sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Campanha da Fraternidade de 2016, o papa Francisco e nós: o desafio do saneamento básico. por frei Gilvander

Campanha da Fraternidade de 2016, o papa Francisco e nós:
o desafio do saneamento básico.
Frei Gilvander Luís Moreira[1]

1.   Introdução.
Pela quarta vez ecumênica, a Campanha da Fraternidade de 2016 (CF/2016) tem como Tema: “Casa comum, nossa responsabilidade”, como Lema: “Quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca (Amós 5,24) e como Objetivo Geral: “assegurar o direito ao SANEAMENTO BÁSICO para todas as pessoas e nosso compromisso, à luz da fé no Deus libertador, na luta coletiva por políticas públicas e atitudes responsáveis que garantam a integridade e o futuro de nossa Casa Comum, o planeta Terra”.

2     - A falta de saneamento básico interpela nossa consciência.
Nova resolução da ONU, de dezembro de 2015, coloca o saneamento como um direito humano fundamental e destaca a situação das mais de 2,5 bilhões de pessoas no mundo que vivem sem acesso a banheiros e sistemas de esgoto adequado no mundo todo, o que favorece proliferação de doenças infecciosas. Segundo a ONU,SANEAMENTO BÁSICO é um direito humano fundamental de todas as pessoas e um dever do Estado. A CF/2016 busca engajar todas as pessoas cristãs na luta por Justiça socioambiental, especificamente na luta pela implementação de Saneamento Básico de qualidade para toda a população. Em 2013, segundo o Ministério da Saúde (DATASUS), foram notificadas mais de 340 mil internações por infecções gastrointestinais no país. Se 100% da população tivesse acesso à coleta de esgotos sanitários, haveria uma redução em termos absolutos de 74,6 mil internações. Logo, governos que deixam a população sem saneamento básico são criminosos – os omissos também (quem sustentam os políticos corruptos), pois promovem a morte de milhares de pessoas indiretamente. Mais de 100 milhões de pessoas no Brasil ainda não possuem coleta de esgotos e apenas 39% destes esgotos são tratados, sendo despejados diariamente o equivalente a mais de 5 mil piscinas olímpicas de esgoto sem tratamento nos rios e cursos d’água. Os rios não podem continuar sendo privadas receptoras de esgoto.
Mais de 4.000 crianças morrem por ano por falta de acesso a água potável e ao saneamento básico. Na América Latina, as pessoas têm mais acessos aos celulares que aos banheiros. Segundo a Pesquisa Nacional de Saneamento Básico 2008 do IBGE, divulgada em 2010, as 13 maiores cidades do país são responsáveis por 31,9% de todos os resíduos sólidos no ambiente urbano brasileiro, 50,8% dos quais foram levados para os lixões, local para depósito do lixo bruto, sobre o terreno, sem qualquer cuidado ou técnica especial. A América do Norte e a Europa mandam seus resíduos sólidos para a África e, infelizmente, também para o Brasil. Em 2009 e 2010, portos brasileiros receberam cargas de resíduos (LIXO) domiciliares e hospitalares. De Cubatão, em São Paulo, lixo tóxico cancerígeno está sendo levado para Sarzedo, na região metropolitana de Belo Horizonte. Focando apenas no Brasil, os lixões e aterros sem controle, localizam-se próximos ou em áreas de residência de populações pobres, nas quais os habitantes são obrigados a conviver com a sujeira gerada pelos demais moradores, resultando em injustiça ambiental. Apenas 42% das moradias rurais no campo dispõem de água canalizada para uso doméstico. Os outros 58% usam água de outras fontes, porém, sem nenhum tipo de tratamento. Segundo o Censo de 2011, o Brasil tem 14.612.183 analfabetos, entre mais de 162 milhões de brasileiros com mais de 10 anos de idade, ou 9,02% da população a partir dessa faixa etária. O Censo de 2011 detectou 16,2 milhões de brasileiros vivendo abaixo da linha de pobreza extrema, ou seja, 8,6% da população vive com uma renda nominal mensal domiciliar per capita de até R$ 70,00 (Setenta reais). Desse total, 4,8 milhões não possuem nenhum rendimento. Por isso, o saneamento rural deve ser implementado de forma articulada com outras políticas públicas, tal como Reforma Agrária com agricultura familiar agroecológica, de modo a superar o déficit de moradias, dificuldade de acesso à eletrificação rural e ao transporte coletivo.
Saneamento básico e água potável, uma relação vital que exige a paralisação de mineração devastadora como a que está sendo realizada em Minas Gerais e no Pará. As mineradoras SAMARCO/VALE/BHP, em conluio com os poderes públicos – o Estado – devastaram o Rio Doce com o maior desastre ambiental do Brasil ocorrido dia 05/11/2015, a partir de Mariana, MG.

“Quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca (Am 5,24).” Para iluminar nossa atuação em sintonia com a CF/2016 temos a profecia do profeta Amós. Provavelmente as composições mais antigas do livro do profeta Amós (Am 1-6; 7-9) datam de meados do século VIII a.C., e surgiram como literatura de protesto e resistência. “O acento principal da mensagem de Amós está na crítica social e no anúncio de um juízo iminente de Deus na história, bem como na tênue, mas clara exigência do restabelecimento da justiça como alicerce das relações sociais”[2].
Amós é um profeta precursor, radical, exemplar e paradigmático. A profecia de Amós é, em certo modo, um divisor de águas na história da profecia no sentido de que instaura um novo jeito de ser profeta.
O livro de Amós está organizado em duas grandes unidades literárias: I) Am 1-6: Palavras e II) Am 7-9: Visões.

3.1 – Endurecimento ou perdão?
Amós, em Am 4,4-13[3], reflete sobre Culto, história, endurecimento e perdão e nos ajuda a refletir sobre três aspectos intimamente entrelaçados, fundamentais na ética profética sobre a concepção de pecado em relação ao culto, à história e aos limites de uma possível reconciliação com Deus. Diante do “pecou, pecou... endureceu, endureceu..., haverá castigo ou perdão? A conclusão que se coloca na base e no fim do estudo de Am 4,4-13 é “Prepare-se Israel, para encontrar-se com seu Deus!” Trata-se de um anúncio de punição in extremis diante da incapacidade de Israel de reagir, ou de uma velada promessa de perdão? Ou existe  outra interpretação possível?
A declaração final de Javé ao ser humano que fecha a unidade Am 4,4-13 constitui-se quase como uma nova revelação do Sinai, que deve por fim ao conflito entre o ser humano e a divindade, em favor do ser humano. As punições pedagógicas de Javé deixam lugar a um esclarecimento que abre o coração do ser humano para que veja o conjunto da sua história e reconheça o processo de endurecimento de seu coração.
Am 4,4-13 evoca, portanto, uma situação que há certa semelhança com aquela do relato das pragas do Egito, mas não é obviamente, a recordação daqueles fatos. O discurso de Amós menciona, talvez, um passado histórico não identificável nem pela forma e nem pelo conteúdo do texto. As pragas do tempo do Êxodo feriam o Egito, não Israel, e de uma maneira diferente da relatada em Amós 4. Além do mais, as tais “pragas” eram no mundo antigo o resultado de situações críticas naturais ou políticas: a fome era o resultado de toda estiagem prolongada e peste nas plantações, assim como a morte dos jovens (v. 10) é o efeito de toda ação militarista, no mundo antigo e moderno.
Às pragas ou punições descritas se reúnem ainda a menção de Sodoma e Gomorra. O discurso de Amós 4 quer, portanto, dar conta de toda a antiga história de Israel, também de Israel patriarcal, para aplicá-la a uma nova situação. 
Um ponto particular de relação com o Êxodo é a presença do refrão “mas não retornastes a mim” que estrutura o texto de Amós 4,4-13. Assim, como no relato das pragas o endurecimento do coração do Faraó é o motivo estruturante que faz aumentar as pragas.
No relato do Êxodo, um primeiro grupo de textos, atribuídos tradicionalmente à fonte Javista (J), apresenta de fato o faraó como responsável pelo seu próprio endurecimento, como havia predito Deus.[4] O outro grupo de textos (os chamados “heloístas”) atribuem a obstinação ora ao faraó (Ex 9,35) ora a Deus mesmo (Ex 10,20.27). O relato sacerdotal (P) o atribui habitualmente a Javé.
Esta diversidade de concepção no atribuir a responsabilidade pelo pecado aparece também em outros textos fora do Êxodo, com diferente vocabulário e problemática. Em 2 Sm 24,1, Javé é o responsável direto pelo pecado de Davi devido ao recenseamento; Segundo 1 Cr 21,1 a responsabilidade é, ao invés, de Satanás. O verbo hebraico usado é o mesmo: swt (= incitar, seduzir).
Tanto em Êxodo como em Am 4,4-13 se coloca um grande problema exegético e teológico: É possível e legítimo que Deus continue a aplicar punições que levam a um endurecimento sempre crescente? Não se comporta Javé assim como o pai que exagera, com sua punição, o seu filho e o força a se rebelar (cf. Ef 6,4)?
É necessário reconhecer que por trás dos textos de endurecimento há o mistério da liberdade humana e “onipotência” divina: amor infinito de Deus. Em relação a Deus, há uma consciência profética que as obras e a Palavra de Deus não podem permanecer sem efeito (cf. Is 55,11), mas é sempre eficaz (diferente de eficiente). Se não produzem imediatamente a conversão, devem amadurecer o sujeito para um novo castigo, o que, em última análise, não exclui a possibilidade de conversão.
Em relação ao “castigado” (?), há consciência do fato que a exortação à conversão, quando não ouvida, se torna uma condenação. Isto é, nada mais, nada menos, que a dinâmica das relações interpessoais. Quando duas pessoas se encontram e começam a se conhecer, a relação pode progredir, parar ou eventualmente morrer. Mas enquanto existe, cada ação e reação levam ao crescimento ou diminuição daquela relação. Todo ato (ou omissão) nas relações interpessoais soma e cultiva a relação ou a empobrece descultivando-a. Nenhum ato fica neutro.
De modo semelhante, na relação do ser humano com Deus, cada ação que não melhora a relação, a piora, mas jamais a deixa igual. Se não se aceita um convite à conversão, como uma oferta de amizade, o recusa. E esta recusa tornará mais difícil que aconteça um novo convite.[5] Além disso, aceitar uma nova oferta de amizade, implicaria em reconhecer o erro precedente, o que pode exigir um grau maior de humildade.
Em relação aos profetas e profetisas, este processo se explica na medida em que os/as  “intérpretes de Javé” sabem do paradoxo da missão deles. Os profetas e profetisas sabem que a palavra profética conduz às vezes à conversão de alguns poucos, mas na maioria das vezes leva ao endurecimento de muitos. Os oráculos de condenação no futuro, pronunciados com absoluta segurança, refletem a consciência dos profetas de que a advertência seria inútil.
A consciência que os profetas e profetisas têm das três realidades descritas acima se apresenta, de modo muito claro, em Is 6,9-11: “Então disse ele: Vai, e dize a este povo: Ouvis, de fato, e não entendeis, e vedes, em verdade, mas não percebeis. Engorda o coração deste povo, e faze-lhe pesados os ouvidos, e fecha-lhe os olhos; para que ele não veja com os seus olhos, e não ouça com os seus ouvidos, nem entenda com o seu coração, nem se converta e seja sarado. Então disse eu: Até quando Senhor? E respondeu: Até que sejam desoladas as cidades e fiquem sem habitantes, e as casas sem moradores, e a terra seja de todo assolada”.

3.2 – Amós, conspirador e subversivo?
Em Am 7,14 Amós se recusa a ser considerado profeta segundo a ótica de um sacerdote vassalo do poder político. Amós se define como “vaqueiro” e cultivador de sicômoros. Em Am 7,15 Amós parece ser um pastor que cuida do rebanho miúdo (ovelhas e cabras), mas não um vaqueiro. Em Am 7,10-17 não há a intenção primeira de descrever pessoalmente a profissão do profeta, mas enfatiza o fato de que Amós foi retirado da sua vida precedente, do seu mundo, das preocupações domésticas para proclamar a Palavra de Deus.
Am 7,10-17 quer legitimar o conteúdo da profecia de Amós e ajudar a comunidade a superar todos os preconceitos que possam existir contra o profeta por causa da sua origem humilde, como se fosse um “nordestino”, um sem-terra, um menor de rua, um portador do vírus HIV etc. O relato de Am 7,10-17 quer nos dizer que a profecia vem da margem, da periferia, do meio dos marginalizados e excluídos. São estes, por excelência, os “intérpretes de Javé”.
Na Bíblia esse “gênero” é utilizado para descrever de maneira diferente as vocações de Moisés, Gedeão, Eliseu, Saul. Mas uma estreita relação se encontra em 2Sam 7,8. Natã transmite a Davi a mensagem de Javé: “Eu te tirei das pastagens, pastoreavas as ovelhas”. O elemento que caracteriza estas situações não é o fato do convocado pertencer a um grupo, mas, ao contrário, o fato de ele ser um “de fora”, um excluído. Assim Am 7,14 quer exprimir a distância de Amós das formas institucionais da profecia e dos profetas “da corte”.
O relato do confronto entre o sacerdote Amasias e Amós (com a implicada presença do rei) oferece a justificação da decisão de Javé. O povo não somente não ouviu as diversas palavras transmitidas por Amós, mas decidiu silenciá-lo, expulsando-o para sua terra. Já não há nada mais a esperar senão o fim definitivo, e diante disso resta somente a lamentação. O profeta anuncia a necessidade de conversão; pede perdão a Deus pelo povo; pede para parar a punição. O rei (e a monarquia) e o Templo expulsam o profeta, silenciando-o. O povo sofrerá muito mais. Ai de um povo que não escuta seus profetas e profetisas, e pior ainda, que os persegue, expulsa e os silencia.
Em Am 7,10-17 revela a interpretação que setores da classe dirigente tinham do conteúdo da profecia de Amós. Aos olhos da elite, o profeta é um “conspirador”, interessado em “golpe de estado”. Para Javé e o povo empobrecido Amós é um profeta. Para a elite ele é um “subversivo”, um agitador.

3.3 – Vacas de Basã são mulheres ou homens opressores?
Em Am 4,1-3 temos a seguinte profecia: “OUVI esta palavra, vacas de Basã, que estais sobre monte de Samaria, que oprimis os fracos, que esmagais os excluídos, que dizeis aos vossos senhores: “Trazei-nos o que beber!”. O  Senhor Javé jurou, pela sua santidade: sim, dias virão sobre vós, em que vos carregarão com ganchos e a vossos descendentes com arpões (de pesca). E saireis pelas brechas que cada uma tem diante de si, e sereis empurradas em direção ao Hermon, oráculo de Javé”.
Segundo uma interpretação mais tradicional, Am 4,1-3 seria uma investida do profeta Amós contra as mulheres ricas de Samaria, designadas como “vacas de Basã”, mulheres de personagens importantes, que ocupam o tempo em luxuosos banquetes, e ao mesmo tempo são responsáveis pela opressão e exploração dos empobrecidos. A imagem de um banquete só de madames é, no mínimo, algo curioso em uma sociedade reconhecidamente machista e patriarcal, assim como atribuir às mulheres a responsabilidade pela opressão e pela injustiça.
A região de Basã, como o Líbano e o Carmelo, é famosa pela fertilidade do solo. A tristeza causada pela punição divina se manifesta na debilidade do Líbano, do Basã, do Carmelo e do Saron (Is 33,9). Ao contrário, a generosidade divina se expressa no nutrimento do povo com a “manteiga das ovelhas e dos touros de Basã” (Dt 32,14). O anúncio messiânico, com o qual se conclui o livro de Miquéias, inclui a promessa de um pasto abundante “em Basã e em Galaad, como nos dias antigos (Miq 7,14). No ambiente de louvor do Sl 68, “Basã” são os montes (v. 16) que testemunham, junto com o Sinai e a natureza, a grandeza das obras de Javé. Logo integrar “Basã” numa imagem depreciativa é algo estranho ao uso corrente de “Basã” na Bíblia.
De “vaca de Basã” não se fala em nenhum outro lugar no Primeiro Testamento da Bíblia. As montanhas de Basã são famosas pelos seus touros, cabritos e carneiros (mas não vacas; cf. Dt 32,14). Por isso os touros de Basã podem ser imagens dos inimigos poderosos (cf. Sl 22,13 e, sobretudo, Ez 39,18).
A expressão “vacas de Basã” adquire um sentido mais verdadeiro dentro da cultura bíblica se o termo “vacas” não for utilizado em relação a mulheres, mas a homens, aqueles que quiseram ser como os touros de Basã, pela força deles, autoridade e dignidade se tornaram “vacas”, com as conotações depreciativas que as formas femininas podem ter no Primeiro Testamento.
Neste contexto, os “seus senhores” (Am 4,1b, com sufixo masculino) se referem provavelmente não aos “maridos”, como propõem algumas traduções, um uso pelo qual não se tem nenhuma outra ocorrência, mas refere-se a uma pessoa de mais autoridade (política). “Senhor”, além do freqüente uso como título divino, se refere a Acab (2 Rs 10,2.3.6), ao Faraó (Gn 40,1), ao Rei da Babilônia (Jer 27,4), e em casos isolados a várias pessoas: “outros senhores...” (Is 26,13).
A interpretação que propomos de “vacas de basã”, acima, está em sintonia com a hipótese de que “vacas de basã” seja também uma alusão às estátuas cultuadas. Logo, em Am 4,1-3 está uma forte denúncia do poder opressor de um “senhor” com poder político de dominação respaldado por uma legitimação religiosa.

3.4 – Profeta Amós: “Restabeleçam a justiça!”
A profecia de Amós é “uma crítica veemente e contundente aos agentes e mecanismos de exploração e opressão dos camponeses empobrecidos sob o governo expansionista de Jeroboão II e sob as condições de um incremento de relações de empréstimos e dívidas entre pessoas do próprio povo no século VIII a.C.”[6]. Em outros termos, o profeta Amós não apenas critica pessoas corruptas, mas questiona também de modo muito forte o sistema gerador de pessoas corruptas. Não somente as mazelas pessoais estão na mira do “camponês” que entrou para a história como um grande profeta. Amós tem consciência de que o problema fundamental da injustiça reinante na sociedade não é fruto somente de fraquezas pessoais, mas tem como causa matriz estruturas socio-econômico-político-culturais e religiosas que engrenam uma máquina de moer pessoas. Na mira de Amós também estão relações comerciais que causam endividamento, aprisionam pessoas e escravizam, retirando a liberdade de ser pessoa humana.
Além das denúncias sociais, a profecia de Amós destaca-se com o anúncio de um juízo iminente de Javé na história do seu povo. Amós inverte as expectativas quanto a um tão sonhado “dia de Javé” (Am 5,18-20). Este não será mais uma “ideologia de segurança político-religiosa” pelos fortes de Israel. A perversão da justiça para os pobres, a opressão dos empobrecidos e a exploração das pessoas mais enfraquecidas clamam pelo juízo divino. O “dia de Javé” será um “dia mau” sobre os fortes de Israel, sobre o estado tributário, suas instituições e seus agentes.[7]
Amós critica com coragem a “corrida armamentista” de Israel. Ele anuncia que serão desmanteladas as forças militares dos estados vizinhos (Am 1,5.8b.14b; 2,2b) e sobretudo de Israel (Am 2,13-16; 3,11b; 5,2-3; 6,13-14).
O profeta Amós denuncia duramente também as instituições religiosas que estão justificando o processo de extorsão de tributos da população camponesa (Am 4,4-5; 5,21-  23). Pelo conluio com a opressão econômica a religião oficial também será dizimada (templos) e seus agentes (Am 5,27; 7,9; 9,1). “Odeiem o mal e amem o bem: restabeleçam no portão a justiça!” (Am 5,15). “Aqui está a exigência positiva por excelência na profecia de Amós. Os israelitas são conclamados a reconstruir as relações sociais baseadas na justiça e no direito (mishpat / sedaqah). Só assim será possível escapar do juízo vindouro anunciado. O futuro de um “resto” passa pela prática de Justiça”[8]. O juízo abre caminho para a justiça. A presença dos profetas e profetizas no meio do povo deixa Javé livre de qualquer responsabilidade diante da punição que o povo merece.[9] 

4 – Outras pistas bíblicas.
Na Bíblia há vários relatos que exortam ao cuidado com as águas. Por exemplo: a) É preciso organizar o povo – descentralização do poder e das decisões – para que as pessoas sejam atendidas em suas necessidades, nos seus direitos e cuidem do ambiente em que vivem (Êxodo 18,13-27); b) Devem manter a limpeza no acampamento, manter as fezes cobertas para evitar sujeiras e doenças (Dt 23,13-14); c) cuidar e tratar da água a ser consumida. As fontes, poços e cisternas devem ser mantidos puros (Lev 11,36; Ex 15,23-25; 2 Rs 2,19-22); d) cuidar das árvores e bosques, principalmente das árvores frutíferas (Lev 19,25; Dt 20,19; Jz 4,4-5).
Todas estas atividades devem estar sempre envolvidas com o cuidado para com os mais pobres (Deuteronômio 23, 25; 24, 14-15.19-22, conforme Tiago 5,1-6). Assim como não se deve explorar o trabalhador, que tem o direito ao descanso, também a terra, a cada sete anos deve ter o descanso (Levítico 25, 2-7).

5 – O papa Francisco, a encíclica Laudato Si e as lutas dos movimentos sociais.
Muitas crises estão afetando as pessoas e todos os demais seres que habitam nossa Casa Comum, o planeta Terra. A crise ecológica já acendeu o sinal vermelho há muito tempo. Que “o mundo está em chamas”, já dizia, ainda no século XVI, Teresa de Jesus, espanhola e freira carmelita, uma das três mulheres consideradas doutoras pela Igreja. O que acontece, todavia, é que do século XVI para cá, o modo de produção industrial, os estilos de vida impostos pelo modelo capitalista e tecnocrático somente agravaram os problemas ambientais no Planeta. “Não brinque com fogo”, dizia a mamãe Leontina. Urgente se tornou interrompermos a espiral de autodestruição da humanidade e de todo o planeta.
Como assessor da Comissão Pastoral da Terra, de Comunidades Eclesiais de Base e como militante de Movimentos Sociais do campo e da cidade, li com alegria a carta Encíclica “Laudato Si’”. E dessas janelas que tomo a liberdade de dialogar com os ensinamentos do papa Francisco, ressaltando alguns posicionamentos dele e arriscando a assinalar algumas ausências e lacunas. É uma oportunidade para refletir acerca de outros pontos de vista e posturas a partir da práxis de Movimentos Sociais Populares.
Com o auxílio dos omissos, dos cúmplices e dos coniventes, o capitalismo causou – e continua aprofundando – a maior crise ecológica de todos os tempos dos humanos sobre a face da terra.  As mineradoras com suas máquinas pesadas, cada vez mais potentes, como dragões cuspindo fogo, dizimam milhões de nascentes d’água pelo mundo afora. Ao formar crateras, deixam a mãe Terra dilacerada. Grandes empresas do agronegócio ampliam as monoculturas de eucalipto, de soja, de café, de cana etc e, assim, deixam um rastro de destruição nunca antes visto. O esgotamento dos solos férteis é um risco para a segurança e soberania alimentar da humanidade. Megaempresas do hidronegócio transformaram a água em mercadoria. Um litro de água em alguns lugares, como aeroportos, custa um absurdo.
Nesse contexto dramático, que interpela a consciência de todas as pessoas de boa vontade, faz-se necessário resgatar a profecia do Concílio Vaticano II e da Opção da Igreja pelos pobres e pelos jovens, opção da Igreja afrolatíndia. Imprescindível ouvirmos os clamores de todos os injustiçados, entre os quais a Terra, as nascentes de águas e toda a biodiversidade. Não podemos tardar mais em levar a sério o testemunho e os ensinamentos do papa Francisco na Exortação Apostólica A Alegria do Evangelho, no seu Discurso aos Movimentos Sociais na Bolívia e na Carta Encíclica Laudato Si’, sobre o cuidado da casa comum. Não há como levar a sério o testemunho e os ensinamentos do papa Francisco sem nos comprometer com a implementação de Saneamento Básico para toda a população brasileira.

5.1       - A dimensão social da fé a partir da Exortação apostólica A Alegria do Evangelho
O cap. IV de A Alegria do Evangelho (EG) trata justamente da Dimensão Social e econômica da fé cristã. Prestemos atenção a algumas afirmações do papa Francisco:
Se a dimensão social da evangelização não for devidamente explicitada, corre-se o risco de desfigurar o sentido autêntico e integral da missão evangelizadora (EG 176).“Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos.” (EG 49).
Além de ser pobre e para os pobres, a Igreja desejada por Francisco é corajosa em denunciar o atual sistema econômico, "injusto na sua raiz" (EG 59). Como disse João Paulo II, a Igreja "não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça" (EG 183). "Saiam!" é a essência da mensagem que o papa Francisco envia aos bispos, padres e membros das comunidades cristãs. Saiam das suas cômodas estruturas eclesiais burguesas e do caloroso círculo dos convencidos, anunciem o Evangelho às periferias das cidades, aos marginalizados pela sociedade, aos pobres, aos injustiçados!
Às questões sociais, o papa Francisco dedica dois dos cinco capítulos da Exortação Apostólica A Alegria do Evangelho, o segundo e o quarto. Critica o "fetichismo do dinheiro" e "a ditadura de uma economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano", versão nova e implacável da "adoração do antigo bezerro de ouro". Ele critica o atual sistema econômico: "esta economia que mata" porque prevalece a "lei do mais forte". Este se opõe à cultura do "ser humano descartável" que criou "algo novo" e dramático: "Os excluídos não são 'explorados', mas resíduos, 'sobras'" (EG 53). Enquanto não se resolverem radicalmente os problemas dos pobres, renunciando "à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social – insiste –, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum". E indica que as raízes dos males sociais estão na "desigualdade social”.
A Igreja não deve ficar indiferente a tais injustiças. A economia não pode mais recorrer a remédios que são um novo veneno, como quando se pretende aumentar a rentabilidade reduzindo o mercado de trabalho e criando assim novos excluídos (EG 204). O papa Francisco dedica páginas à denúncia da "nova tirania invisível, às vezes virtual" em que vivemos, um "mercado divinizado", onde reinam a "especulação financeira", a "corrupção ramificada", a "evasão fiscal egoísta" (56).

5.2       - O Papa Francisco de mãos dadas com os Movimentos Sociais
É eloquente o papa Francisco iniciar a Carta Encíclica Laudato Si’ exclamando: “Louvado sejas, meu Senhor”, invocando o Cântico das criaturas, cantado por Francisco de Assis. Por vários motivos: Primeiro, porque “Louvado sejas” dito diante do planeta Terra e de toda a biodiversidade revela admiração e encanto pela natureza que nos envolve e da qual fazemos parte. Segundo, pedagogicamente é mais promissor conclamar para o compromisso com a defesa da nossa única casa comum a partir do encantamento e da beleza e não a partir do medo e da insegurança que despertam tantas mazelas socioambientais.
Uma convicção profunda permeia toda a Encíclica Laudato Si’, convicção que o papa Francisco, carinhosamente, propõe a todas as pessoas de boa vontade: “Visto que todas as criaturas estão interligadas, deve ser reconhecido com carinho e admiração o valor de cada uma, e todos nós, seres criados, precisamos uns dos outros (42).” Isso mesmo: Nós, seres humanos, somos os seres vivos que mais dependem de todos os outros seres vivos. Logo, é estupidez o antropocentrismo que exalta o ser humano individualmente abrindo, espaço para o sistema pisar, violentar e assassinar tantos seres vivos.
O papa Francisco adverte já no segundo parágrafo: “Entre os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada, que “geme e sofre as dores do parto” (Rm 8,22). Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra (cf. Gn 2,7) (2).” Ninguém deve ficar indiferente. “À vista da deterioração global do ambiente, quero dirigir-me a cada pessoa que habita neste planeta (..) Nesta encíclica, pretendo especialmente entrar em diálogo com todos acerca da nossa casa comum (3).”
Que nada nos seja indiferente! Que beleza ver o papa Francisco olhando para além dos muros da Igreja Católica e conclamando ao diálogo todas as pessoas crentes ou não, todas as igrejas, todas as religiões. E diálogo com todos os seres vivos da Terra, acrescentamos.
Ao longo da Encíclica Laudato Si’, o papa Francisco inúmeras vezes se refere a “ser humano”, “nosso comportamento irresponsável”, “os seres humanos que destroem a biodiversidade” (8), “a humanidade”, “atividade humana” e a termos similares, para de alguma forma responsabilizar a todos pela gravidade da crise ecológica. Aqui, da perspectiva dos Movimentos Sociais e das ciências sociais críticas ao capitalismo, é imprescindível ponderar a existência de classes sociais com interesses antagônicos e contraditórios na sociedade. Os principais responsáveis pela devastação socioambiental são a classe dominante, os que detêm o poder econômico e político na sociedade. A classe trabalhadora não está isenta de responsabilidade socioambiental vigente, mas é muito mais vítima do que algoz nos crimes socioambientais que ora estão sendo perpetrados. Nesse ponto, o papa Francisco foi mais contundente no Discurso aos Movimentos Sociais na Bolívia em junho de 2015.
Que bom ouvir do Papa: “Francisco é o exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia integral, vivida com alegria e autenticidade. ... Nele se nota até que ponto são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o empenho na sociedade e a paz interior (10).” Para o Chico de Assis, qualquer criatura era uma irmã, inclusive a morte.
Além de resgatar os ensinamentos e o testemunho libertador de Francisco de Assis, é indispensável cultivarmos a memória de todos/as mártires e lutadores por justiça socioambiental, como Chico Mendes; Zé Maria Tomé da Chapada do Apodi, mártir da luta contra os agrotóxicos; Francisco Anselmo, mártir da luta contra a instalação de Usinas de álcool e açúcar no Pantanal; José Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo, casal de militantes socioambientalistas do Pará, mortos por madeireiros; Augusto Ruschi e muitos outros/as.
“Francisco pedia que, no convento, se deixasse sempre uma parte do horto por cultivar, para aí crescerem as ervas silvestres (12).” Ao resgatar essa perspectiva agroecológica do Chico de Assis, o papa nos dá o ensejo de dizer que sem agroecologia não há salvação para a humanidade. O agronegócio, antiecológico, com o uso indiscriminado e criminoso de agrotóxico, está envenenando a comida do povo.[10]

5.3        5.3 -  Uma luta complexa
O papa Francisco está preocupado em “unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral (13).” Mas, temos que alertar: a categoria “desenvolvimento sustentável”, no início parecia apontar para uma alternativa emancipatória. No entanto, há muito tempo essa categoria foi absorvida pelas empresas e tornou-se uma peça de propaganda enganosa. Strictu sensu, falar em desenvolvimento sustentável é contraditório, pois ‘desenvolvimento’ implica crescer economicamente, progresso, o que necessariamente terá que consumir bens naturais. E ‘sustentável’ é uma categoria da área da ecologia e implica garantir a continuidade dos ciclos de matéria e energia, para as gerações presentes e futuras. Logo, ou se desenvolve e cresce economicamente ou se busca alternativas para garantir a sustentabilidade ecológica. Diante da agudização da crise ecológica, o ético e sensato nos parece ser manter a “comunidade de vida” do planeta. Isso também por responsabilidade geracional. O próprio papa Francisco adverte na Encíclica:
Não é suficiente conciliar, a meio-termo, o cuidado da natureza com o ganho financeiro, ou a preservação do meio ambiente com o progresso. Neste campo, os meios-termos são apenas um pequeno adiamento do colapso. ... O discurso do crescimento sustentável torna-se um diversivo (tergiversação) e um meio de justificação que absorve valores do discurso ecologista dentro da lógica da finança e da tecnocracia, e a responsabilidade social e ambiental das empresas reduz-se, na maior parte dos casos, a uma série de ações de publicidade e imagem (194).
Na perspectiva dos Movimentos Sociais transformadores, são inaceitáveis os discursos e as práticas que dizem: “precisamos conciliar desenvolvimento com preservação ambiental”, “urge adequar os projetos mitigando os impactos socioambientais”, “temos que adequar os grandes projetos dentro das normas ambientais”. Isso é uma mentira. Busca-se dourar a pílula, criando uma fachada de preocupação socioambiental para viabilizar a continuidade da máquina de moer vidas. As megaempresas são geridas por executivos que, amarrados no mastro no navio, ouvem e se deleitam com o canto da sereia do capital. De outro lado, seguem os trabalhadores amarrados, (em)pregados aos seus postos de trabalho, sem ter outra alternativa de vida, sustentando o sistema a troco de quase nada.
“A contínua aceleração das mudanças na humanidade e no planeta junta-se, hoje, à intensificação dos ritmos de vida e trabalho (18).” O produtivismo, o trabalho por metas, a intensificação do ritmo de trabalho, a produção o mais rápido possível, a terceirização e a precarização das condições de trabalho estão desumanizando milhões de pessoas. Aumenta-se assustadoramente o número de adoecimentos por trabalho extenuante.
A poluição afeta a todos, causada pelo transporte, pela fumaça da indústria, pelas descargas de substâncias que contribuem para a acidificação do solo e da água, pelos fertilizantes, inseticidas, fungicidas, pesticidas e agrotóxicos em geral (...). A tecnologia, ligada à finança, é incapaz de ver o mistério das múltiplas reações que existem entre as coisas e, por isso, às vezes resolve um problema criando outros (20).”
Não é apenas uma questão de incapacidade. A tecnologia não é neutra. Ela está, salvo exceções, subserviente aos interesses dos grandes conglomerados econômicos. Logo, a raiz reside no capital que usa a tecnologia para oprimir. A tecnologia resolve um problema, mas cria outras grades, que prenderão muita gente.
Os defensores da “sociedade de mercado” exaltam o crescimento econômico com constante aumento da produção de mercadorias, como se isso fosse caminho para a felicidade de todos. O que escondem é que “produzem-se anualmente centenas de milhões de toneladas de resíduos altamente tóxicos e radioativos. A Terra, nossa casa única e comum, parece transformar-se cada vez mais em um imenso depósito de lixo (21).” Ora, quanto mais o capitalismo se desenvolve mais concentra riquezas e devasta socioambientalmente o Planeta.
Urge superar a cultura do descartável, construindo uma sociedade sustentável. “Ainda não se conseguiu adotar um modelo circular de produção que assegure recursos para todos e para as gerações futuras e que exige limitar, o mais possível, o uso dos recursos não renováveis (22).” Precisamos desacelerar a máquina de moer vidas. É hora de dar mais valor à nossa Casa Comum e aos bens naturais, que não são apenas “recursos naturais”, assim vistos quando reduzidos ao aspecto estritamente econômico.

5.4         5.4 - Mudanças climáticas e outras questões
Estamos perante um preocupante aquecimento do sistema climático (..) devido a alta concentração de gazes com efeito de estufa (anidrido carbônico, metano, óxido de azoto e outros) (23) (..) O aquecimento influi no ciclo do carbono. Cria um ciclo vicioso que agrava ainda mais a situação e que incidirá sobre a disponibilidade de bens  essenciais como a água potável (..) A perda das florestas tropicais piora a situação, pois estas ajudam a mitigar a mudança climática (..)  A subida do nível do mar pode criar situações de extrema gravidade, se se considerar que um quarto da população mundial vive à beira-mar (24).”
 Que bom que o papa Francisco ecoe esses alertas que vem sendo feitos por milhares de cientistas e experimentado por bilhões de pessoas no mundo!
Está ocorrendo um aumento assustador dos impactos ambientais. Os atingidos por grandes projetos de mineração, de barragens e de hidroelétricas alertam: eles não são apenas atingidos, mas massacrados. Mais: projetos de energia eólica, considerada como energia limpa, estão causando impactos socioambientais em vários estados do Nordeste brasileiro. Escondendo-se por detrás da capa de combustível limpo, as grandes empresas da monocultura de cana-de-açúcar submetem milhares de pessoas a trabalho exaustivo, dizimam nascentes e devastam a saúde de milhões de pessoas com as nuvens de fumaça dos canaviais invadindo as cidades.
Anima-nos muito na luta ver o papa Francisco se posicionar, denunciando a privatização das águas e a restrição do seu acesso aos empobrecidos:
Enquanto a qualidade da água disponível piora constantemente, em alguns lugares cresce a tendência para se privatizar esse recurso escasso, tornando-se uma mercadoria sujeita às leis do mercado divinizado. Na realidade, o acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos. Este mundo tem uma grave dívida social para com os pobres que não têm acesso à água potável, porque isto é negar-lhes o direito à vida radicado na sua dignidade inalienável (30).
Vários movimentos sociais e ambientais denunciam constantemente a destruição dos nossos biomas, como o Cerrado, a Amazônia, o Pantanal, os Pampas, a Caatinga e a Mata Atlântica, com a consequente perda de biodiversidade. Francisco também assume esta causa com vigor:
A perda de florestas e bosques implica simultaneamente a perda de espécies que poderiam constituir, no futuro, recursos extremamente importantes não só para a alimentação, mas também para a cura de doenças e vários serviços (32). Anualmente, desaparecem milhares de espécies vegetais e animais (33).
Há um problema que está na luta cotidiana dos movimentos sociais, e que o papa abordou com clareza. Os estudos de impactos ambientais dos grandes projetos de interesse do capital, realizados pelas empresas, geralmente são “para inglês ver”. Subestimam drasticamente os impactos sociais, econômicos e ambientais que acontecerão e exaltam os pretensos benefícios “sociais”. As comunidades vistas como indiretamente afetadas normalmente são desconsideradas. Muitos dos afetados diretamente são excluídos e a cantilena mentirosa se repete à exaustão: “geraremos muitos empregos e desenvolvimento para a região”. Dizem, mas não é assim que acontece. Todos nós somos afetados de alguma maneira pelos impactos socioambientais negativos.
Quando se analisa o impacto ambiental de qualquer iniciativa econômica, costuma-se olhar para os seus efeitos no solo, na água e no ar, mas nem sempre se inclui um estudo cuidadoso do impacto na biodiversidade, como se a perda de algumas espécies ou de grupos animais ou vegetais fosse algo de pouca relevância (35).”
Outro problema socioambiental, que atinge uma imensa área do Brasil e é normalmente ignorado, consiste na lenta perda de qualidade dos nossos mares e oceanos. Francisco alerta:
Os oceanos contêm não só a maior parte da água do planeta, mas também a maior parte da vasta variedade dos seres vivos (40). Passando aos mares tropicais, encontramos os recifes de coral, que equivalem às grandes florestas da terra firme, porque abrigam cerca de um milhão de espécies, incluindo peixes, caranguejos, moluscos, esponjas, algas e outras. Hoje, muitos dos recifes de coral no mundo já são estéreis ou encontra-se num estado contínuo de declínio (41).
Quem transformou o maravilhoso mundo marinho em cemitérios subaquáticos despojados de vida e de cor?”(41)”, interpela-nos o papa Francisco, citando Carta Pastoral dos Bispos das Filipinas. Eh! Olhando de longe o mar, só se vê muita água. Mas, se observarmos de perto, descobriremos que os oceanos e mares são grandes berços de vida. Infelizmente vêm sendo irresponsavelmente envenenados pelo lixo de todo tipo.
Uma importante bandeira dos movimentos populares, amplamente defendida no nosso continente latino-americano, diz respeito à segurança e soberania alimentares. Ou seja, os mecanismos para produzir e distribuir alimentos, de forma justa, saudável e ecologicamente sustentável. Também desta questão se ocupa a Laudato Si. Denuncia que “se desperdiça aproximadamente um terço dos alimentos produzidos”, e “a comida que se desperdiça é como se fosse roubada da mesa do pobre (50).” O problema de fundo não é a falta de alimentos, mas a concentração dos alimentos que impede sua socialização. No capitalismo, alimento é considerado como mercadoria, e não um direito humano fundamental. Outro problema: se produz em quantidade cada vez maior, mas com a qualidade cada vez menor. Ou seja, com o uso indiscriminado de agrotóxico, a alimentação está cada vez mais envenenada. Enfim, a comida desperdiçada e envenenada furta dos pobres a saúde e o bem-estar.
O papa assume na Encíclica Laudato Si’ o que disseram os bispos do Paraguai na Carta pastoral El campesino paraguayo y la tierra, de 1983:
Cada camponês tem direito natural de possuir um lote razoável de terra, onde possa gozar de segurança existencial. Este direito deve ser de tal forma garantido que o seu exercício não seja ilusório, mas real. Isto significa que, além do título de propriedade, o camponês deve contar com meios de formação técnica, empréstimos, seguros e acesso ao mercado (94).
O papa Francisco apoia a agricultura familiar e critica o agronegócio como um causador do êxodo rural ao dizer:
Há uma grande variedade de sistemas alimentares rurais de pequena escala que continuam alimentando a maior parte da população mundial, utilizando uma porção reduzida de terreno e água e produzindo menos resíduos, quer em pequenas parcelas agrícolas e hortas, quer na caça e coleta de produtos silvestres, quer na pesca artesanal. As economias de larga escala, especialmente no setor agrícola, acabam forçando os pequenos agricultores a vender as suas terras ou a abandonar as suas culturas tradicionais (129).
Respaldando o documento Uma terra para todos, dos bispos da Argentina, de 2.005, o papa Francisco questiona o uso de sementes e produtos transgênicos ao afirmar:
Em muitos lugares, na sequência da introdução das culturas transgênicas, constata-se uma concentração de terras produtivas nas mãos de poucos, devido ao “progressivo desaparecimento de pequenos produtores, que, em consequência da perda das terras cultivadas, se viram obrigados a retirar-se da produção direta (134).”
O papa Francisco denuncia a desigualdade planetária. Citando a Carta pastoral dos Bispos da Bolívia, afirma: “tanto a experiência comum da vida cotidiana como a investigação científica demonstram que os efeitos mais graves de todas as agressões ambientais recaem sobre as pessoas mais pobres (48).”
Em uma sociedade onde os pretensos valores da sociedade capitalista – individualismo, competição, egocentrismo e acumulação – são trombeteados aos quatro ventos, todo mundo de alguma forma agride o meio ambiente. Mas os principais devastadores socioambientais são os que movimentam “as grandes máquinas do mercado” que como dragões vão cuspindo fogo e deixando um rastro de devastação por onde passam. Nesse sentido, “uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres (49).”
Ora, a justiça socioambiental implica em justiça agrária, justiça urbana e justiça social. E conquistaremos isso com lutas coletivas por terra, por moradia digna, por direitos fundamentais humanos. Como luz, fermento e sal, os/as militantes dos Movimentos Sociais estão comprometidos de forma abnegada nessas causas.

5.5       5.5 - Ouvindo o grito dos pobres e o grito da terra
Os gemidos da irmã terra se unem aos gemidos dos abandonados do mundo, com um lamento que reclama de nós outro rumo (53).” Gemidos que se tornam, cada vez mais, clamores ensurdecedores. Qual rumo seguir? Com sabedoria, o papa Francisco pondera: “as soluções não podem vir de uma única maneira de interpretar e transformar a realidade. É necessário recorrer também às diversas riquezas culturais dos povos, à arte e à poesia, à vida interior e à espiritualidade (63).” Sim, lutas coletivas são imprescindíveis, mas junto com o cultivo das artes e culturas populares, da música, e o cultivo de uma mística libertadora.
Diz o papa Francisco: A narração do Gênesis, que convida a dominar a terra (cf. Gn 1,28), apresentando uma imagem do ser humano como dominador e devastador, não é uma interpretação correta da Bíblia (..)  É importante ler os textos no seu contexto, com uma justa hermenêutica, e lembrar que eles nos convidam a “cultivar e guardar” o jardim do mundo (cf. Gn 2,15) (67) (..) A Bíblia não dá lugar a um antropocentrismo despótico, que se desinteressa das outras criaturas (68).” Arrisco-me a dizer que a Bíblia não referenda nenhuma forma de antropocentrismo.
Francisco reafirma um princípio inarredável do Ensinamento social da Igreja: o destino comum dos bens.
A tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada, e salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada. ... Sobre toda a propriedade particular pesa sempre uma hipoteca social, para que os bens sirvam ao destino geral que Deus lhes deu (93).
Com os bispos da Nova Zelândia, o papa pergunta “que significado tem o mandamento “não matarás”, quando “uns vinte por cento da população mundial consomem recursos numa medida tal que roubam às nações pobres, e às gerações futuras, aquilo de que necessitam para sobreviver (95).” Isso nos leva a recordar o Decálogo bíblico (Ex 20,1-17), que ao longo da história foi reduzido aos “Dez Mandamentos”. O Decálogo não se dirige apenas a pessoas individualizadas, mas a todo o povo, à sociedade inteira. Logo, não são apenas as pessoas que não podem matar, roubar ou adulterar. É a sociedade,  o Estado, as  empresas e as instituições que não podem matar, nem direta e nem indiretamente. Assim, o decálogo constitui princípios da Constituição de um povo em marcha de libertação, de emancipação.
Os Movimentos Sociais tem claro que é insuficiente alertar a todos para aderir a um estilo de vida simples e austero e fazer “sua parte”. É preciso “derrubar do trono os poderosos e elevar os humildes” (Lc 1,52), o que se fará com enfrentamentos, com lutas coletivas de resistência e ensaios de propostas transformadoras. Urge amar os injustiçados nos colocando ao lado deles, para com eles e a partir deles lutarmos pelos seus direitos sociais negados. É urgente amarmos os opressores fazendo o possível para retirarmos das suas mãos as armas da opressão.
Muitos daqueles que detêm mais recursos e poder econômico ou político parecem concentrar-se sobretudo em mascarar os problemas ou ocultar os seus sintomas, procurando apenas reduzir alguns impactos negativos de mudanças climáticas. ... Tornou-se urgente e imperioso o desenvolvimento de políticas capazes de fazer com que, nos próximos anos, a emissão de anidrido carbônico e outros gases altamente poluentes se reduza drasticamente, por exemplo, substituindo os combustíveis fósseis e desenvolvendo fontes de energia renovável (26).”

5.6       - A opressão que vem da tecnocracia
O papa Francisco aponta a tecnocracia como raiz humana da crise ecológica; o governo com decisões ancoradas em argumentos “técnicos”, que não são neutros e nem somente científicos. Diz ele: “A humanidade entrou numa nova era, em que o poder da tecnologia nos põe diante de uma encruzilhada. Somos herdeiros de dois séculos de ondas enormes de mudanças” (102). Mas os avanços tecnológicos não têm sido democratizados. Ao contrário, têm fortalecido as desigualdades sociais aumentando o abismo entre enriquecidos e empobrecidos. O papa pergunta: “Poder-se-á negar a beleza de um avião ou de alguns arranha-céus? (103).” São exuberantes, sim, mas não podemos esquecer que grande parte da população continua excluída de acessar os aviões e muitos arranha-céus são catedrais do mercado idolatrado.
Francisco denuncia a falta de democratização do paradigma tecnocrático:
Os produtos da técnica não são neutros, porque criam uma trama que acaba condicionando os estilos de vida e orientam as possibilidades sociais na linha dos interesses de determinados grupos de poder. Certas opções, que parecem puramente instrumentais, na realidade são opções sobre o tipo de vida social que se pretende desenvolver (107).
Sim, a técnica geralmente antes de criar produtos mercadológicos cria consumidores, despertando desejos e necessidades artificiais.
O papa advoga no sentido de “limitar a técnica, orientá-la e colocá-la ao serviço de outro tipo de progresso, mais saudável, mais humano, mais social, mais integral (112). Ora, o rumo emancipatório parece exigir mais do que limitar o desempenho atual e buscar outro tipo de progresso. Sugerimos ainda: acreditar, fomentar e desenvolver técnicas populares, fruto da sabedoria das populações tradicionais, como as alternativas camponesas de convivência com o semiárido. O atual modelo de progresso não é saudável, nem humano, nem social, nem integral. É, sim, doentio, desumano, egocêntrico e desintegrador do tecido social. Não dá para remendar; é preciso uma mudança radical.

5.7       5.7 - Nem antropocentrismo e nem biocentrismo
Ao alertar para o risco de considerar a pessoa humana apenas mais um ser entre outros, o papa Francisco diz que um antropocentrismo desordenado não deve necessariamente ser substituído por um “biocentrismo” (118). Recair em um biocentrismo será certamente um  problema. Mas todo e qualquer tipo de antropocentrismo é problema, pois hierarquiza as relações entre os humanos e outros seres vivos. Essa hierarquização pavimenta o caminho para estruturação de poder-dominação, o que implementa violência sem fim.
O papa não esquece a importância de uma ecologia cultural. Afirma:
O desaparecimento de uma cultura pode ser tanto ou mais grave do que o desaparecimento de uma espécie animal ou vegetal. A imposição de um estilo hegemônico de vida ligado a um modo de produção pode ser tão nocivo como a alteração dos ecossistemas (145).
Para orientar nossa ação conjunta, o papa Francisco reconhece que sobre a crise ecológica todas as pessoas têm responsabilidades, mas diferenciadas. Com os bispos da Bolívia, assevera: “Os países que foram beneficiados por um alto grau de industrialização, à custa de uma enorme emissão de gases com efeito de estufa, têm maior responsabilidade em contribuir para a solução dos problemas que causaram (170).” Tem sim, mas se não forem pressionados pelos cidadãos/ãs e os movimentos sociais, os países que acumularam riquezas e poder jamais irão descer do pedestal voluntariamente, pois o poder político que os governa está em grande parte no comando do grande capital transnacional (cf. 175). Solidariedade todo mundo pode fazer, mas lutar por justiça implica contrariar interesses de quem está no poder. Poucos se atrevem a fazer isso. Por isso é preciso opção pelos pobres, o que implica revelar conflitos e lutar para superá-los de forma justa.
Ao pugnar por diálogo e transparência nos processos decisórios, o papa Francisco propõe: “Em qualquer discussão sobre um empreendimento, dever-se-á por uma série de perguntas, para poder discernir se este levará a um desenvolvimento verdadeiramente integral: Para que fim? Por qual motivo? Onde? Quando? De que maneira? A quem ajuda? Quais são os riscos? A que preço? Quem paga as despesas e como o fará? (185).”
Bastante lúcido, o papa pergunta: “Será realista esperar que quem está obcecado com a maximização dos lucros se detenha para considerar os efeitos ambientais que deixará às próximas gerações? (190)” Óbvio que não. Para evitarmos o apocalipse que está sendo engendrado pelo mercado, as mudanças necessárias virão a partir da luta coletiva e permanente dos injustiçados, ou não virá.
Francisco nos motiva a educar para a aliança entre a humanidade e o ambiente com pequenas ações diárias, em um estilo de vida simples, humilde e sóbrio. Diz ele que isso passa por “evitar o uso de plástico e papel, reduzir o consumo de água, separar o lixo, cozinhar apenas aquilo que razoavelmente se poderá comer, tratar com desvelo os outros seres vivos, servir-se dos transportes públicos ou partilhar o mesmo veículo com várias pessoas, plantar árvores, apagar as luzes desnecessárias ... (211).”
Apontando para a necessidade de encarnarmos um estilo de vida simples, humilde e austero, o papa denuncia a falta de liberdade para a maioria na sociedade do mercado divinizado: “O mercado tende a criar um mecanismo consumista compulsivo para vender seus produtos, as pessoas acabam sendo arrastadas pelo turbilhão de compras e gastos supérfluos. O consumismo obsessivo é o reflexo subjetivo do paradigma tecnoeconômico (203). ... O referido paradigma faz crer a todos que são livres, pois conservam uma suposta liberdade de consumir, quando na realidade apenas a minoria que detém o poder econômico e financeiro possui a liberdade (203).” Exatamente. Se não há liberdade real para a maioria, não há Estado Democrático de Direito e nem democracia efetiva.
Como um abnegado humanista e semeador de utopia que nos faz caminhar e lutar, Francisco afirma:
Atrevo-me a propor de novo o desafio considerável da Carta da Terra, de 2000: “Como nunca antes na história, o destino comum obriga-nos a procurar um novo início (...). Que o nosso seja um tempo que se recorde pelo despertar de uma nova reverência diante da vida, pela firme resolução de alcançar a sustentabilidade, pela intensificação da luta em prol da justiça e da paz e pela jubilosa celebração da vida” (207).

5.8       - Enfim, a luta continua. E o diálogo também.
Há muitas outras afirmações, reflexões e posicionamentos do papa Francisco na Encíclica Laudato Si’ que merecem ser ressaltadas, comentadas e difundidas. Existem também alguns pontos que, lendo na perspectiva dos Movimentos Sociais, exigem ampliação, aprofundamento ou mudança.
Ficamos por aqui, com profundo sentimento de gratidão, admiração, respeito e alegria por termos guiando a Igreja Católica o papa Francisco: uma pessoa mística, profética, fraterna e terna. Para ele, bom pastor e profeta, “tiramos o chapéu”!
De várias formas, o papa Francisco, assim como Jesus de Nazaré, está nos dizendo: “Vocês devem resolver o problema do Saneamento Básico. O povo está faminto também de saneamento básico. É responsabilidade de vocês resolverem esse gravíssimo problema que leva à morte de milhares de crianças e pessoas em todo o Brasil.”





[1] Padre da Ordem dos Carmelitas, bacharel e licenciado em Filosofia pela UFPR, bacharel em Teologia, mestre em Exegese Bíblica, doutorando em Educação na FAE/UFMG, assessor de CEBs, CPT, CEBI e SAB; e-mail: gilvanderlm@gmail.comwww.freigilvander.blogspot.com.br – face: Gilvander Moreira

[2] HAROLDO REIMER, “Amós – profeta de juízo e justiça”, em Os livros proféticos: a voz dos profetas e suas releituras, RIBLA 35-36, Ed. Vozes, Petrópolis e Ed. Sinodal, São Leopoldo, 2000, p. 171.
[3] Sugiro que antes de você continuar a leitura do texto, leia na Bíblia Am 4,4-13. Assim você entenderá melhor a reflexão que se segue.
[4] Cf. Ex 7,14.22; 8,11.15.28; 9,7.34.
[5] Gato escaldado com água quente tem medo até de água fria, diz a sabedoria popular.
[6] HAROLDO REIMER, “Amós – profeta de juízo e justiça”, em Os livros proféticos: a voz dos profetas e suas releituras, RIBLA 35-36, Ed. Vozes, Petrópolis e Ed. Sinodal, São Leopoldo, 2000, p. 188.

[7] A fé em um Deus que é infinito amor não coaduna com a existência de inferno como um lugar de punição. No entanto, se não há algum tipo de inferno, os opressores ficarão sem nenhuma punição?
[8] HAROLDO REIMER, “Amós – profeta de juízo e justiça”, em Os livros proféticos: a voz dos profetas e suas releituras, RIBLA 35-36, Ed. Vozes, Petrópolis e Ed. Sinodal, São Leopoldo, 2000, p. 189.

[9] Cf. Artigo de frei Gilvander Moreira “A Bíblia respira profecia: se calarem a voz dos profetas...”, Em Revista ESTUDOS BÍBLICOS, Vol. 29, n. 113, Petrópolis, Ed. Vozes,  jan/mar 2012, p. 37-56.

[10] Cf. no You Tube os dois Filmes-documentários de Sílvio Tendler O Veneno está na mesa, I e II.

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Espiritualidade da Compaixão-misericórdia a partir do Evangelho de Lucas. Por frei Gilvander Moreira

Espiritualidade da Compaixão-misericórdia a partir do Evangelho de Lucas.
Por frei Gilvander Luís Moreira[1]

Pensando no Ano da Misericórdia anunciado pelo papa Francisco e também conectado aos clamores dos injustiçados, refletiremos aqui sobre a Espiritualidade da Compaixão-misericórdia a partir do Evangelho de Lucas.
O Evangelho de Lucas é boa notícia para todo o povo, mas a partir dos injustiçados, em uma região fortemente marcada pela cultura grega que justificava a divisão da sociedade entre intelectuais e trabalhadores manuais. Estes eram obrigados a viver pobres e escravos e só obedeciam, enquanto aqueles tinham o direito de ser ricos, livres e mandavam. As mulheres eram submissas aos homens; viviam no mundo privado da casa (oikia). Os homens, machistas e patriarcais, consideravam as mulheres como objetos, não eram vistas como deusas e nem tão pouco como pessoas. Nada de participação ativa das mulheres. Nem na sociedade, nem nas decisões familiares ou políticas (Lc 10,38‑42). O episódio do encontro de Jesus com Marta e Maria revela que Marta é o protótipo da mulher na cultura grega. Inteiramente absorvida pelas preocupações domésticas (Lc 10,40), não se importando em exercer sua cidadania. Maria participa do mundo público exercendo sua cidadania ao se relacionar com Jesus cara‑a‑cara como pessoa (Lc 10,39). Importante observar que Jesus confirma o jeito de ser de Maria ao afirmar: “Maria escolheu a melhor parte...” (Lc 10,42). Assim Jesus ajuda muito as mulheres a romperem com o patriarcalismo e com o machismo reinante na sociedade.
A mentalidade grega justificava a existência de classes na sociedade como algo normal. Logo era proibido tacitamente contestar o machismo, a escravidão (tida como natural pelo filósofo Aristóteles), a exploração, a divisão entre ricos e pobres. O importante era ser sabido (e não sábio), ter conhecimento teórico. A prática era algo secundário e coisa de escravo. O Império Romano soube usar muito bem a mentalidade grega para “perpetuar” a sua dominação, pois a cultura grega incentivava as pessoas a esquecerem a realidade, conformar‑se dentro de estruturas sociais injustas e buscar consolo em outros mundos.
O Evangelho de Lucas ataca como cupim a espinha dorsal da cultura grega e do Império Romano. Mas o Jesus apresentado por Lucas não vem com um contra‑poder medir forças. Não confronta um poder econômico‑político‑cultural e militar com outro poder. A proposta é infiltração como regra e confrontação como exceção. Infiltrar, sempre; confrontar, às vezes. Isto se dá na radicalização de uma Espiritualidade da Compaixão‑misericórdia. As ações, comportamento e ensinamento de Jesus renovam as pessoas integralmente por dentro e por fora e modificam o meio revolucionando as relações sócio‑político‑econômico‑cultural‑religiosas. Jesus propõe pelo testemunho, não impõe pelo discurso. Deixa que a pessoa responda livremente ao convite para segui‑lo (Lc 4,38‑39). Assim Jesus e seus discípulos(as) vão cativando e irradiando bondade por onde passam.
No Evangelho de Lucas, no grego, há quatro termos para expressar o campo semântico da Compaixão‑misericórdia: 1) Esplangnísthè; 2) Oiktirmones; 3) Éleos; 4) Ilásteti. As traduções portuguesas variam muito. Identificam normalmente Compaixão, Misericórdia, Piedade, Bondade ...
1) As Palavras gregas e seus significados.
1.1) Esplangnisthe (ou Splanchnizomai) ocorre três vezes em Lucas: Lc 7,13; 10,33 e 15,20. São textos exclusivos de Lucas. Não constam dos outros Evangelhos canônicos. Revelam características específicas de Lucas. A melhor tradução para esplangnísthè é Compaixão. Trata‑se de um substantivo! Denota uma realidade física muito humana. Significa o movimento das entranhas humanas (vísceras, ventre, coração,...) causado pela dor do outro ao ser visto. É um revolver das entranhas humanas. É sofrer com, sentir com. É se comover interiormente pela dor do outro. É ficar sensibilizado e afetado pela dor do outro. O sofrimento do outro me contagia e eu passo a sentir com o outro. Psicologicamente compaixão é atender o outro, envolver‑se com o que sofre e assumir com ele a sua dor. É dirigir a minha atenção à pessoa que clama por Misericórdia. É fazer da pessoa, no momento, o absoluto da vida de modo que ela se sinta acolhida, valorizada, compreendida e envolvida. A sede da compaixão para a mãe está no seio materno, nas entranhas (IRs 3,26). Para o pai está no coração (Gn 43,30). A porta de entrada da compaixão no nosso corpo é a visão, via de regra, ou então a audição. É pelo olhar, prioritariamente, ou pelo ouvir que a dor do outro flui para dentro da gente fazendo nossas entranhas e todo o nosso corpo tremer, sentir calafrio, revolver‑se. A compaixão irradia das entranhas humanas (ventre, vísceras, coração) se espalhando por todo o corpo, como uma pedrinha jogada no meio do lago vai repercutindo até às extremidades do corpo. O coração dói, os olhos choram, a cabeça se indigna, todo o corpo treme e daí brota o convite à fidelidade. A compaixão é como um vulcão que vai sacudindo por dentro e nos chacoalhando até irromper nas mãos e nos pés com convite para ações solidárias. “A estrutura da Compaixão consiste em que o sofrimento alheio se interioriza na pessoa ao ser visto; este sofrimento interiorizado gera uma re‑ação (ação, portanto)”[2]. A compaixão está não só no princípio da ação humana, mas acompanha toda a ação humana e deixa marcas indeléveis na pessoa que se deixa guiar pelo outro sofredor. Sendo fiel à dor do outro, com solidariedade, a Misericórdia está efetivada.
1.2) Oiktirmones é um termo semelhante a esplangnísthè. É um adjetivo. A melhor tradução é misericordioso. Ocorre uma única vez em Lucas: Lc 6,36.
1.3) Éleos aparece 10 vezes no Evangelho de Lucas: Lc 1,50.54.58.72.78; 10,37; 16,24; 17,13; 18,38.39. É um termo mais teológico, é uma visão de fé. É mais amplo que esplangná. É compaixão e fidelidade. Não é apenas se comover, mas é também se fazer solidário. É ser fiel ao clamor por compaixão. É amor misericordioso. É amor fiel e gratuito de Deus. É acolher o outro sofredor. A compaixão (esplangnísthè) é a porta de entrada da casa da misericórdia (éleos). Só consegue ser misericordioso, ou seja, ser solidário e fraterno, quem se deixa contagiar pela compaixão. Só um compassivo pode ser misericordioso. Logo para ser discípulo/a de Jesus de Nazaré e do seu Evangelho é preciso ter a coragem de contemplar cara‑a‑cara o outro sofredor. Quem desvia o olhar do outro que está sofrendo não se comove. Quem racionaliza ao deparar‑se com uma vítima apresentando justificativas teóricas que são, na verdade, “bodes expiatórios”, não se comove também. Não se comovendo, não poderá ser misericordioso. Porém, todo misericordioso é compassivo, mas nem todo compassivo é misericordioso, pois há pessoas que se comovem ao ver o outro sofrendo, mas não dão o passo adiante: fazer‑se fiel ao clamor por misericórdia. “Misericórdia é uma ação, mais exatamente, uma re‑ação frente ao sofrimento alheio interiorizado, que chegou até às entranhas e o coração próprios. Esta reação é motivada exclusivamente por esse sofrimento. O sofrimento alheio interiorizado ‑ compaixão ‑ é o princípio da reação da Misericórdia. Esta se converte no princípio configurador de toda a ação de Deus, porque não está só na origem, mas permanece como constante fundamental em todo o Antigo Testamento (a parcialidade de Deus para com as vítimas pelo mero fato de serem vítimas, a ativa defesa que faz das vítimas e seu desígnio libertador para com elas”[3]. Éleos aparece muito na Septuaginta (LXX). Traduz, quase sempre, o termo hebraico hesed que aparece centenas de vezes no Primeiro Testamento bíblico, sobretudo nos Salmos (127 vezes). Hesed indica o compromisso de Deus dentro da Aliança com o povo. É um termo central na aliança entre Deus e o povo. Na compaixão‑misericórdia de Jesus revela‑se o Hesed de Deus. “Hesed” indica uma profunda atitude de bondade. “Quando esta disposição  se estabelece entre duas pessoas, estas passam a ser, não somente benévolas uma para com a outra, mas ao mesmo tempo, reciprocamente fiéis por força de um compromisso interior, portanto também em virtude de uma fidelidade para consigo próprias”[4] A Bíblia de Jerusalém traduz éleos por Misericórdia.
1.4) Ilásteti aparece uma vez no Evangelho de Lucas: Lc 18,13 na boca do publicano. É o imperativo do verbo (H)ilaskesthai. A palavra grega, normalmente traduzida por: “Tem piedade ou seja propício!” Quer dizer: Seja propício para comigo! Ou seja, tire de mim aquilo que me impede de relacionar com você, meu Deus! Ou seja, a pessoa que clama por (H)ilásmos sente que quebrou a aliança com Deus, que não está amando como é amada e reconhece‑se incapaz de restabelecer a aliança com Deus. Sente que a aliança foi quebrada e somente por iniciativa de Deus pode ser restabelecida. É um termo com conotação jurídica que visa através de um rito de propiciação restabelecer a comunicação com Deus. Quem clama por (H)ilásmos reconhece que Deus é bondoso, misericordioso, maior que nossa fragilidade. Deus é miseriordiosíssimo. Deus é éleos, (misericórdia) e, por isso, podemos clamar por (H)ilásmos.
2)      As Palavras gregas nas frases.
2.1) O termo Esplangnisthe aparece três vezes no Evangelho de Lucas, em passagens exclusivas do terceiro evangelho. Demonstram características específicas de Lucas.
l) Em Lc 7,13 diz que Jesus ao ver a viúva de Naim no enterro do seu único filho: “ ... ficou comovido... ou “ ... ficou cheio de íntima compaixão”. Esta é a única frase do Evangelho aonde Lucas diz explicitamente que Jesus “ficou cheio de íntima compaixão”.
2) Em Lc 10,33 onde diz que um samaritano, ao se aproximar de uma pessoa         despojada, espancada e caída à margem da estrada: “...viu‑o e moveu‑se de compaixão”. Aqui o compassivo não é Jesus, mas um samaritano.
3) Em Lc 15,20 onde, na parábola do Pai misericordioso, diz que o Pai ao ver de longe o filho que retornava à casa paterna: “.. viu‑o e encheu‑se de Compaixão”. Nos três termos aparecem a compaixão a partir de um contato quase físico. É pelo ver que se desperta a compaixão.

2.2) O termo Éleos como substantivo ocorre seis vezes no Evangelho de Lucas:
l) Em Lc 1,50: “A sua misericórdia (éleos) perdura de geração em geração”.
2) Em Lc 1,54: “Socorreu Israel, seu servo, lembrando de sua Misericórdia (éleos)”.
3) Em Lc 1,58, onde o nascimento de João Batista é visto pelos vizinhos e parentes como fruto da misericórdia (éleos) de Deus para com Isabel. Duas vezes ocorre no cântico de Zacarias.
4) Em Lc 1,72, o nascimento de João Batista é celebrado como: “... para fazer Misericórdia (éleos) com nossos pais” e para cumprir a aliança feita com o povo. Deus, por ser misericordioso, fez a aliança com o povo e, por ser misericordioso, permanece fiel à aliança contribuindo para com a libertação-salvação de todos.
5) Em Lc 1,78, os termos éleos e esplangná aparecem combinados. Aí “graça ao misericordioso coração (entranhas do nosso Deus), João Batista é profeta para “preparar os caminhos do Senhor”(Lc 3,4). Nestes cinco casos, o termo éleos se refere a Deus. Fazem reminiscência do termo hebraico hesed do Primeiro Testamento. Revelam que o Deus misericordioso do Primeiro Testamento continua agindo no Segundo Testamento.
6) Em Lc 10,37, no arremate da parábola do bom samaritano, o termo éleos aparece combinado com o termo grego poiésas (verbo fazer no pretérito perfeito do indicativo). Jesus, após contar a parábola do bom samaritano, pergunta ao escriba: “ ‑ Qual dos três, ... se tornou o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes? “ O escriba responde: “ ‑ Aquele que fez (poiésas) misericórdia (éleos) para com ele.”

No começo, o samaritano teve compaixão (esplangnísthè), mas no final do episódio, Jesus não pergunta: Quem teve compaixão? Mas: “Quem fez Misericórdia (poiésas e éleos)?” (Lc 10,37). Compaixão só é insuficiente! É necessário misericórdia. Não basta se comover interiorizando o sofrimento alheio! É preciso exercer a solidariedade libertadora e emancipatória, não como cumprimento de um dever, ou de uma norma; mas como consequência espontânea da comoção que desperta o amor gratuitamente.

2.2.1) O termo éleos como verbo aparece quatro vezes no Evangelho de Lucas:

l) Em Lc 16,24, onde diz que morreu um rico granfino que se banqueteava cotidianamente. Na mansão dos mortos, atormentado, vê Abraão, e, no seu seio, Lázaro, o pobre leproso, e exclama: “Pai Abraão, tem compaixão de mim!” Ou seja, “compadece‑te de mim!” Aqui o insensível quando cai em sofrimento e ao ver outro sofredor reconhece a sua condição de frágil e clama por misericórdia (éleos).
2) Em Lc 17,13, onde diz que dez leprosos vêm ao encontro de Jesus e clamam: “Jesus, mestre, tem compaixão de nós!”.
3) Em Lc 18,38, onde diz que um cegado, em situação de rua em Jericó, ao ouvir que Jesus passava perto dele pôs‑se a gritar: “Jesus, Filho de Davi, tem compaixão (éleos) de mim!”
4) Em Lc 18,39, onde diz que o cegado sendo silenciado gritava mais alto ainda: “Filho de Davi, tem compaixão de nós!”
Nestes casos, exceto Lc 16,24, são os injustiçados (cegados em situação de rua, leprosos ...) que clamam a Jesus por misericórdia. Interessante é que os sofredores não clamam por compaixão  (esplangnísthè), mas por misericórdia (éleos). Os sofredores e injustiçados não querem que os outros fiquem apenas comovidos, sensibilizados, pela dor deles, mas esperam que os outros deem um passo adiante: que sejam misericordiosos. Ou seja, que pratiquem a misericórdia exercendo solidariedade libertadora, não a que acomoda e tranquiliza consciência. A maior esperança dos injustiçados é que Jesus seja misericordioso para com eles e não apenas se comova com a dor deles.
2.3) O termo Oiktirmon(es) ocorre uma vez no singular e outra vez no plural no Evangelho de Lucas em uma passagem exclusiva de Lucas. Em Lc 6,36 onde é usado para caracterizar a fisionomia de Deus: “Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso”. São as pessoas que se auto‑julgam, se condenando ou não, na medida em que responde livremente ao projeto de Deus. Deus não julga, não condena, mas perdoa e doa a si mesmo aos outros.
2.4) O termo Ilásteti aparece uma única vez no evangelho de Lucas. Em Lc 18,13 em uma parábola contada por Jesus com o objetivo de questionar os fariseus. Estes se consideravam justos e salvos, não ladrões, não adúlteros, não publicanos. Eram os separados. Parte do povo considerava os fariseus como modelos de piedade e como a realização desse ideal que haviam concebido os escribas, os homens da ciência divina. Segundo Flávio Josefo, os fariseus tinham fama de serem mais piedosos que os demais e de observar conscienciosamente a Lei (cf. Guerra Judia 1,1,110). Jejuavam duas vezes por semana (a Lei prescrevia jejuar um vez por ano); Eram dizimistas fiéis. Jesus mostra que a oração farisaica não vale. O publicano é apresentado como modelo. É humilde. Bate no peito dizendo: “Meu Deus, tem piedade (ilásteti) de mim, pecador”. Não se absolutiza e reconhece a verdadeira fisionomia de Deus: compaixão‑misericórdia. O publicano faz a caminhada difícil para o único lugar que realmente interessa:  para dentro de nós mesmos. Por experienciar um Deus misericórdia neste mergulho em si mesmo e em Deus, o publicano se abre ao outro e clama: Piedade! Eis o caminho que uma Espiritualidade da Compaixão‑misericórdia apresenta para o nosso processo de humanização.
Referência.
JOÃO PAULO II. Encíclica Dives in Misericordia, de 30/11/1980, Doc. Pontifício n. 193.
SOBRIÑO, J., El Principio~Misericordia, Bajar de la cruz a los pueblos crucificados, col. “Presencia Teológica”, 67, Editorial Sal Terrae, Bilbao, España, 1992.

Belo Horizonte, MG, Brasil, 06 de janeiro de 2016.



[1] Assessor da CPT, do CEBI, de CEBs e do SAB; doutorando em Educação na FAE/UFMG. Esse texto aqui está publicado no Livreto “2016, ano da Misericórdia”. São Paulo: Província Carmelitana de Santo Elias, 2016, p. 29-36. gilvanderlm@gmail.comwww.freigilvander.blogspot.com.br Face: Gilvander Moreira
1  J. SOBRIÑO. El Principio~Misericordia, p. 26.
1  Ibidem, p. 33.
2  JOÃO PAULO II. Encíclica "Dives in Misericordia, de 30/11/1980, Doc. Pontifício n. 193, nota 52, p. 15.

O CASO DO HELICÓPTERO, por Antônio Pinheiro, de Belo Horizonte, 26/01/2016.

O CASO DO HELICÓPTERO

 Antônio Pinheiro, de Belo Horizonte, pai do Chico Pinheiro da TV Globo.

A liberdade de imprensa e o compromisso com a verdade são dois mitos que insistem em desafiar os profissionais que lidam diariamente com a informação.
Se por um lado, no caso brasileiro, os jornalistas ficaram livres daquela censura mais ostensiva, escancarada e torpe, própria dos regimes ditatoriais, de outro, eles continuam sofrendo cerceamento em sua liberdade de expressão por parte dos grupos econômicos e políticos que dão sustentação às empresas para as quais trabalham.
Assim, não são raras as ocasiões em que os jornalistas são simplesmente impedidos de abordar ou reportar determinados assuntos ou de noticiá-los de maneira mais clara ou isenta.
Ou eles se submetem à ordem estabelecida ou são demitidos.
Como leitor assíduo de jornais e, eventualmente procurado por jornalistas em função das posições políticas que adotei ao longo da minha vida pública, essa é uma questão que sempre me intrigou e despertou curiosidade.
Lembro-me de certa vez, quando exercia o mandato de deputado estadual na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), ter recebido em meu gabinete um jornalista que havia feito a cobertura de um dos meus pronunciamentos no plenário daquela Casa.
Tratava-se de um profissional respeitado pelos seus pares e pelos colegas parlamentares, que foi até minha sala tentar justificar-se comigo pelo fato de não ter dado o devido destaque ao teor do que eu havia dito em sua reportagem que saiu publicada em um grande jornal da capital mineira.
De acordo com esse profissional, cuja identidade, por motivos óbvios, peço licença para manter em sigilo, o jornal para o qual trabalhava, lhe pagava um salário insuficiente para cobrir as suas despesas.
Assim, para compor o seu orçamento, teve que buscar um segundo emprego. Achou-o na Assembleia Legislativa, que, como uma mãe, lhe pagava duas vezes mais do que recebia pelo jornal.
Em função disso, ficou clara a razão pela qual a sua matéria saíra incompleta, pois, segundo me explicou, ela deveria seguir certos protocolos, ter um certo viés capaz de atender a determinados interesses políticos partidários.
Já desconfiava disso, e tal fato só veio confirmar a censura camuflada que vigora em nosso Estado e em nosso país.
Um flagrante desrespeito à opinião pública e ao cidadão que paga seus impostos (e, que, indiretamente, paga os salários daquele jornalista e dos deputados), mas que tem subtraído por interesses escusos, o seu sagrado direito à informação.
Menciono este caso para lembrar-lhes de outra notícia, bem mais importante que saiu publicada na imprensa em 26/11/2013.
Ganhou logo as páginas dos jornais e os telejornais como mais um grande escândalo político, mas que, não obstante o seu potencial escandaloso, acabou sendo esquecido (ou abafado) pela mídia, já que ninguém fala mais sobre ele.
Trata-se do caso do helicóptero pertencente a uma empresa da família do senador Zezé Perrella (PDT-MG) que foi apreendido naquele dia transportando meia tonelada de cocaína.
Soube-se depois que a aeronave era pilotada por um funcionário da ALMG lotado no gabinete do filho do senador, o deputado Gustavo Perrella (SD), e que era abastecida com dinheiro público.
O helicóptero teria saído com a droga de São Paulo, fez escala em Divinópolis (MG), e depois seguiu rumo a uma fazenda em Afonso Cláudio (ES), onde foi preso pela Polícia Federal.
Ou seja: um helicóptero e pilotos pagos com dinheiro público para traficar 450 quilos de cocaína.
Estou enganado ou isso não é um escândalo? Um helicóptero transportando cocaína à custa do erário dos vazios cofres do Estado de Minas Gerais!
Diante disso, me vem à memória os recentes pronunciamentos feitos pelos deputados Sávio Souza Cruz quando denunciou da tribuna da ALMG que a Casa que nos representa é um “prostíbulo”, e  Sargento Rodrigues, que igualmente indignado, denunciou publicamente que há colegas seus que são “venais”.
Como a imprensa, conforme dito no início desse artigo, tem lá suas limitações para tratar determinados temas, indago então aos nossos caros parlamentares, se eles vão preferir vestir a carapuça ou dar um basta nessa situação escandalosa, investigando a fundo esse caso que associou a instituição ao tráfico de drogas e manchou vergonhosamente a sua imagem e história?
Quando darão uma satisfação à opinião pública? Quando esclarecerão a quem pertencia esta carga de desgraça, que é a cocaína? Qual será a punição que pretendem aplicar aos envolvidos? E como a ALMG será ressarcida pelo dinheiro que foi desviado?
Minas Gerais e o Brasil não merecem mais esse vexame moral, como bem disse o nobre jornalista Acílio Lara Resende, em artigo publicado no jornal “O Tempo” do dia 7 de janeiro de 2016. Nos diz ele que “além da inteligência, o Brasil perdeu a sua consciência moral.”
Volto a citar um provérbio bíblico: Se “um filho insensato é a desgraça dos pais”, não seriam um bando de políticos insensatos os responsáveis pela desgraça que hoje abate nosso povo?



terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Deus e a chuva não são culpados. Por frei Gilvander Moreira

Deus e a chuva não são culpados.
Frei Gilvander Luís Moreira[1]

Diante dos deslizamentos de terra e das inundações, é nojento ouvir jornalistas na grande imprensa dizerem: “a chuva está castigando ...”. “A chuva está causando estragos ...” Não é a chuva e nem Deus que deve ser condenado. Colocar a culpa na chuva e em Deus é encobrir o real – ideologia –, é criar uma cortina de fumaça que ofusca a realidade beneficiando somente os adoradores do capitalismo – grandes empresários, políticos profissionais (uma corja) e ingênuos sustentadores da engrenagem que continua a trucidar vidas em progressão geométrica.
A chuva é benfazeja, cai sobre justos e injustos, diz o evangelho de Mateus (Mt 5,45). A chuva é reflexo da bondade de Deus, que é infinito amor. Deus rega com a chuva a terra que deu como herança ao seu povo (I Rs 8,36). “Mandarei chuva no tempo certo e será uma chuva abençoada (Ez 34,26)”, assim o profeta Ezequiel consola o povo em tempos de imperialismo e de exílio, em tempos de escassez de chuva. A sabedoria do povo da Bíblia reconhece que Deus, solidário e libertador, “através da chuva, alimenta os povos, dando-lhes comida abundante (Jó 36,31).” Na Bíblia se fala de chuva mais de cem vezes. Até no dilúvio, a chuva é vista como purificadora (cf. Gênesis 6 a 9). Sob o imperialismo dos faraós no Egito, a chuva de granizo é vista como uma praga que fustiga os opressores, ao mesmo tempo que é uma dádiva de Deus que liberta da opressão (cf. Gênesis 9 e 10).
A chuva não castiga e nem desabriga ninguém, apenas revela uma injustiça socioeconômica e política existente anteriormente. Dizer que “a chuva castiga” é mentira, é reducionismo que esconde o maior responsável por tanta dor e tanto pranto: o sistema capitalista e a classe dominante, que descartam as pessoas e as condenam a sobreviverem em encostas e áreas de risco. Quem é atingido quando a chuva chega exageradamente, salvo exceções, são as famílias que tiveram seus direitos humanos fundamentais – direito à moradia, ao trabalho, à educação, a um salário justo, ao meio ambiente equilibrado e à dignidade – desrespeitados pelo capitalismo neoliberal e por pessoas que adoram o deus capital, o maior ídolo da atualidade.
Logo, gratidão eterna à chuva e ao Deus da vida, mas ira santa e rebeldia diante dos que de fato desabrigam e golpeiam os injustiçados.



[1] Padre da Ordem dos Carmelitas. Bacharel e licenciado em Filosofia pela UFPR, bacharel em Teologia, mestre em Exegese Bíblica, doutorando em Educação na FAE/UFMG. Assessor de CEBs, CPT, CEBI e SAB. E-mail: gilvanderlm@gmail.comwww.freigilvander.blogspot.com.br – face: Gilvander Moreira