OPTAR PELOS POBRES E
PELA POBREZA TAMBÉM
Dom Pedro Casaldáliga
A opção pelos pobres é uma opção sempre
atual, pelo menos para um cristianismo que mereça este nome. Atual e essencial.
Por dois motivos: porque é a opção do Deus de Jesus e porque é uma opção que
afeta estruturalmente a vida da sociedade humana e a missão da Igreja.
É justo reconhecer que a Igreja,
genericamente falando, sempre optou pelos pobres em termos de caridade
beneficente, de assistência pontual, às vezes também de misericórdia heroica.
Comblin, sempre incisivo e lucidamente demolidor, como um profeta bíblico,
escreve que “a opção pelos pobres ainda é uma invenção a ser posta em prática”;
e que “não podemos imaginar toda a transformação que implica para uma Igreja
habituada a se adaptar às classes dominantes”. Acrescenta ainda, duro e veraz:
“Como é sabido, a fórmula opção pelos pobres foi imediatamente corrigida pelo
magistério. Disseram: “Opção preferencial, não exclusiva, pelos pobres”. O que
se quer dizer com a expressão não exclusiva? Na prática se quer dizer; Não até
o ponto de que tenhamos que mudar nossos comportamentos, nossas estruturas
fundamentais, que são de classe média”. “Fazer a opção pelos pobres é hoje um
desafio quase impossível, porque supõe uma ruptura com a cultura dominante e
não há nenhum signo de que a Igreja católica queira se distanciar da cultura
dominante.”
Hoje a opção pelos pobres deveria ser mais
provocativamente atual, porque a pobreza é maior e mais globalmente
estruturada. Porque os pobres são pobres como pessoas e como povos, vivem na
pobreza e estão sem poderes e são sempre mais empobrecidos e despojados. Já não
são apenas pobres, são também excluídos, sobrantes, não existem para o sistema.
A tentação, que Comblin aponta como pecado
real, é forte mesmo e consiste em relativizar essa opção e fazer dela uma entre
outras opções cristãs.
É interessante observar, em vários textos de
Comblin, como ele faz questão de proclamar, com o Evangelho na mão, que os
ricos também podem se salvar. Jesus, vem dizer Comblin, não ignorou os ricos
nem os condenou simpliciter: apenas ... lhes exigiu, lhes exige e lhes exigirá
sempre que deixem de ser ricos privilegiados e excluidores. Conjugar isso
honestamente, na vida prática, eis a questão! Coração de pobre e vida de rico,
isso parece uma contradição nos termos, evangelicamente falando.
Trata-se então de firmar a opção pelos
pobres; de retoma-la, lucidamente, atualizadamente, mundialmente,
estruturadamente.
E essa estruturação da opção pelos pobres,
essa sua mundialização, exige optar-se também pela pobreza. Para a Humanidade,
submetida hoje como nunca a tentação do ter e do consumir, do lucro e do
privilégio, se impõe uma virada radical: da civilização do capital para a
civilização do trabalho, da civilização acumulação para a civilização da
partilha, da civilização do privilégio para a civilização da igualdade
fraterna. Desta civilização, que chamamos ocidental ( e às vezes
“ocidental-cristã”), para a “Civilização da pobreza”, como pedia o teólogo
mártir Ellacuría, nos tempos heroicos de El Salvador. Ou a “Civilização da
sobriedade”, para ajudar a entender a pobreza sem a acusação – desculpa de
“pauperismo”.
Evidentemente, não estamos a favor da pobreza
dos pobres. Estamos contra sua pobreza injusta e contra a riqueza iníqua dos
ricos. Optamos pelo testemunho de vida e morte do pobre Jesus de Nazaré.
Optamos pela pobreza do Reino, proclama feliz no código das bem – aventuranças.
A opção pela pobreza que o Evangelho nos
exige inclui necessariamente uns valores profeticamente contestatários. Rafael
Aguirre, em seu livro Ensayo sobre los
Orígenes Del cristianismo, destaca três grandes valores centrais
preconizados por Jesus, que simultaneamente contestavam e contestam antivalores
de seu tempo e de todos os tempos. Diante do prurido da honra, a simplicidade e
“o último lugar”; diante da paixão pelo poder, a constante disponibilidade para
o serviço; da cobiça do ter, o despojamento e a partilha; diante da lógica da
força, o instinto divino da doação e do amor desinteressado.
Optar pelos pobres e pela pobreza, assim
entendido, é lutar pela justiça, pela fraternidade, pela paz. Quando se
proclama nos fóruns alternativos que “um outro mundo é possível”, quer se dizer
que é possível e necessário um mundo significativamente “outro”. Sem agressões
à natureza, tão brutalmente depauperada por esta nossa civilização industrial;
sem prepotências pessoais, ou nacionais, ou imperiais, para possibilitar o
concerto dialogante e pacífico dos povos e das culturas; sem consumismo
desenfreados que necessariamente produzem a fome e a exclusão. Um mundo sem
Lázaros e sem Epulões. “Uma família de mais ou menos todos iguais”, como pedia
generosamente o patriarca sertanejo da ilha do Bananal.
Deve-se lutar pela justiça, pela paz,
“pobremente”, com a simplicidade do coração e com meios popularmente e
evangelicamente pobres. Não se vence a riqueza injusta com uma militância rica!
A própria evangelização não justifica o poderio, a ostentação, o marketing.
A tentação, dizíamos, é encostar a opção
pelos pobres, como uma opção secundária, opcional. E é mais tentação ainda, por
mais sofisticadamente apresentada, a tentação de considerar anacrônica
antimoderna, desfuncional, a opção pela pobreza evangélica – nas pessoas
cristãs, nas famílias cristãs, nas congregações religiosas, nas cúrias e nas
excelências eclesiásticas. São tentações muito atuais e sedutoramente
formuladas. Teria passado a época do Evangelho “sem glosa” , a época dos
entusiasmos de Medellín e a época dos martírios pelo Reino. Agora estamos na
modernidade pós – moderna e no carismatismo apaziguador. Não estão na moda nem
os grandes relatos, nem os grandes paradigmas, nem as grandes opções ...
Bernhard
Häring, depois de ter revolucionado a visão e o ensino da moral cristã, nos
deixou, em seu livro Rezo porque vivo, vivo porque rezo, este pedido
testamentário: “Não temos outra alternativa, se queremos ser cristãos: devemos
fazer nossas as opções do pobre de Javé, esposar a pobreza e estar atentos a
todos os pobres que vivem ao nosso redor, depois de termos traçado uma vida em
virtude da qual se suavize a miséria em todas as partes do mundo”.