser destinados a quem ‘sua’ a camisa para produzir. Nesse ponto, o livro do Deuteronômio está em sintonia com o que prescreve a utopia de Outro Mundo Possível e Necessário, cantado pelos discípulas e discípulos do grande profeta Isaías: “Construirão casas e nelas habitarão, plantarão vinhas e comerão seus frutos. Ninguém construirá para outro morar, ninguém plantará para outro comer” (Is 65,21-22). Isto é, um mundo transfigurado, sem exploradores e sem explorados, sem escravocratas e sem escravizados, com todas as cercas rompidas. Um mundo com todos/as tendo as condições objetivas necessárias para viver e conviver com dignidade, sendo livres, de fato. O livro do Deuteronômio não defende apenas a concessão de paliativos, mas a partilha do que se produz na pecuária, na agricultura e na produção voltada para exportação – caso do vinho, inclusive. Orienta a dar o necessário, de acordo com a bênção recebida de Javé. A Bênção de Deus não pode ser privatizada, pois é para todas e todos, para todos os seres vivos, inclusive.

O livro do Deuteronômio insiste em que: recordar é preciso. Se lido a partir das/os injustiçadas/os, a História nos inspira. “Não esqueçam que vocês foram escravizados no Egito e que Javé seu Deus libertou vocês” (Dt 5,15; 15,15; 16,12; 24,18. 22 etc.). Este refrão repete-se mais de 100 vezes no Deuteronômio. Recordar as opressões do passado e as lutas de resistência popular é imprescindível para seguirmos com as lutas libertárias. “Recordar para não repetir”, alerta a filósofa Hannah Arendt ao analisar o totalitarismo político nazista.

Entretanto, a experiência bíblica deuteronomística demonstra que não adianta forçar a libertação das pessoas escravizadas, se elas não se reconhecerem como escravizadas e não se despertarem para o valor de se lutar por libertação. Enquanto a opressão estiver assimilada – “Não quero ir embora...” (Dt 15,16), ou segundo a linguagem de Paulo Freire, enquanto o oprimido estiver sendo ‘hóspede do opressor’, estará trancada a porta que pode dar acesso a um processo de libertação. Paulo Freire e a experiência de quem luta por justiça social nos dizem que jamais os opressores libertam os oprimidos. Os oprimidos, isoladamente, também não conseguem se libertar. Em comunhão, lutando juntos, os oprimidos podem se libertar e libertar também os opressores, que estão amarrados nas estruturas de poder opressor. Sendo lideranças populares e religiosas no meio do povo, os Levitas, sem possuir terra, desenvolviam a missão de acordar a memória adormecida do povo, cutucar para manter viva a fina flor da vivência que assegurava fidelidade à Aliança de Javé com seu povo oprimido. “O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”, analisa Simone de Beauvoir no livro O Segundo Sexo.[3]

Encontramos características libertadoras do amor integral a Deus e ao próximo no livro do Deuteronômio, que pede de nós amor integral a Javé, nosso Deus solidário e libertador, não apenas um amor caritativo. Após repudiar outras imagens de Deus – idolatria – o/a autor/a Deuteronomista aponta o rumo: “Ame a Javé seu Deus com todo o seu coração, com toda sua alma e com todas as forças” (Dt 6,5). Como amar com todo o coração, com toda a alma e com todas as forças? O primeiro mandamento exige um total e absoluto amor a Deus, como dedicação que abarca todo o âmbito da pessoa: os três constitutivos pessoais que são mencionados: “coração”, “alma”, “forças” expressam a totalidade indivisa das várias dimensões da pessoa humana. O livro do Levítico exorta: “Ame o seu próximo como a si mesmo” (Lv 19,18). O segundo mandamento[4], que provém de outra codificação legislativa, como é o chamado “Código de Santidade” (Lv 17-26), inculca o amor ao próximo, isto é, ao próprio compatriota, ao membro da mesma etnia, ao israelita[5]. “Amar a Deus” é uma das constantes características de todo o corpo deuteronomístico e está intimamente interligada com “amar o próximo”. Não existe um integral amor a Deus se falta amor integral ao próximo. O caminho que leva a Deus passa necessariamente pelo próximo, a partir do próximo mais violentado. Dedicar-se a Deus e ao próximo são duas faces da mesma medalha e é significativo que Dt 6,5 e Lv 19,18 estejam em Lc 10,27 como uma “leitura” da Lei que revela a íntima ligação entre “amar a Deus e amar o próximo”: “O que está escrito na Lei? Como tu lês?” (Lc 10,26), interpela Jesus Cristo ao escriba preocupado em conquistar a vida eterna.

A lei da solidariedade com os pobres ocupa em Deuteronômio um lugar especial (Cf. Dt 14,28-29; 15,1-18; 23,25-26). O próprio rei deve viver como um pobre (Cf. Dt 17,17b). Em Dt 5,6-21 temos uma releitura e atualização do Decálogo que está em Ex 20,1-17, núcleo da Lei libertadora, do Sinai, da época em que o povo marchava para conquistar a terra prometida. Primeiro, o Decálogo, que é a Constituição do povo de Deus, é dirigido a todo o povo, a Israel, e não apenas às pessoas individualizadas. Logo, reduzir o Decálogo a Dez Mandamentos direcionando-os apenas às pessoas individualizadas é privatizar o sentido do Decálogo que proíbe não apenas que pessoas matem outras pessoas ou roubos individuais. Muito pelo contrário: toda a sociedade, na sua forma de organização social, não pode matar, nem roubar e nem adulterar. O agronegócio, por exemplo, com uso indiscriminado de agrotóxicos na agricultura mecanizada, adultera a produção de alimentos, o que tem causado uma epidemia de câncer. O Deuteronômio enfatiza que a Aliança do Deus libertador com o povo escravizado não foi feita só com os antepassados, mas também conosco (Dt 5,2-3). Isto é, o Deus libertador não estava apenas lá no passado com nossos antepassados escravizados no Egito, mas está caminhando conosco atualmente. Nós também estamos sendo escravizados até os tempos de hoje e, segundo o Deuteronômio, Javé cultiva a Aliança de compromisso libertador com o povo escravizado de hoje, também.

 O livro de Deuteronômio analisa que a idolatria é raiz também das explorações e violências que se abatem sobre o povo. Por isso, Deus é apresentado de forma enfática como “Javé seu Deus, que o libertou da terra do Egito, da casa da escravidão”. Com veemência e grande ênfase, todo e qualquer tipo de idolatria é rechaçada (Dt 5,7-10). Seguir outros deuses não é apenas uma questão ‘teórica’ irrelevante, mas tem incidência direta sobre a convivência social. Experimentamos isso nas lutas por direitos – luta pela terra, luta pela moradia, luta para frear as mineradoras que devastam, luta pela superação do racismo, luta contra a homofobia, luta pela superação da violência contra as mulheres etc. Isso porque, para se reforçar as lutas sociais por direitos, é preciso coesão, união e unidade na luta coletiva. 

Belo Horizonte, MG, 15/9/2020.

 Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Frei Carlos Mesters fala sobre o Livro do Deuteronômio em entrevista a frei Gilvander - 15/01/2020

2 - Cartilha do mês da Bíblia de 2020 do CEBI/MG: livro do Deuteronômio. Por Julieta Amaral - 18/6/2020

3 - Livro do Deuteronômio, Levitas Resgatando ideais do Êxodo em plena Monarquia - CEBI/MG - Parte I

4 - Livro do Deuteronômio, a pregação dos Levitas. Por Frei Gilvander, Julieta e Irmã Marysa - Parte II

5 - Livro do Deuteronômio - chaves de leitura - Mês da Bíblia de 2020 - por Rafael, do CEBI. Vídeo 1

5 - Deuteronômio/Mês da Bíblia 2020/Chaves de Leitura por Rafael Rodrigues, do CEBI/Vídeo 2 - 02/2/2020

6 - Livro do Deuteronômio - Mês da Bíblia/2020: Pistas para uma leitura sensata e libertadora, por Rafael Rodrigues - Entrevista completa

7 - Live - CEBI-MG lança Mês da Bíblia de 2020 sobre o livro de DEUTERONÔMIO, UM GRITO POR JUSTIÇA – 31/8/2020

8 - Live - Deuteronômio, um grito por justiça: resgate de ideais do Êxodo em tempos de monarquia

9 - Deuteronômio 1 parte (Por Sandro Galazzi)

10 - Deuteronômio 2 a redação profética (Por Sandro Galazzi)

11 - Deuteronômio 3 a redação de Josias (Por Sandro Galazzi)

12 - Deuteronômio 4 a história deuteronomista (Por Sandro Galazzi)



 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

[2] MARTINS, José de Souza. O Cativeiro da Terra. 9ª edição. São Paulo: Contexto, 2013. Livro de leitura indispensável.

 

[3] BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo Vol 2: A Experiência Vivida, Difusão Europeia do Livro, 1967.

[4] Presente também em Gl 5,14; Rm 13,9 e Tg 2,8 como uma síntese da Lei de Moisés e dos profetas.

[5] J. A. Fitzmyer, El  evangelio según Lucas, 3 vol. Madrid: Ed. Cristiandad, 1987, p. 268.

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

DEUTERONÔMIO: “Constituição de 1988” para o povo? Por Gilvander

 DEUTERONÔMIO: “Constituição de 1988” para o povo? Por Gilvander Moreira[1]

 


No Brasil, a Constituição promulgada em 05 de outubro de 1988 pode ser vista como uma espécie de Livro do Deuteronômio na vida do povo brasileiro. Após muita luta social, resgatando a memória das lutas de resistência popular, o povo organizado, na luta, conquistou a inserção de vários princípios e regras na Carta Magna para garantir respeito à dignidade de todas as pessoas, tais como: ‘função social da propriedade’, ‘desapropriação de latifúndios que não cumprem sua função social’; forte ênfase nos direitos sociaisentre os quais estão: ‘o direito à educação, à saúde, à terra, à moradia, ao meio ambiente saudável e equilibrado’; princípios libertadores, ou seja: ‘respeito à dignidade da pessoa humana’, ‘direitos humanos’, ‘liberdade de expressão’, ‘espírito republicano’, ‘direito de manifestação’, ‘liberdade religiosa’; prescrição para se demarcar as terras dos Povos e Comunidades Tradicionais, tais como: ‘indígenas,’ ‘quilombolas’ etc.

Tudo isso está assegurado na Constituição Federal, mas a classe dominante, cotidianamente, mais do que impedir a efetivação desses direitos sociais, os destroem. A história demonstra que só com luta social permanente se conquistam direitos e se impedem retrocessos de direitos conquistados com suor e sangue pela classe trabalhadora. Se o povo se acomoda, vai sendo violentado aos poucos, até ser sacrificado.

O livro do Deuteronômio contém narrativas de um povo comprometido pela ALIANÇA (BeRiT, em hebraico,) com Yahweh, Deus solidário e libertador, que “libertou do Egito o povo escravizado”. O fio condutor do Deuteronômio é um povo que busca, eticamente, colocar em prática o projeto de Aliança firmado entre eles, POVO escravizado por mais de 500 anos sob o imperialismo dos faraós no Egito, e o Deus YAHWEH, acima de tudo, libertador. Para isso, marcham no deserto por cerca de “40 anos”, a fim de conquistar uma “terra onde corre leite e mel” (Dt 26,9), e, no final, ao sopé do Monte Sinai, celebram a projetada Aliança.

Por isso, o livro de Deuteronômio rechaça, com veemência, as práticas que se ancoram em imagens distorcidas de Deus: idolatria. Os redatores e as redatoras do livro de Deuteronômio são tão radicais contra a idolatria e percebem tão bem que os falsos profetas e os falsos pastores são propagandistas da idolatria, que alertam: “Não dê ouvidos a profeta que apresenta sinal ou prodígio. Mesmo que apresente prova, não dê ouvidos!” (Dt 13,2-4). Mais! Falso profeta não pode ser respeitado e nem tolerado: “O falso profeta deverá ser morto.” (Dt 13,6). É claro que não podemos entender esse versículo como uma autorização para pena de morte para os falsos profetas e falsos pastores, mas como um alerta para os estragos humanos e sociais que os mesmos causam no tecido social. O correto e ético é ‘puxar o tapete’ que sustenta esses falsos profetas e pastores, retirando deles todas as armas de morte que usam, com sutilezas, para enganar o povo, ao invés de cuidar desse povo injustiçado.

O texto de Dt 15,12-18, que apresenta um ensino sobre a libertação dos escravos hebreus, retoma e desenvolve a lei que está em Ex 21,2-6; fazendo isso, porém, em linguagem que liberta e evangeliza, e não em linguagem legislativa.

Quando um de seus irmãos, hebreu ou hebreia, for vendido a você como escravo, ele servirá a você durante seis anos. No sétimo ano, você o deixará ir, em liberdade. Contudo, quando você deixar que ele vá em liberdade, não o despeça de mãos vazias: carregue os ombros dele com o produto do rebanho de você, da sua colheita e de cereais e de uva. Dê-lhe de acordo com a bênção que Javé seu Deus tiver concedido a você. Lembre-se que você foi escravo no Egito, e que Javé, seu Deus, resgatou você” (Dt 15,12-15).

O texto evoca um contexto do povo da Bíblia sobrevivendo em tempos de escravidão, sob relações sociais escravocratas, nas quais quem detinha poder econômico e político comprava pessoas como se fossem mercadoria e as escravizava. Vários povos dos tempos bíblicos foram escravizados durante uns 500 anos pelo imperialismo dos faraós no Egito, mas se libertaram por volta de 1200 antes da Era Comum. Após alguns séculos, foram escravizados novamente pelo Império Assírio, depois pelo Império Babilônico e, posteriormente, pelo Império Persa, Grego, Romano e, na sucessão da história, pelos impérios: português, espanhol, inglês, estadunidense, império das transnacionais etc., como assistimos hoje.

Pela narrativa de Dt 15,12-15, os escravos são reconhecidos pelo autor de Deuteronômio como ‘irmãos’ e, surpreendentemente, inclui a perspectiva de gênero (‘hebreu’ ou ‘hebreia’). É inspirador ver no Deuteronômio o reconhecimento da igualdade de dignidade entre homem e mulher. Mesmo que o contexto seja de escravidão, o texto ensina que a escravidão não será “ad aeternum”: será apenas por ‘seis anos’. Ninguém nasce destinado a sobreviver, pela vida inteira, como escravo. Nascemos para a liberdade, mas não para uma liberdade abstrata. Liberdade, sim, mas com condições materiais objetivas capaz de efetivá-la.     

A orientação para descansar no 7º ano, Ano Sabático, é oriunda da mística segundo a qual o Deus criador, após criar todas as criaturas nas ondas da evolução, descansou no 7º dia. Por isso, intui-se que Deus quer que descansemos no 7º dia. Daí decorre a orientação para deixar a mãe terra descansar no 7º ano, em uma perspectiva de agricultura ecológica. E após 49 anos (7 anos x 7 anos), no Ano do Jubileu, deve se fazer uma reorganização geral da sociedade: as terras compradas ou invadidas deverão ser devolvidas aos seus ancestrais, todas as dívidas devem ser perdoadas, as pessoas escravizadas devem ser libertadas e a sociedade deve ser revolucionada, para que todos e todas tenham condições materiais e objetivas de ‘ter vida e liberdade em abundância’.

Cultivando essa mística, o livro de Deuteronômio alerta: “Não escravize ninguém para além de seis anos” (Dt 15,12a.18). “Liberte quem você escravizou, no sétimo ano.” (Dt 15,12b.18). Isso é anunciado de forma enfática, pois se diz em Dt 15,12 e se repete em Dt 15,18 na conclusão da unidade textual. No entanto, muito eloquente é o fato de que o livro de Deuteronômio não prescreve apenas libertação formal, que concede liberdade abstrata, mas que muitas vezes, até aumenta as amarras escravizadoras, como aconteceu no Brasil. Em 1850, 38 anos antes da Abolição formal da escravidão de milhões de negros escravizados, escravizou-se a terra, com a Lei 601, Lei de Terras, ao legislar, afirmando que a única possibilidade de acesso à terra seria por meio de compra. Criou-se, assim, o cativeiro da terra antes de acabar com o cativeiro dos negros escravizados. Procedendo assim, juridicamente se pavimentou a estrada para se criar outro tipo de escravidão sob a égide de liberdade abstrata e formal. Com a abolição formal da escravidão no Brasil, em 13 de maio de 1888, os negros escravizados saíram de mãos vazias, sem jamais ter condições de ter acesso à terra, pois não tinham dinheiro para comprar nem mesmo um sítio. Consequentemente, de escravizados juridicamente se tornaram sem-terra, iniciando o que muitos chamam de escravidão moderna ou contemporânea, na prática, em muitos casos, até mais cruel. Como? Nos moldes de intensificação do trabalho por metas de produção, ganho por produção, trabalho intermitente, terceirizado, uberizado ou... sabe-se lá o que mais...

Portanto, relacionando o Livro do Deuteronômio com a Constituição de 1988, reconhecemos a caminhada e a luta do povo como um constante êxodo, em busca de libertação, guiado por um Deus que, sendo Pai-Mãe, atrai, educa, é Deus-Amor, Deus-Libertador!

Belo Horizonte, MG, 09/9/2020.

 Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Frei Carlos Mesters fala sobre o Livro do Deuteronômio em entrevista a frei Gilvander - 15/01/2020

2 - Cartilha do mês da Bíblia de 2020 do CEBI/MG: livro do Deuteronômio. Por Julieta Amaral - 18/6/2020



3 - Livro do Deuteronômio, Levitas Resgatando ideais do Êxodo em plena Monarquia - CEBI/MG - Parte I

4 - Livro do Deuteronômio, a pregação dos Levitas. Por Frei Gilvander, Julieta e Irmã Marysa - Parte II

5 - Livro do Deuteronômio - chaves de leitura - Mês da Bíblia de 2020 - por Rafael, do CEBI. Vídeo 1

5 - Deuteronômio/Mês da Bíblia 2020/Chaves de Leitura por Rafael Rodrigues, do CEBI/Vídeo 2 - 02/2/2020

6 - Livro do Deuteronômio - Mês da Bíblia/2020: Pistas para uma leitura sensata e libertadora, por Rafael Rodrigues - Entrevista completa

7 - Live - CEBI-MG lança Mês da Bíblia de 2020 sobre o livro de DEUTERONÔMIO, UM GRITO POR JUSTIÇA – 31/8/2020

8 - Live - Deuteronômio, um grito por justiça: resgate de ideais do Êxodo em tempos de monarquia



 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

terça-feira, 1 de setembro de 2020

DEUTERONÔMIO: Se há empobrecidos, a Aliança com Deus está rompida. Por Frei Gilvander

DEUTERONÔMIO: Se há empobrecidos, a Aliança com Deus está rompida. Por Frei Gilvander Moreira[1]

 


Há 50 anos, no Brasil, mês de setembro é também Mês da Bíblia na Igreja católica e somos convidados ao estudo de um livro da Bíblia. Em 2020, a reflexão sugerida pela CNBB[2] é sobre o Livro do Deuteronômio. Olhando superficialmente e à primeira vista, o Livro do Deuteronômio[3] parece ser uma “Segunda Lei” como se fosse um código de ética e de costumes. Isso é, justamente, o que sugere a etimologia das palavras (em grego: deutero = segunda, nomos = lei). DEUTERONÔMIO (“Código de Leis de Direitos Humanos”) compreende uma série de ensinamentos, acompanhados de exortações, apelos e advertências da tribo sacerdotal dos Levitas. Tais ensinamentos se referem ao período que abrange desde a conquista da terra prometida – Canaã/Palestina/Israel - até o exílio na Babilônia, em 587 antes da Era Comum. Provavelmente, o livro de Deuteronômio é fruto de inúmeros ensinamentos orais dos Levitas, encarregados por Moisés de guiarem o povo, para que se conservasse fiel à Aliança com Javé, Deus solidário e libertador do povo escravizado. Moisés era considerado por todos como um grande líder do povo escravizado na Caminhada de Libertação do imperialismo dos faraós no Egito. Bem mais tarde essas tradições orais, elaboradas na época tribal, foram registradas por escrito, em documentos redigidos por Escribas da Corte de Josias, já no final da época monárquica, ou seja, dos Reis.  Isso, como já se pode suspeitar, alterou bastante o conteúdo daquelas tradições orais, elaboradas em um tempo em que o povo não tinha reis e tomava decisões a partir dos costumes dos clãs e tribos.  Hoje, ainda há no Livro vestígios de ensinamentos da época tribal, mas sempre envolvidos pelo pensamento autoritário e centralizador da monarquia.

Na iminência do exílio também para o povo do sul da Palestina, por volta de 587 antes da Era Comum (A.E.C.), bem depois da desintegração do Reino do Norte da Palestina, com o exílio imposto pelo Império Assírio, por volta de 722 A.E.C., foi que aconteceu a redação final do documento. O contexto era de recrudescimento do imperialismo estrangeiro, de superexploração e de desagregação social do povo. A edição final do livro de Deuteronômio pretende apresentar um projeto para construção de uma sociedade justa economicamente e solidária socialmente. Para isso, alerta: “Se vocês não obedecerem a Javé seu Deus, não colocando em prática todos os seus mandamentos e estatutos que eu hoje lhes ordeno, virão sobre vocês...” (Dt 28,15): exílio na própria terra, sofrimento, adoecimento, violência social, reproduzindo a morte. E, como consequência, haverá “terra queimada onde não se semeia e nada brota nem cresce” (Dt 29,21), ou seja, desertificação e anulação das condições materiais e objetivas de vida. Essa advertência me faz recordar Mozart, das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), do noroeste de Minas Gerais, que me disse quando eu era criança e nunca esqueci: “Há muitas injustiças no mundo porque as pessoas não colocam em prática a lei de Deus, mas seguem a lei dos homens que mandam politicamente e economicamente”.

No livro do Deuteronômio há uma mistura de tempos nos textos. Com 34 capítulos, o livro do Deuteronômio, o quinto da Bíblia, não é um livro de história e nem é crônica jornalística, escrita no calor dos acontecimentos. Escrito provavelmente uns 600 anos após ocorrer a parte mais antiga dos acontecimentos, o livro do Deuteronômio é uma “teologia da história”, ou seja, um esforço de entender a história do ponto de vista de Deus que faz Opção pelos escravizados e injustiçados. Este livro constitui, por si só, a Fonte Deuteronomista que, junto com as Fontes Javista, Eloísta e Sacerdotal, são responsáveis pela formação do PENTATEUCO, o conjunto dos cinco primeiros livros da Bíblia Judaica e Cristã: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.

Em um olhar panorâmico, à primeira vista, o livro do Deuteronômio constitui-se de discursos atribuídos a Moisés, discursos de despedida, uma espécie de testamento espiritual. Um dos motivos que, provavelmente, levaram os autores e as autoras do livro do Deuteronômio a colocar as narrativas na boca de Moisés, que era reconhecido como um grande profeta, líder libertador, pode ter sido a intenção de passar a ideia de que os textos eram de sua autoria, visando dar credibilidade aos mesmos. Porém, ao ler atentamente os textos de Deuteronômio, olhando nas linhas e nas entrelinhas, ‘no dito e no não dito’, nas ambiguidades e contradições ao longo das narrativas, percebemos que, no texto de Deuteronômio se misturam textos e contextos de várias épocas e, como uma corda de três fios, se faz referências a três tempos:

a) tempo em que os fatos aconteceram;

b) tempo em que os acontecimentos foram transmitidos oralmente;

c) tempo em que foram fixados por escrito, com revisões, atualizações etc.

Ao ler os textos de Deuteronômio, podemos pressupor que estaremos lidando com experiências de vida e de Aliança de um povo escravizado com Javé, experiências estas que envolvem um período de mais de 600 anos, desde o início da conquista da Terra Prometida - Canaã/Palestina, por volta de 1200 Antes da Era Comum, até o ano do Exílio na Babilônia, por volta de 587 antes da Era Comum (A.E.C.).

Para compreendermos de forma sensata e libertadora os textos do Deuteronômio, é necessário pressupor que o livro envolve várias etapas e um longo processo de gestação, nascimento e de desenvolvimento. O povo em marcha de libertação das opressões, que buscava seguir a Aliança com Javé, tinha sido um povo escravizado, mas cheio de fé em um Deus libertador e, por isso mesmo, povo que resiste e luta pela superação de toda e qualquer escravidão.

Em uma primeira etapa, a sabedoria do povo se torna cultura, bons valores. Por exemplo, a nossa experiência camponesa de partilhar com a vizinhança um pedacinho do porco matado por nossa família, ajuda-nos a imaginar a partilha e a solidariedade que foi experimentada na época da vida nos clãs, sob o regime do tribalismo. Ser solidário/a era um valor a ser posto em prática e também era uma necessidade de sobrevivência dos grupos minoritários, em contexto de grandes opressões. Essa prática de solidariedade entre as famílias e comunidades ou clãs, com o passar do tempo, começou a se desintegrar. Vírus do individualismo e sede de acumulação começaram a seduzir as pessoas. Nesse momento, surgiu a necessidade de se escrever tais tradições, com o objetivo de tentar resgatar as memórias libertadoras. Quando começaram a aparecer pedintes, estrangeiros, viúvas e órfãos desamparados, era sinal de que a Aliança com Javé estava sendo rompida.

Em uma segunda etapa, criam-se leis para não haver pobres. Por exemplo, a utopia sonhada e defendida pelos autores e autoras do livro do Deuteronômio brada: “Que não haja pobres no meio de vocês” (Dt 15,4). Ao acordar a memória, percebiam que ‘lá atrás ninguém estava sem-terra’. Para resgatar a equidade nas relações sociais cria-se a lei do Ano Sabático que prescreve: ‘a cada sete anos, a terra deve descansar’. E após sete vezes sete anos, ou seja, 49 anos, no ano seguinte – 50º ano – se faça um jubileu, ano da graça de Javé, que consiste em propor uma reorganização geral da sociedade (Cf. Lv 25,8-55). As terras compradas devem ser devolvidas aos seus antigos donos/ancestrais (Cf. Lv 25,28), porque “a terra pertence a Deus” (Lv 25,23). Todas as pessoas escravizadas deverão ser libertadas (Lv 25,41). Todas as dívidas devem ser perdoadas. “Ninguém explore seu irmão” (Lv 25,17). Declare-se um perdão geral.

Esse era o espírito do jubileu prescrito em Levítico 25, e retomado em Deuteronômio, por ter sido, provavelmente, vivenciado, pelo menos em parte, quando o povo vivia em clãs, sob o regime tribal, com razoável igualdade e equidade social.  E, provavelmente, o período da devolução das terras tenha sido mais curto: sete anos e não 50, pois se chamava “Ano Sabático”. Ora o sábado ocorre de sete em sete dias... A centralização do poder pela monarquia a pedido dos donos de bois (latifundiários, comerciantes, generais, juízes e sacerdotes) havia desintegrado essa experiência, que era coluna mestra da aliança de Javé com o povo que tinha sido escravizado no Egito sob o imperialismo dos faraós.

1º 9/2020.

 Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Frei Carlos Mesters fala sobre o Livro do Deuteronômio em entrevista a frei Gilvander - 15/01/2020

2 - Cartilha do mês da Bíblia de 2020 do CEBI/MG: livro do Deuteronômio. Por Julieta Amaral - 18/6/2020

3 - Livro do Deuteronômio, Levitas Resgatando ideais do Êxodo em plena Monarquia - CEBI/MG - Parte I


4 - Livro do Deuteronômio, a pregação dos Levitas. Por Frei Gilvander, Julieta e Irmã Marysa - Parte II

5 - Livro do Deuteronômio - chaves de leitura - Mês da Bíblia de 2020 - por Rafael, do CEBI. Vídeo 1

5 - Deuteronômio/Mês da Bíblia 2020/Chaves de Leitura por Rafael Rodrigues, do CEBI/Vídeo 2 - 02/2/2020

6 - Livro do Deuteronômio - Mês da Bíblia/2020: Pistas para uma leitura sensata e libertadora, por Rafael Rodrigues - Entrevista completa

7 - Live - CEBI-MG lança Mês da Bíblia de 2020 sobre o livro de DEUTERONÔMIO, UM GRITO POR JUSTIÇA – 31/8/2020



 

 



[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

[2] Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.

[3] Título dado ao texto pelos tradutores da Bíblia da língua Hebraica para o Grego, durante o 3º século antes da Era Comum, tradução esta que ficou conhecida como “Septuaginta”, versão dos “Setenta sábios”.

 

 

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Prelazia de São Félix do Araguaia, MT: locomotiva da profecia. Por frei Gilvander

 Prelazia de São Félix do Araguaia, MT: locomotiva da profecia

Por frei Gilvander Moreira[1]



 

Partindo de Belo Horizonte, MG, dia 27 de setembro de 2015, após 27 horas seguidas de viagem de avião, ônibus e automóvel, cheguei a Santa Terezinha, umas das cidadezinhas da Prelazia de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso. Por lá, durante cinco dias vi e ouvi muita coisa que merece ser partilhada em nome da responsabilidade que temos de honrar o imenso legado espiritual, ético, profético e revolucionário que Dom Pedro Casaldáliga nos deixou. Vi com os meus olhos, com a minha cabeça e com o meu coração. Eu já tinha ouvido dizer que a região de São Félix é conhecida como sertão. Vi que é um sertão diferente do mineiro e do nordestino e esta foi uma oportunidade de relembrar que não há sertão, mas sertões e que “os sertanejos são homens fortes”, conforme reconheceu Euclides da Cunha no livro “Os Sertões”.

O estado do Mato Grosso era mato grosso, mas não é mais, porque “está sendo fritado em pouca gordura”: o estado mato-grossense está sendo despelado, desmatado impiedosamente. Lá, toda a cobertura vegetal que havia sobre a terra, cobrindo-a como a pele, está sendo arrancada com desmatamentos para dar lugar à pecuária e depois para as monoculturas da soja e do milho. O agronegócio vai sendo imposto e com ele resta um rastro de devastação. Nas estradas de chão batido, muitas carretas transitam levando commodities (grãos para exportação e para acumular capital) produzidas em solo que vai se tornando cada vez mais pobre. Nas veredas e no cerrado, ainda existem, é possível ver a presença de muitas árvores de caju, pequi e buriti. “Onde a gente vê reserva florestal é terra indígena. O que não é terra indígena já foi tudo derrubado e transformado em pastagens e depois em lavoura de monocultura. Não sei para que índio precisa de tanta terra,” comentava uma gaúcha no ônibus da empresa Xavante, empresa com nome indígena, mas de propriedade de brancos enriquecidos.

Meu sangue ferveu de ira ao ouvir um trabalhador negro, no pequeníssimo aeroporto da pequena cidade de Confresa, dizer: “Porcaria de índio.” Ouvi falar que muitos fazendeiros dizem: “Índio bom é índio morto” e que um grande político – coronel moderno - foi aplaudido em praça pública ao dizer: “Índio não precisa de terra, pois não trabalha”. Os mesmos que apunhalam os povos indígenas, a começar pela linguagem preconceituosa, grilando suas terras, são os mesmos que já gritaram muitas vezes: “Fora, dom Pedro Casaldáliga!” “Fora, Prelazia de São Félix!” Um fazendeiro perguntou a um padre recém-chegado para ser missionário na Prelazia: “O senhor é contra ou a favor do progresso?” E ameaçou: “Se for um dos nossos, será bem-vindo! Se não ...!”

Meu coração se alegrou ao ouvir: “Se não fosse a presença e o apoio firme de dom Pedro Casaldáliga, das Irmãzinhas de Jesus e de todos/as os/as agentes de pastoral da Prelazia de São Félix, os povos indígenas Tapirapé, Xavante, Carajá e outros não teriam reconquistado parte dos seus territórios.” Vi um grande grupo de indígenas delimitando seu território reconquistado, fazendo cerca na divisa com um megalatifúndio. À beira de uma estrada federal ainda sem asfalto e toda esburacada, vi ruínas de um lugarejo que a Força Nacional e o Exército puderam, durante o governo de Dilma Rousseff, devolver o território aos povos indígenas. “Vieram e disseram para as famílias que quem aceitasse sair espontaneamente das terras indígenas ganharia um lote de terra em outra localidade próxima, mas quem não saísse seria expulso após seis meses. Assim aconteceu,” me informou um agente de pastoral.

Passei ao lado da Fazenda Rio Preto com uma grande fachada e segurança privada na entrada. “Essa fazenda tem 100 mil hectares. O dono cria 200 mil bois aí”, me informaram. Ao lado dessa fazenda está o território do povo indígena Xavante, com 160 mil hectares para 1400 indígenas. A Força Nacional e o Exército estiveram na área em 2012 para desentrusar fazendeiros que grilavam terras indígenas e derrubaram muitas casas de “brancos” que foram construídas na área indígena. Muitas pessoas dizem que os indígenas têm muita terra, mas não acham que 100 mil hectares para um só “branco” seja injustiça agrária e social.

O agronegócio avança como um tsunami, mas deixa atrás de si um rastro de destruição: áreas devastadas, nascentes exterminadas, terra, ar e águas envenenadas pelo uso indiscriminado de agrotóxicos e trabalhadores submetidos a situações análogas à de escravidão, isso para citar apenas alguns dos prejuízos causados pelo agronegócio. Um missionário me informou: “Após as primeiras chuvas e enchentes, todo ano aqui na região do rio Araguaia, acontece uma grande mortandade de peixes, porque a enorme quantidade de agrotóxicos pulverizados nas lavouras vai parar nos cursos d’água. Morre muito peixe e o número de pessoas doentes cresce assustadoramente.” A UTI mais próxima está em Cuiabá, MT, ou em Goiânia, GO, distante de 1000 a 1500 Km. Para se tentar salvar alguém em situação grave só por meio de taxi aéreo, que custa cerca de 15 mil reais.

Acima das coisas que vi com meus olhos, minha cabeça e meu coração, vi a eloquência do testemunho espiritual profético de dom Pedro Casaldáliga, que segue irradiando espiritualidade profética, agora partilhando vida em plenitude, após os últimos anos em que esteve sentado em uma cadeira, ou deitado em uma cama, na companhia do mal de Parkinson, de três bons samaritanos – padres agostinianos – e de três anjos/as que o acompanhavam diariamente. Vi a paixão, a simplicidade, a humildade e a profecia presente em toda a equipe de agentes de pastoral da Prelazia de São Félix: leigos/as, freiras, freis, padres e o bispo dom Adriano Ciocca, todos/as missionários/as, de mãos dadas tocando em frente o legado espiritual e profético da Prelazia e abraçando os novos/velhos e grandes desafios da hora presente.  Obrigado a todos/as que me acolheram na fraternidade e por tudo o que me ensinaram em poucos dias de intensa convivência em retiro na Casa de Pastoral de Santa Terezinha, às margens do rio Araguaia, onde tive a oportunidade de tomar um banho e contemplar o irmão boto e toda a sacralidade do ambiente. Não foi por acaso  “Trovas ao Cristo Libertador”, escrito por dom Pedro Casaldáliga (e musicado por Cirineu Kuhn), naquele lugar sagrado, da fé no Deus da vida, da espiritualidade libertadora, da luta e da esperança ativa germina, brota e floresce ressurreição!

 

"Trovas ao Cristo Libertador" 
Dom Pedro Casaldáliga

Olhar ressuscitado, todo o teu Corpo
acompanhando a marcha lenta do povo.

Todo Tu debruçado, como um caminho,
traçando em tua Carne nosso destino.
No azul do Araguaia os roxos medos,
no sol de tua glória nossos direitos.
Sangue vivo no verde das índias matas,
faixas gritando viva a Esperança!

Procissão de oprimidos, rezando lutas,
e Tu, Círio de Páscoa, flor de aleluias.
Páscoa nossa imolado, em Ti enxertamos,
como Tu perseguidos, por Ti triunfamos.
Libertador vencido, vencendo tudo,
companheiro dos pobres, donos do mundo.

Guerrilheiro do Reino, maior guerrilha,
Tua cruz empunhamos em prol da vida.
Nossos mortos retornam, com nossos passos,
em teu Corpo vivente ressuscitados.
Em Ti, cabeça nossa, Libertador,
libertos, libertando, erguemo-nos.

 

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Sigamos de cabeça erguida, firmes na luta! Viva a Esperança![2]

 

25/8/2020.

 Obs.: Os vídeos nos links e o áudio, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Poema "Trovas ao Cristo Libertador", Dom Pedro Casaldáliga, hino da Prelazia de São Félix do Araguaia.

http://gilvander.org.br/site/poema-trovas-ao-cristo-libertador-de-dom-pedro-casaldaliga-musicado-por-cirineu-kuhn-hino-da-prelazia-sao-felix-do-araguaia/

2 - PEDRO, PROFETA DA ESPERANÇA - Documentário da Verbo Filmes sobre Dom Pedro Casaldáliga - 08/8/2020


3 - Homenagens a Dom Pedro Casaldáliga: místico = Profeta, Pastor e Poeta -missa, Batatais/SP, 09/8/2020


4 - "Dom Pedro Casaldáliga vive para sempre em nós" (Padre Júlio Lancellotti) - Pai Nosso dos Mártires.


5 - Dom Pedro Casaldáliga, o Profeta que viveu e lutou entre nós, faz sua Páscoa definitiva - 08/8/2020


6 - Missão de Dom Pedro Casaldáliga em Documentário da Verbo Filmes – 2011: Espiritualidade libertadora


7 - DOM PEDRO CASALDÁLIGA - O PROFETA QUE ESCREVIA POESIAS | Marcelo Barros


8 - Dom Pedro Casaldáliga




[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; natural de Rio Paranaíba, MG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutor em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT/MG (Comissão Pastoral da Terra), do CEBI/MG (Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos), do SAB (Serviço de Animação Bíblica) e de Movimentos Sociais de luta por terra e moradia; e-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br  – www.freigilvander.blogspot.com.br  - www.twitter.com/gilvanderluis  - Facebook: Gilvander Moreira

 

[2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.