terça-feira, 14 de abril de 2020

Salvar vidas agora, antes que seja tarde. Por Frei Gilvander

Salvar vidas agora, antes que seja tarde
Por Gilvander Moreira[1]



O balanço do Ministério da Saúde do dia 14 de abril de 2020 sobre a COVID-19 no Brasil apontou que o país agora tem mais de 25 mil casos confirmados da doença, mais de 1.500 mortes – 204 mortos apenas no dia de hoje -, sendo 26% dos mortos fora do grupo de risco, 25% com idade abaixo de 60 anos e, pior, com taxa de letalidade bem maior do que a média registrada em outros países. Importante recordar que o número de mortos e de pessoas com a COVID-19 no Brasil deve ser muito maior do que os dados oficiais. A Organização Mundial de Saúde (OMS) alertou que ainda não há comprovação científica sobre se ficará imunizado quem contraiu o novo coronavírus e sobreviveu. Ademais, no Brasil, a falta de testes para constatar se as pessoas estão com a doença COVID-19 é criminosa.
Considerando que o crescimento do contágio comunitário pelo novo coronavírus acontece, não apenas em progressão aritmética (1, 2, 4, 6, 8, 10 ...), mas em progressão geométrica (1, 2, 4, 8, 16, 32, 64, 128, 256, 512, 1024 ...) ou seja, de forma exponencial, se quisermos salvar vidas, temos que agir rápido, antes que aumente muito o número de pessoas infectadas. Essa ação tem componentes individuais que dependem da nossa adesão e consiste em colocar em prática todas as medidas que evitam o contágio: ficar em casa, em quarentena, lavar as mãos com frequência, usar máscara quando tiver que sair de casa, e também componentes coletivos que, infelizmente, dependem dos poderes públicos nos vários níveis para sua implementação. Se o contágio não for barrado logo no início, se for disseminado, será quase impossível impedir que todas as pessoas sejam infectadas e milhares de nossos irmãos e irmãs perderão a vida, momento em que a espada de dor transpassará o coração de milhões de brasileiros/as.
O Brasil é o país que menos tem aplicado testes para detectar a presença do COVI-19, o que equivale a estarmos no meio de uma pandemia, sem avistar qualquer luz no fim do túnel. Estamos no escuro.  O desgoverno brasileiro está lavando as mãos, como Pilatos, e entrará para a história como cúmplice da morte de milhares de pessoas. O Brasil testa apenas 296 pessoas por milhão; os Estados Unidos testam mais de 7 mil por milhão e, a Alemanha, 15 mil pessoas por milhão. Parece que nos bastidores o Ministro da Saúde e o antipresidente estão combinados para enganar o povo. Mandetta diz para se fazer ‘isolamento social’ – isolamento físico, sim; social, não! - e o antipresidente desdenha das orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Será essa tática para no futuro o desgoverno federal tirar o corpo fora das responsabilidades sobre os milhares de vidas que serão ceifadas? O Ministro da Saúde se reduz a ser um conselheiro do povo, a ficar orientando: ‘Fique em casa, senão no futuro vocês se arrependerão.’ Caso ele fosse  sério e responsável, estaria anunciando providências para construir estruturas e equipamentos necessários, com pessoal capaz, para salvaguardar todas as pessoas em caso de doença. Cadê o cancelamento da PEC[2] 95 que cortou por 20 anos os investimentos em saúde? Cadê a ampliação do SUS? Cadê pelo menos 50 milhões de testes para pelo menos 25% da população? Cadê a produção e compra de respiradores artificiais em número necessário para não deixar os hospitais entrarem em colapso?  A falta de respiradores é um dos tendões de Aquiles no enfrentamento da pandemia. Cadê compromisso do desgoverno federal com a distribuição de recursos para sustentar todas as pessoas em tempo de pandemia? Só R$600,00 é migalha e, ainda com o efeito colateral de causar aglomeração nas filas em agências da CEF[3] e da Receita Federal para a atualização de CPFs. Cadê aprovação no Congresso Nacional de medidas para obrigar os banqueiros a bancar o custo da pandemia? Cadê a paralisação no pagamento de juros e amortização da dívida pública que está sugando mais de 38% do orçamento do Brasil?
O antipresidente brasileiro, que me nego a citar o nome, lança sempre uma cortina de fumaça como uma tática para ocultar as piores ações ou omissões do seu desgoverno, pois coloca parte da imprensa e do povo para ficar discutindo idiotices intermináveis e, pior, com isso não se discutem questões centrais e imprescindíveis tais como: repasse de mais de 38% do orçamento nacional para pagar juros e amortizações da dívida pública, a devastação ambiental, o envenenamento dos alimentos pelo uso indiscriminado de agrotóxicos, a latifundiarização do país, a desigualdade social crescente e absurda, a falta de moradia adequada para milhões de brasileiros, o racismo, a homofobia, o feminicídio etc. A jornalista Eliane Brum desmascara esta tática macabra do antipresidente: “Cada vez que se comporta como um maníaco, faz figuras – da política profissional - que até ontem causariam arrepios despontarem como estadistas.”
Grande parte dos milhares de mortos pela pandemia do novo coronavírus terão no seu atestado de óbito “causa mortis: pneumonia ...”, um número menor “causa mortis: COVID-19 por coronavírus”, mas, na realidade, deveria ter “causa mortis: sucateamento e aniquilamento do SUS pela PEC-95, 38% do orçamento do país sequestrado para pagar juros e amortização da famigerada dívida pública, ausência de políticas públicas que garantam acesso à terra, a moradia adequada e ao saneamento básico para todos/as.”
E se os governos de outros países do mundo não tivessem, mesmo com atraso, tomado as medidas orientadas pela OMS para enfrentar a pandemia do novo coronavírus? Morreriam quantos por cento da população mundial, que é 7,7 bilhões de pessoas? Os governos não estão se vergando à implementação de medidas para barrar ou pelo menos diminuir o contágio comunitário do novo coronavírus porque são defensores da vida, mas porque se a maioria dos trabalhadores morrerem, não terão mão de obra barata para trabalhar e produzir para eles.
Bruno Latour assim define a lição posta pelo novo coronavírus: “A primeira lição do coronavírus é também a mais espantosa. De fato, ficou provado que é possível, em questão de semanas, suspender, em todo o mundo e ao mesmo tempo, um sistema econômico que até agora nos diziam ser impossível desacelerar ou redirecionar. A todos os argumentos apresentados pelos ecologistas sobre a necessidade de alterarmos nosso modo de vida, sempre se opunha o argumento da força irreversível do ‘trem do progresso’, que nada era capaz de tirar dos trilhos, ‘em virtude’, dizia-se, da ‘globalização’”[4].
Como crescer infinitamente em um planeta finito? Como é possível tornar sustentável o que, em sua estrutura, é insustentável? Os arautos do capitalismo estão mudos diante dessas perguntas, não têm argumentos sensatos. É óbvio que enquanto houver capitalismo, haverá novos colonialismos, a reprodução do patriarcado e, pior, estaremos correndo, em meio à barbárie, rumo à extinção da espécie humana, pois estará sendo construída a escandalosa concentração de riqueza e poder, uma extrema desigualdade social, a destruição das condições objetivas de vida no planeta Terra e a fatal e iminente catástrofe ecológica final. 
A humanidade encontra-se em uma encruzilhada decisiva, provavelmente a última: ou mudamos nossa forma de nos relacionar com a natureza e entre nós desenvolvendo plenamente nossa humanidade, agindo com base na solidariedade e na preservação da vida em todas as suas formas ou seremos extintos do planeta Terra. Como um grande ser vivo, Gaia, o planeta Terra está submetido a queimaduras muito graves. O cerrado, a caatinga, a mata atlântica, o pantanal, a Amazônia e os pampas são os biomas brasileiros que constituem a pele da mãe Terra, mas, covardemente, estão sendo devastados impiedosamente.
Eliane Brum recorda uma estratégia básica da elite dominante: “Conceder um pouco para garantir que nada mude no essencial é um truque antigo. [...] O pior que pode nos acontecer depois da pandemia será justamente voltar à “normalidade[5]. Se voltarmos à normalidade anormal, criada para manter os interesses do capital, “o mundo pós-coronavírus será ainda mais brutal e o colapso climático se aprofundará”, nos alerta Brum. Noam Chomsky nos dá uma dica vital: “Para aqueles preocupados em reconstruir uma sociedade viável dos destroços que restarão da crise em andamento, é bom atender ao chamado de Vijay Prashad: "Não voltaremos à normalidade, porque o problema era a normalidade"[6]. Foi essa ‘normalidade do caos’ que criou as condições para que o novo coronavírus se alastrasse por todo o planeta.
Não, senhores poderosos, não estamos todos no mesmo barco. A maioria da população é formada pelos/as empobrecidos/as e estes/as estão fora do barco, em meio à tempestade. Essa parcela da população que é mais vulnerável não tem condições de manter o isolamento físico e será exposta a essa gravíssima doença: COVID-19. A desobediência civil é e será cada vez mais um instrumento necessário capaz de desarmar a engrenagem de morte em andamento e reconstruir uma sociedade justa economicamente, solidária socialmente, plural culturalmente, sustentável ecologicamente, sem machismo, sem racismo, com vida e liberdade para todos/as[7].
14/4/2020

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 - Coronavírus: como vencer o capitalismo de desastre?



2 - CORONAVÍRUS, CLIMA E CAPITAL: a irracionalidade destrutiva do capitalismo



3 - PANDEMIA: ESTE SERÁ O FIM DO CAPITALISMO?!!!




[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Proposta de Emenda à Constituição aprovada no Congresso Nacional e sancionada pelo presidente.
[3] Caixa Econômica Federal.
[4] Cf. Texto citado por Eliane Brum no artigo “O futuro pós-coronavírus já está em disputa”, para El País, republicado em https://racismoambiental.net.br/2020/04/08/o-futuro-pos-coronavirus-ja-esta-em-disputa-por-eliane-brum/
[5] Cf. Eliane Brum no artigo “O futuro pós-coronavírus já está em disputa”, em El País, republicado também em https://racismoambiental.net.br/2020/04/08/o-futuro-pos-coronavirus-ja-esta-em-disputa-por-eliane-brum/

[7] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.


sexta-feira, 10 de abril de 2020

Espiritualidade da Semana Santa: profecia, lavar os pés uns dos outros, doar-se e cultivar utopias libertárias. Por frei Gilvander


Espiritualidade da Semana Santa: profecia, lavar os pés uns dos outros, doar-se e cultivar utopias libertárias
Por Gilvander Moreira[1]

Foto: depositphotos

“... morar no interior do meu interior para entender ... aonde Deus possa me ouvir ...” (Vander Lee).

Toda semana é santa, sagrada, assim como todos os seres vivos, entre os quais estamos nós, os humanos. Sagrada também é toda a natureza com toda a biodiversidade – flora e fauna -, todos os biomas (Cerrado, Caatinga, Mata Atlântica, Amazônia, Pantanal e Pampas). Entretanto, para as pessoas cristãs a Semana Santa, que conclui o tempo litúrgico da Quaresma, é santa com destaque, porque quer propiciar um processo de conversão e de aprimoramento espiritual. O dia em que celebramos nosso aniversário é um dia especial para nós, pode não ser para outros. Se uma árvore que perde suas raízes, morre. Honrar sempre nossas raízes é vital, ciente que para as raízes continuarem fortes é preciso terra fértil, água boa e cuidado. Por isso, cuidar também da nossa dimensão espiritual é vital. Qual é mesmo a mística e espiritualidade da Semana Santa, especialmente em tempos de pandemia do coronavírus?
No ‘Domingo de Ramos’, celebramos a entrada em Jerusalém de Jesus, montado em um jumentinho (Lc 19,35), com seu movimento popular religioso. Quase dois mil anos atrás, na Palestina, após uma longa marcha da Galileia a Jerusalém (Lc 9,51-19,27), da periferia para a capital, Jesus e seu movimento popular e religioso entram em Jerusalém, de forma clandestina, sutil, sem alarde. Se anunciassem que Jesus e seu movimento entrariam em Jerusalém, a entrada seria proibida pelas forças de repressão do governador Pilatos.  A alegria era grande no coração dos discípulos e discípulas, na sua maioria, camponeses. “Bendito o que vem como rei...” (Lc 19,38). O Evangelho de Mateus nos informa que essas pessoas festejavam gritando: “Hosana ao filho de Davi! Hosana no mais alto do céu!” (Mt 21,9). A palavra ‘hosana’, da língua grega, nos soa como uma exclamação, como se fosse ‘Viva! Viva!’, mas conforme o salmo 118,25 a mesma palavra ‘hosana’ significa “Javé, salva-nos!”  Aqui há um trocadilho entre as palavras Javé, Josué e Jesus, que têm a mesma raiz etimológica ‘libertar/salvar’. Portanto, o sentido da aparente exclamação dos discípulos se dirigindo a Jesus significa “Salva-nos!”. Mais do que exclamação, é um pedido, um clamor dos discípulos e discípulas dirigido ao mestre Jesus. Podemos ler nas entrelinhas: 1 - que não é possível auto-salvação; 2 - é uma denúncia contundente dos falsos ‘salvadores da pátria’: governadores, imperador, sumo-sacerdote ou saduceus.
O povo via em Jesus, pobre, desarmado e servo - anunciado pelo profeta Isaías (Is 42,1; 49,3; 52,13) - outro modelo de liderança e de forma de exercer o poder, não mais como dominação, mas como gerenciamento do bem comum. Quem aplaude Jesus entrando em Jerusalém é o povo, grupo organizado que o segue desde a Galileia. O povão que cinco dias após, na sexta-feira da paixão, gritará “crucifica-o” não é o mesmo povo do “Domingo de Ramos”. Trata-se da massa alienada que sobrevivia em torno do grande negócio que era o templo em Jerusalém. Agem insuflados por fariseus que os estimulavam a gritar tendo Jesus como alvo “crucifica-o”. Logo, a partir desses dois relatos dos evangelhos – a entrada de Jesus em Jerusalém e sua crucificação – não se pode concluir que o povo é como folha seca ao vento, um bando de ‘Maria vai com as outras’.
A entrada de Jesus em Jerusalém incomoda parte dos fariseus que tentam sufocar aquele evangelho: ótima notícia para os pobres, mas péssima notícia para os opressores. Hipocritamente chamam Jesus de mestre, mas querem domesticá-lo, domá-lo. “Manda que teus discípulos se calem.”, impunham os que se julgavam salvos – ‘cidadãos de bem’ - e os mais religiosos. “Manda...!” Dentro do paradigma “mandar-obedecer”, eles são os que mandam. Não sabem dialogar, mas só impor. “Que se calem!”, gritam. Quem anuncia a paz como fruto da justiça testemunha fraternidade e luta por justiça verdadeira, o que incomoda o status quo opressor. Mas Jesus, em alto e bom som, com a autoridade de quem vive o que ensina, profetisa: “Se meus discípulos (profetas) se calarem, as pedras gritarão” (Lc 19,40). Esse alerta do galileu virou refrão de música das Comunidades Eclesiais de Base  (CEBs), assim: “Se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão. Se fecharem uns poucos caminhos, mil trilhas nascerão... O poder tem raízes na areia, o tempo faz cair. União é a rocha que o povo usou pra construir...!”
Portanto, a mística bíblica da celebração de Domingo de Ramos é: não calem os profetas e as profetisas, porque, senão, as pedras gritarão! Surdos e obcecados pelo ídolo capital, poderosos do mundo não ouvem os cientistas que estão falando há muito tempo que a devastação da natureza está levando ao aquecimento global e com isso as mudanças climáticas serão cada vez mais dramáticas fazendo surgir doenças cada vez mais perigosas, entre elas a COVID-19. Feliz quem ouve os verdadeiros profetas e as verdadeiras profetisas.
Na ‘quinta-feira santa’ acontece a celebração do lava-pés (Jo 13,1-20), ocasião na qual mais do que instituir a Eucaristia, Jesus se oferece como servo, aquele que presta um serviço gratuito e libertador. Jamais Jesus iria criar algo para reforçar poder de alguns sobre outros.  Jesus se fez servidor, pegou uma bacia e toalha e lavou os pés de seus discípulos, em uma época em que era instituído pela sociedade imperial escravocrata e patriarcal que escravo devia lavar os pés do seu senhor/patrão, mulher devia lavar os pés do marido e as crianças deviam lavar os pés dos adultos. Jesus revoluciona estas estruturas discriminadoras e ensina, pelo testemunho, que só serve para viver quem vive para servir solidariamente de forma libertadora.
Na ‘sexta-feira santa’ celebramos a Paixão de Jesus Cristo e a Paixão de todas as pessoas que são crucificadas por todos os tipos de opressão – econômica, política, religiosa etc. Atualmente vivemos uma grande sexta-feira da paixão marcada pela superexploração do capital e pela pandemia do coronavírus, causada certamente pelo progresso e desenvolvimento econômico capitalista, sistema que só visa o lucro e o acúmulo de riqueza para poucos à custa de devastar toda a natureza e acabar com as condições de vida sobre nossa Casa Comum, o planeta Terra. Jesus Cristo não foi condenado à pena de morte por Deus, pai de infinito amor. O Deus da vida não é sádico e nem masoquista. Também Jesus não foi morto na cruz simplesmente para nos salvar do inferno no pós-morte. Jesus foi condenado à morte pelos podres poderes de um modelo de economia que sacrifica a classe trabalhadora em nome do lucro e da acumulação de capital para alguns, por um poder político imperial e autoritário que sufocava a participação popular, e por um poder religioso ritualista e fundamentalista que usava a religião para oprimir. Jesus foi crucificado para que ninguém mais fosse crucificado. Logo, Jesus condenado à morte denuncia tudo o que gera morte.
Entretanto, Jesus ressuscitou e, com a experiência da ressurreição de Jesus, as pessoas que o amavam também ressuscitaram, ou seja, se encheram de esperança, de amor e de coragem, para seguir sendo discípulas e discípulos de Jesus Cristo e levando para frente seu projeto de fraternidade entre todos e tudo. Por mais escura que seja a noite ela sempre anuncia uma nova aurora. O sentido da Páscoa não pode ser privatizado por expressões religiosas que desencarnam a fé cristã e amputam a dimensão social da fé. A fé na ressurreição de Jesus Cristo não garante apenas vida após a morte. É preciso não esquecer que a Páscoa Judaica, origem da Páscoa Cristã, diz respeito à libertação dos povos escravizados no Egito pelo imperialismo dos faraós. Por isso, Páscoa envolve reunir os injustiçados, atravessar os “mares vermelhos”, marchar rumo à terra prometida – terra partilhada e democratizada – e, enfrentar os grileiros e especuladores lutando para conquistar um pedaço de chão. A Páscoa cristã atesta que Jesus de Nazaré, mesmo sendo inocente e justo, foi condenado pelos podres poderes à pena de morte, mas ressuscitou. O sonho ensinado e testemunhado por Jesus e seus discípulos e discípulas jamais será sepultado.
Há quase 2.000 anos ecoa uma notícia revolucionária dada em primeira mão por Maria Madalena, “apóstola dos apóstolos”, mulher que cultivava o amor, a solidariedade e lutava contra toda e qualquer injustiça. Irradiando alegria, a partir do túmulo de Jesus de Nazaré, Maria Madalena saiu correndo e anunciando por todos os cantos e recantos: “Jesus está vivo, ressuscitou!” Bateram em ferro frio os chefes dos poderosos da religião, da política e da economia, ao pensar que condenando Jesus de Nazaré à pena de morte, poriam fim no movimento popular e religioso de fraternidade real, testemunhado e ensinado pelo Galileu da periferia da Palestina. Celebrar a Páscoa de Jesus de Nazaré é momento oportuno para revigorar nossa fé no Deus da vida, fé na humanidade, fé nos oprimidos, fé na mãe terra, na irmã água e fé em nós mesmos. É também momento propício para celebrarmos todas as lutas do passado e do presente. Lutas por direitos fundamentais. Quem persevera na luta dos Movimentos Populares conquista direitos, mais cedo ou mais tarde.
A partir do testemunho e da mensagem de Jesus de Nazaré, somos todos convidados a reconhecer o poder da ressurreição instalado no coração das pessoas e de todos os seres vivos. Todos nós pertencemos à ordem da transcendência, em que a grandeza divina se faz nossa herança. Que neste tempo de Páscoa, todos nós renasçamos para a missão que Deus mesmo nos reservou: sermos portadores/as de vida plena.
Celebrar a Páscoa judaica e cristã é cantar e dançar a ciranda da Ressurreição, da vida triunfando sobre a morte. Jesus foi condenado à morte, mas ele ressuscitou. Por isso, o ideal de vida e liberdade para todos/as não morre. Com a ressurreição de Jesus ficou decretado que as utopias jamais morrerão, os sonhos de libertação jamais serão pesadelos, a luta dos oprimidos e injustiçados será sempre vitoriosa (ainda que custe muito suor e sangue). As forças da Vida terão sempre a última palavra. Por mais cruéis que sejam, todas as tiranias, opressões, corrupções, guerras e a pandemia do coronavírus passarão! Sejamos expressão de fraternidade e vida uns para os/as outros/as, mesmo em noite escura! Feliz e sublime páscoa para todos/as![2]

10/4/2020.


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.


quinta-feira, 9 de abril de 2020

Quarentena para salvar vidas - 2a Parte - Frei Gilvander Moreira - Rádio Independente FM 104,9 - Ichu - BA - 07/4/2020

Quarentena para salvar vidas - 2a Parte - Frei Gilvander Moreira - Rádio Independente FM 104,9 - Ichu - BA - 07/4/2020



Eliane Brum, uma das melhores jornalistas do Brasil, no artigo O vírus somos nós (ou uma parte de nós), alerta: “O futuro está em disputa: pode ser Gênesis ou Apocalipse (ou apenas mais da mesma brutalidade)”. Brum aponta o rumo: “A pandemia de coronavírus revelou que somos capazes de fazer mudanças radicais em tempo recorde. A aproximação social com isolamento físico pode nos ensinar que dependemos uns dos outros. E por isso precisamos nos unir em torno de um comum global que proteja a única casa que todos temos. O vírus, também um habitante deste planeta, nos lembrou de algo que tínhamos esquecido: os outros existem.”[2] Ouça o áudio na íntegra e, se gostar, compartilhe. Sugerimos.


*Texto e áudio de frei Gilvander Moreira, da CPT, das CEbs, do CEBi, do SAB e da assessoria de Movimentos Sociais.
Edição de Nádia Oliveira.
*Inscreva-se no You Tube, no Canal Frei Gilvander Luta pela Terra e por Direitos, no link: https://www.youtube.com/user/fgilvander, acione o sininho, receba as notificações de envio de vídeos e assista a diversos vídeos de luta por direitos sociais. Se assistir e gostar, compartilhe. #FreiGilvandernalutapordireitos #PalavrasdeFécomfreiGilvanderMoreira #XXIIIRomariadasÁguasedaTerraMG

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Brasil-Colônia no século XXI em queda livre. Até quando?


Brasil-Colônia no século XXI em queda livre. Até quando?
Por Alenice Baeta[1] e Gilvander Moreira[2]



Artigo publicado na revista Science demonstra que “o desaparecimento da  biodiversidade global é, atualmente, mil vezes mais veloz do que se ele acontecesse naturalmente, sem o impacto do homem. É uma taxa muito maior do que a estimada anteriormente, em 1995, quando estava em cem vezes”[3]. Não é toda e qualquer pessoa que está impactando o planeta Terra, mas o ‘homem capitalista’, um devastador por ser idólatra do mercado e, consequentemente, da acumulação de capital. Com Bolsonaro incentivando, os madeireiros e ruralistas desmatando e queimando a Amazônia, dizimando o cerrado que existia em 14 estados, com agronegócio e monoculturas com irrigação desenfreada, com uso indiscriminado de agrotóxicos e, como consequência, urbanização sempre crescente, os animais do campo estão ficando sem habitat e estão sendo forçados a migrar também para as cidades, o que já está comprovado por várias pesquisas de doutorado. Este cenário nos diz que o progresso e o desenvolvimento econômico capitalista criaram as condições objetivas para o aparecimento do coronavírus e, pior, se não for interrompido esse modelo ecocida e genocida, outras pandemias mais letais surgirão. Necessário se tornou frearmos o consumismo e a produção industrial e econômica do que for supérfluo. À beira da extinção da espécie humana, tornou-se não apenas ético, mas necessário, cultivar estilo de vida simples e austero. “Viver com o mínimo e ter mais liberdade”, nos ensinam os hippies (Artesãos de rua, Malucos BR).
A pandemia do coronavírus, que causa a COVID-19, tirou todas as máscaras dos capitalistas neoliberais, neocolonialistas, melhor dizendo. As políticas neoliberais de privatização e de redução do Estado o fazem “mínimo” para o povo em termos de políticas públicas, mas ‘máximo’ em termos de repressão.  Com a diminuição dos investimentos públicos em saúde, educação, habitação, transporte e outros, com a privatização das empresas estatais e dos serviços públicos, o Estado ficou incapaz de salvar vidas do povo que agora está com uma espada de Dâmocles sobre a cabeça: o coronavírus que já matou em todo o mundo mais de 70 mil pessoas, no Brasil mais de 700. A idolatria do capital e do mercado está se revelando como arma mortífera que mata milhares de pessoas só no Brasil, todos os anos. Por que o governo federal e o congresso nacional não cancelam a Proposta de Emenda Constitucional n. 95 aprovada - a que congelou os investimentos em saúde, educação e assistência social por 20 anos? Porque praticam a necropolítica, um novo tipo de nazifascismo que mata cotidianamente em uma guerra onde as vítimas são só os empobrecidos, além de pessoas não produtivas, sejam idosos ou com baixa imunidade. Só em 2019, por causa desse covarde congelamento dos investimentos em Saúde Pública, Educação Pública e Assistência Social, 20 bilhões de reais foram sonegados ao SUS. Por isso, faltam leitos, UTIs, respiradores artificiais, máscaras, médicos, enfermeiros etc. Se não for abolida a PEC 95, em 20 anos, quantas pessoas serão mortas por não encontrar acolhida em hospitais? Milhões, certamente.
Sob modelo capitalista neoliberal (neocolonial), o Estado Brasileiro, em 2019, de um orçamento total no valor de R$ 2,711 trilhões, reteve mais de 38% do orçamento (mais de 1 trilhão de reais[4]) para repassar para banqueiros como pagamento de juros e amortizações da infame dívida pública, fruto de agiotagem. Eis mais uma injustiça e covardia contra os pobres no Brasil. Assim se reproduz uma das maiores desigualdades sociais do mundo. Isso comprova que, de fato, temos no Brasil uma elite escravocrata, bélica e geronticida, que tem o deleite em humilhar, torturar e matar, com requintes de crueldade. Por isso, toda a ostentação da elite está enxovalhada de suor e sangue da classe trabalhadora, como os milhões de indígenas e negros escravizados.
Estudo da UFRJ e da FESPSP (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo) analisou 1,2 milhão de tuites a favor do (des)presidente Bolsonaro e concluiu que 55% de publicações pró-Bolsonaro são feitas por robôs. Este dado demonstra de forma inequívoca que as pessoas bolsonaristas são não apenas ingênuas, mas disseminadoras de mentiras que matam e disseminam o ódio. O Evangelho de João afirma: “a verdade liberta” (João 8,32), mas “a mentira mata, é coisa diabólica” (João 8,44), macabra.
Liberar apenas R$600,00 para cada trabalhador, a conta-gotas, é esmola para frear a rebelião popular que a fome trará. As panelas já estão vazias. É injustiça hedionda o repasse imediato de bilhões para os banqueiros salvarem seus bancos que fazem agiotagem com capa de legalidade.
O desgoverno federal está escondendo uma verdade muito perigosa e mortal. Um secretário do Ministro da Saúde, no afã de questionar o prolongamento da quarentena que está sendo feita graças à postura ética e responsável de vários governadores, disse que todos devem se imunizar com o coronavírus, que o contágio comunitário só diminuirá quando pelo menos 50% da população já tiver contraído o vírus. Disse que parte das pessoas nem vai ficar sabendo que contraiu o vírus, pois nem sintomas estas pessoas terão. Outros terão os sintomas e uma porcentagem menor precisará ser internada e precisará de respirador artificial, o que está em escassez nos dois sistemas de saúde no Brasil, no SUS e na rede privada. Além disso, o desgoverno federal está omitindo a informação da Organização Mundial da Saúde (OMS), respaldada por cientistas idôneos, que demonstra que, no mundo, cerca de 2% dos que contraem o coronavírus acabam morrendo. Mais grave: o Ministério da Saúde informou dia 07 de abril que no Brasil a taxa de mortos entre os que contraem o coronavírus está sendo de 4,9%. No Brasil, com 212.000.000 (duzentos e doze milhões) de pessoas, 4,9% significam 10.388.000 (dez milhões e trezentos e oitenta e oito mil) pessoas. Então, se o povo brasileiro aceitar seguir o que o desgoverno federal está propondo, antes dos pesquisadores descobrirem remédio ou vacina, de fato, eficaz, é preciso que saibam desta verdade que está sendo escondida: o número de mortos no Brasil poderá chegar a 10.388.000 pessoas, não apenas pessoas idosas, diabéticas, com câncer, cardíacas, quem está com baixa imunidade, do grupo de risco, mas também pessoas aparentemente saudáveis, que já estão entre os mais de 700 mortos, nesse país continental. Propor seguir um caminho que pode levar à morte mais de mais de dez milhões de pessoas, só no Brasil, é ‘brincar com fogo’, é amar o capital e não a Deus. Por isso, Jesus disse: “Não se pode servir a dois senhores: a Deus e ao capital” (Mateus 6,24). Neste cenário perigoso, ficar em casa, em quarentena, até que se descubra remédio ou vacina capaz de impedir que pessoas morram de COVID-19 é imperativo ético e necessidade vital.
Estamos presenciando um projeto patológico de mentiras ou fakes, também chamado de pseudologia robótica, perpetrado pelos bolsonaristas nazifascistas que adoeceu parte da população brasileira,  com o apoio de partidos políticos aliados, de milícias, militares, ruralistas, e claro, de agentes do Ministério Público em suas instâncias estadual e federal e do Supremo Tribunal Federal (STF) - ou melhor, toda a corja da direita que coaduna com o desmantelamento da democracia e das políticas públicas do país. Presenciamos a destruição da saúde pública, da educação pública e da pesquisa científica. Lembremos da covarde expulsão dos dez mil médicos cubanos, aplaudida por alguns insanos. Tudo promessa de campanha e, acreditem, muitos votaram no atual presidente sabendo que esta catástrofe, entre outras, iria mesmo acontecer.  Não há máscara que tape esta vergonha, nem álcool em gel que apague este ato. O único compromisso destes meliantes é se tornarem subservientes ao desgoverno xenofóbico de Donald Trump[5], fazendo o Brasil se portar como colônia subalterna dos Estados Unidos. De fato, quem se ajoelha aos interesses dos USA não respeita o povo brasileiro. Afinal, quem apoiou todas as conspirações lideradas por Jair Bolsonaro e por Sérgio Moro em 2017 e 2018?  As atuais agressões ao governo chinês fazem parte deste perverso plano de subserviência colonial ao Tio Sam. Por isso, as tais encomendas brasileiras de equipamentos de prevenção ao coronavírus foram retidas por Trump, em clara alusão à prática da pirataria, pois pilhou e interceptou uma carga encomendada por outro país. Agora esta é a especiaria da vez, como já foram a seda, as ervas e o marfim. Claro, primeiro a metrópole, e se sobrar, talvez seja liberada para a colônia, aqui do sul. Não é assim que funcionam as relações coloniais? Parece que estamos mesmo no período da “Nova Colônia”. Mesmo com a ameaça do presidente americano de impor tarifas à China, em declarada guerra comercial, tempos atrás, agora os produtos chineses são ovacionados pelos americanos e suas relações mútuas se incrementam. Tudo pelos americanos! “America First”! Trump se aproxima ardilosamente de Xi Jinping, presidente da China, que almeja acordos vantajosos. 
O Brasil não parece fazer parte dos principais projetos comerciais da China nas Américas, que ainda se encontra empenhada em estreitar relações e negócios na África, Ásia, Oriente Médio e Europa; a Nova Rota da Seda[6], que agora também tem os equipamentos de Saúde como novo produto em rede. Fortalecida política e economicamente,  em tempos de pandemia, a China parece concentrar suas transações e alianças com o Norte Global (Europa, Reino Unido e América do Norte), como sinalizado pelo governo chinês no último Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, mantendo os investimentos na segurança cibernética, política industrial, projetos de transporte e de infraestrutura e controle de portos em vários locais do planeta, além de pesquisas científicas. Segundo a agência de notícias oficial do governo, a China já teria assinado 173 documentos de cooperação com 125 países e 29 organizações internacionais. A soja exportada pelo Brasil, por sua vez, sempre foi utilizada para o consumo animal na China, pois não atinge os seus padrões rígidos de segurança alimentar. Com o aumento progressivo do uso de  agrotóxicos, piorou ainda mais o interesse em adquirir os produtos alimentares brasileiros, e isto ressoa em todo o mundo.  Mas parece que nem para o bichos chineses serve mais a soja brasileira, depois de tanta agressão do filho do Bolsonaro, do atual chanceler, e, por último, do ministro da (des)educação. Sorrateiramente, Trump negocia a venda de soja estadunidense para a China, em substituição da brasileira. O plano sórdido e macabro continua. As relações bilaterais Brasil-China se arrefecem neste momento de verdadeiro caos e pandemia no Brasil.
Considerando que o crescimento do contágio comunitário pelo coronavírus acontece não apenas em uma progressão aritmética (1, 2, 4, 6, 8, 10 ...), mas em uma progressão geométrica (1, 2, 4, 8, 16, 32, 64, 128, 256, 512, 1024 ...), de forma exponencial, se quisermos salvar vidas, temos que agir rápido, antes que aumente muito o número de pessoas infectadas, e colocar em prática todas as medidas que evitam o contágio: ficar em casa, em quarentena, lavar as mãos com frequência, usar máscara quando tiver que sair de casa. Se o contágio não for barrado logo no início, se for disseminado, será quase impossível impedir que todas as pessoas sejam infectadas. 
Apesar dos históricos e insanos bloqueios à  Cuba, em paralelo a este jogo repugnante, os médicos cubanos, de forma solidária e profissional, ajudam de forma heróica o povo italiano a sair de uma grande tragédia epidemiológica e social; muitos, os mesmos que foram expulsos do Brasil no início de 2019. Assim segue o Brasil Colônia no Século XXI... em queda livre. 
Até quando?

08/4/2020.



[1] Doutora em Arqueologia pelo MAE/USP; Pós-Doutorado Arqueologia e Antropologia-FAFICH/UFMG; Mestre em Educação pela FAE/UFMG; Historiadora e Membro do CEDEFES (Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva - www.cedefes.org.br - : e-mail: alenicebaeta@yahoo.com.br

[2] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III
[5] Segundo New York Times, Trump é Sócio de empresa que produz a tal da cloroquina. É por isto que Bolsonaro tanto insiste no uso da cloroquina?
[6] A antiga Rota da Seda era composta por inúmeros itinerários que interligavam a Ásia, o Extremo Oriente e a Europa, por onde escoavam produtos e cargas, transportados por caravanas e embarcações oceânicas. Trata-se de antigos territórios comerciais e mercantis onde surgiram diversas cidades e entrepostos (Cf. FRANKOPAN, Peter. As Rotas da Seda – uma nova história do mundo. São Paulo: Ed. Relógio D’Água, 2018).

terça-feira, 7 de abril de 2020

Quando as máscaras caem: política, religiosidade e desavenças entre parentes. Por Gilvander

Quando as máscaras caem: política, religiosidade e desavenças entre parentes
Por Gilvander Moreira[1]



Quem é minha mãe e meus irmãos?” (Mc 3,33), perguntou Jesus Cristo em plena missão no meio do povo. Jesus também brigou com parentes? Desde a última campanha eleitoral, temos ouvido falar de briga entre parentes, em grupos de família no WhatsApp, via telefone ou presencialmente. Como resultado destes embates, parentes se afastam, saem dos grupos de WhatsApp, porque discordam de posturas uns dos outros.  A evolução tecnológica colocou celulares nas mãos da maioria da população. Com isso a comunicação virtual se acelerou e possibilitou revelar o que há de bom nas pessoas, mas também o que há de pior e execrável. Hoje em dia é cada vez mais raro ouvir falar sobre um grupo de família no WhatsApp em que não tenha ocorrido chateação e discórdia entre parentes. Para além do grupo, muitos se bloqueiam definitivamente. 
Ocorre que tudo tem mesmo um limite e diante de tremenda desigualdade social sendo reproduzida cotidianamente, já não dá mais para suportar posturas capitalistas, egoístas, distribuição de fake news (armas de opressão) e a disseminação de visões religiosas absurdas e preconceituosas, que são, na prática, idolátricas.  Difícil tolerar pessoas que usam reiteradamente em vão o nome de Deus e torturam textos bíblicos para tirar conclusões que justificam  discriminação, preconceito e posturas que ofendem os empobrecidos e as maiorias sociais e étnicas no Brasil e no mundo. Não é atitude criminosa e genocida ficar publicando em grupos de WhatsApp de família e em outros lugares fake news e afirmações irresponsáveis e imorais incitando as pessoas a se exporem a se contaminarem e a contaminar outras pessoas com o perigoso coronavírus? Essa atitude diabólica pode levar à morte de milhares de irmãs e irmãos nossos. Isso não pode ser atitude de ser humano e muito menos de quem se diz pessoa cristã. 
Basta de tanta ignorância e analfabetismo político, religioso, econômico, social e ambiental. Não dá para conceber que pessoas possam continuar defendendo o (des)presidente da República diante da realidade que demonstra que ele está desestruturando o país, aumentando a violência e a desigualdade social. Só quem não ama o próximo e está em um oásis ou em uma bolha, longe da realidade dos empobrecidos, ou quem tem como único interesse a manutenção de privilégios ou o usufruto das benesses dessa máquina de moer vidas, que é o capitalismo, pode ainda se apegar em defender o que é indefensável sobre todos os aspectos, como é o caso do     facínora presidente, sua familícia e seus comparsas. 
Causa asco a atitude de quem continua chamando de comunista todos/as aqueles/as que questionam as atrocidades que o (des)presidente vem cometendo diariamente ao longo de seu desgoverno, mas, em especial, no contexto mais recente no qual se espera de qualquer governante o mínimo de competência e humanidade no enfrentamento da pandemia do coronavírus e não atitudes imprudentes e perversas como as que ele vem tomando. Espera-se de um governante, como virtudes essenciais, no mínimo, a prudência, o respeito à imprensa, aos cientistas, em especial, aqueles/as da área da saúde e da infectologia.  Mas, nem isto temos verificado por parte do (des)governo federal no Brasil. Ele e seus asseclas seguem com  ignorância, desmantelando as políticas sociais, educacionais e culturais da plural população brasileira. Ao que tudo indica, a síntese “Quanto pior, melhor” é o retrato fiel do desgoverno e de seus seguidores conhecidos por “gado” que chegam ao limite menosprezando até os nossos anciãos, porque só se interessam pela riqueza que a classe trabalhadora pode produzir para eles.
Não dá para tolerar posturas religiosas alienadas de quem diz que ama a Deus, “Deus acima de tudo”, mas não questiona essa engrenagem de violência que segue matando milhões de pessoas. Muitos falsos pastores, falsos padres, falsos intelectuais e falsos cristãos estão sendo cúmplices de opressores sociais e violências no Brasil, porque reduzem a religião à autoajuda e à idolátrica teologia da prosperidade. Reduzem Deus a um quebra-galho para resolver “o meu problema” ou, no máximo “o problema da minha família”. E os problemas e os sofrimentos dos outros, das outras famílias?  Não devemos ter solidariedade para com quem está sofrendo por ser injustiçado?
O que está matando o povo no Brasil, nos EUA, na Europa, no Japão, na América Latina e na África, é, principalmente, o capitalismo e os capitalistas. Por que não questionar os capitalistas, os banqueiros, a turma do agronegócio? Os donos do agronegócio, por exemplo, com sua ganância desmesurada,  segundo pesquisas científicas, são os responsáveis por mais de 700 mil pessoas contraírem câncer por ano no Brasil, pelo uso indiscriminado de centenas de  agrotóxicos no afã de produzir mais e assim obter maior lucro a qualquer custo, mesmo que este custo seja contabilizado no crescente número de mortes humanas e de outras espécies naturais por doenças diversas que tem nos venenos sua origem. Cegos ou cegados, aqueles/as que levantam essa cortina de fumaça vendo “comunismo” em tudo escondem as verdadeiras causas da injustiça social, da violência e da superexploração do povo e antes, sim, auxiliam a manter o status quo opressor.
Muitos tipos de oração transferem para Deus responsabilidades que são nossas. Rezar ou orar para Deus acudir os desempregados, os doentes ... não pode se tornar uma forma de lavarmos as nossas mãos, como Pilatos, diante das injustiças sociais que causam tantas mazelas e sofrimentos. É contraditório ser capitalista (egoísta, competidor/a, consumista, individualista) e ser pessoa cristã. Ou se é pessoa cristã ou se é capitalista. Não dá para servir a Deus e ao capital, ao mesmo tempo. Segundo o Evangelho de Jesus Cristo, pessoa cristã precisa ser anticapitalista, cultivar estilo de vida simples e austero e ser pessoa que gera fraternidade. Frei Humberto, padre carmelita holandês que trabalhou por mais de 40 anos no noroeste de Minas Gerais, um dia me disse: “A causa principal de todos os sofrimentos do povo é o capitalismo. Por isso, em toda missa que celebro, faço uma prece para que aconteça reforma agrária no Brasil.” Quando entrei para o seminário, em 1981, um frei me disse: “A solução para superar as injustiças sociais no Brasil é acabar com o capitalismo e implantar aqui o socialismo. Só que não podemos dizer isso para o povo, senão seremos considerados subversivos e comunistas”. Por que não podemos discutir o capitalismo, essa máquina de moer vidas? Reproduzir a opressão capitalista sempre pode?
Muitos padres e pastores - pretensos intelectuais também - não questionam o capitalismo e as práticas capitalistas, por ignorância ou porque lhes interessa mentir para o povo para controlá-lo e continuar acumulando riquezas e privilégios por meio de ofertas, como o dízimo, por exemplo. Interessa aos falsos padres e falsos pastores manter o povo na ignorância religiosa e manter postura política covarde, não confessada, mas que apoia quem mata como, por exemplo, aquela adotada pela bancada evangélica no Congresso Nacional, na qual mais de 100 pastores apoiam a bancada ruralista, a do boi, que, pelo agronegócio (monoculturas irrigadas com uso indiscriminado de agrotóxico) está desertificando o Brasil, disseminando doenças diversas, mas, principalmente, o câncer, acabando com as nascentes de água e com espécies animais e vegetais necessárias ao equilíbrio da natureza.
Recordemos sempre: chefes religiosos condenaram Jesus Cristo à morte. Nosso salvador Jesus Cristo foi torturado pelos podres poderes da política, da economia e da religião. Como pode alguém que se diz pessoa cristã defender quem defende tortura, defender quem aplaude milicianos (jagunços), defender quem já liberou mais de 600 tipos de agrotóxicos em 2019, defender quem mente descaradamente e divulga fake news?
Com a quarentena exigida pela pandemia do coronavírus, os capitalistas estão desesperados, porque estão vendo o tanto que dependem da classe trabalhadora. Se os trabalhadores param de trabalhar, o lucro dos patrões se dissolve como castelo de areia na praia. Por isso incitam as pessoas a voltarem ao trabalho e, na prática, a entrar na fila do matadouro, porque sabem que terão prejuízos que querem suprimir, mesmo que a custa de vidas humanas. Isto é necropolítica, é escolher quem deve viver e quem deve ser morto. Não é postura ética, é idolatria do capital e da morte. Quem está alardeando isso ama o ídolo capital.
Ponham o dedo na consciência, por amor às crianças, aos idosos, às pessoas com saúde frágil, ao Deus da vida e às próximas gerações. Parem de distribuir fake news, armas de morte e de insensatez. É preciso conhecer os verdadeiros inimigos e eles estão pousando de “cidadãos de bem”, mas são, sim, cidadãos de bens. Observem o que a Mãe Terra está nos mostrando neste momento tão sensível com a pandemia do coronavírus. O tempo está nos exigindo reflexão, lucidez, conversão e humanização.
Enfim, os véus caíram, as máscaras também. As desavenças entre parentes nos fazem recordar que Jesus Cristo perguntou: “Quem é minha mãe e meus irmãos?” (Mc 3,33). E se voltando para seus discípulos e discípulas, arrematou: “Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mc 3,35). O Evangelho de Lucas explicita: “Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática” (Lucas 8,21). Ou seja, para além dos laços sanguíneos, devemos nos sentir membros da família humana que luta pela construção de um mundo para além do capitalismo, um mundo justo economicamente, solidário socialmente, ético, plural culturalmente, (macro)ecumênico religiosamente, sustentável ecologicamente e responsável geracionalmente. Em fim, até ser encontrado remédio ou vacina para a COVID-19, ficar em casa em quarentena é defender a vida. Eis um imperativo ético do momento gravíssimo que atravessamos[2].

07/04/2020.

Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1 - Coronavírus - A importância do uso de máscaras de proteção - Dr. Fabiano Hueb - 06/4/2020



2 - Capitalismo nu, por Wilson Ramos Filho, o Xixo - 27/3/2020



3 - Roda Viva com o biólogo Atila Iamarino - 30/03/2020



4 - COVID-19 e o Capitalismo em Estado Crítico - uma conversa com Ricardo Abramovay





[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III
[2] Gratidão à Alenice Baeta, pós-doutora em Antropologia e Arqueologia, e à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fizeram a revisão deste texto.