Jesus
de Nazaré: jovem camponês da periferia,
mártir e portador de uma pedagogia emancipatória.
“O camponês de Nazaré, nessa luta nos
reuniu. Vem conosco caminhar, pela Terra Livre Brasil...” (Hino do 3º Congresso da PJR)
“Jovem da roça
também tem valor!” (Grito da PJR desde 1985.)
1
- A partir da roça, do campo.
Nasci na roça, no
campo. Fiz muitos calos nas mãos no cabo da enxada tocando roça à meia ao lado
do papai José Moreira. Na hora da colheita, quando via o fazendeiro levar no
caminhão a metade da nossa safra e quase toda a outra metade também, porque
contraíamos dívida na sede da fazenda onde comprávamos, do plantio à colheita,
açúcar, café, sal, remédios etc, dentro de mim, ainda criança, gritava uma voz:
“Deus não quer isso. Isso não é justo.”
Trago na minha memória essa indignação diante da opressão do latifúndio e dos
latifundiários. Saí da roça, mas a roça não saiu de mim. Meu sacerdócio e meu
jeito de ser frade carmelita estão intimamente conectados com a luta dos camponeses
por terra, pão e dignidade.
2
- Juventude camponesa em Recife.
O III Congresso da
Pastoral da Juventude Rural (PJR – www.pjr.org.br), em Recife, PE, de 14 a 19
de janeiro de 2014, reuniu mais de 1.500 jovens camponeses de todo o Brasil.
Além das reflexões, troca de experiência, convivência, noites culturais etc, foi
momento propício também para beber da herança espiritual profética de frei
Caneca, padre Ibiapina, Padre Cícero, beato Zé Lourenço, padre Henrique, frei
Jessé, Dom Hélder Câmara, Francisco Julião, cacique Chicão Xucuru, dentre
tantos outros lutadores do povo. Frei Jessé e padre Henrique foram
homenageados. Frei Cícero dos Santos Jessé (1954 a 1995), uma vida a serviço da
Juventude Camponesa. Frei Jessé foi assessor da PJR por vários anos. Ao adoecer
dizia: “Não deixem de fazer nada porque
estou ausente.” Padre Antonio Henrique Pereira Neto (1940 a 1969), mártir
da juventude que ousa viver a sua fé no mundo. Chamado por dom Hélder, padre
Henrique, além de secretário do Dom, foi também assessor da Juventude. Chamado
de subversivo, em 26 de maio de 1969, foi torturado e assassinado pela ditadura
civil-empresarial-militar. Antes de completar 29 anos tombou por sua opção
pelos pobres e pelos jovens, mas frei Jessé e padre Henrique, assim como todos
os mártires da caminhada, continuam conosco, presente, presente, presente.
A cidade de Recife nos
convida a recordar: a) frei Caneca, o carmelita da Confederação do Equador, fuzilado
dia 13 de janeiro de 1824, após ter sido preso em 1817 e ter ficado vários anos
no cárcere, em Salvador, Bahia. Frei Caneca, ao lado de outros 50 padres,
esteve à frente da Confederação do Equador que lutava pela independência do
Pernambuco, contra a violência da monarquia. Lutava por vida e liberdade para
todos; b) Dom Hélder Câmara, o dom do amor, da paz e da justiça; d) Pernambuco
também foi palco das Ligas Camponesas que, sob a liderança de tantos como o
advogado Francisco Julião, se espalharam pelo país, com mais de 2.000 já
organizadas quando se instaurou a ditadura. As Ligas camponesas lutando por
reforma agrária na lei ou na marra.
3
– Deus na história, o divino no humano.
O Deus do cristianismo é um Deus da história,
quer dizer, age nas entranhas dos fatos e dos acontecimentos. O Deus da vida,
mistério de infinito amor, não faz mágica. Desde que Deus, por infinito amor à
humanidade, encarnou-se, o divino está no humano.
O Concílio de Calcedônia, no ano de 451,
reconheceu Jesus Cristo com “natureza” divina e humana. O
apóstolo Paulo reconhece que Jesus é o Cristo, filho de Deus, mas “nascido de
mulher” (Gal 4,4), ou seja, humano como nós desenvolveu seu infinito potencial
de humanidade. “Jesus, de tão humano, se tornou divino,” dizia o papa João
XXIII.
“Não é ele o filho de Maria e José, o carpinteiro (Mt
13,55)?”. Progressivamente, na Galileia, Samaria
e Judéia, Jesus se revela, à primeira vista, em aparentes contradições, mas, no
fundo, com tal equilíbrio que chama a atenção de todos. Assim, ele testemunha
que Deus é mais interior a nós do que imaginamos. A mística “encarnatória”
revela a pessoa humanamente divina e divinamente humana. “Quem me vê, vê o
Pai (Jo
14,9)”.
Jesus, antes de se tornar mestre, foi
discípulo, mas como mestre continuou aprendendo. Antes de ensinar, aprendeu
muito com muitos: com Maria e José, com o povo da sinagoga, com os vizinhos,
amigos, com os acontecimentos históricos, com a natureza etc.
Somos discípulos/as de um jovem camponês,
da periferia, que foi condenado à pena de morte pelos podres poderes da política,
da economia e da religião. Somos discípulos de um mártir. Feliz quem não
esquece a vida, o testemunho e o ensinamento dos mártires.
Jesus compreende a mulher acusada de
adultério, mas ferve o sangue de ira santa contra os vendilhões do templo.
4 – Jesus, a
Juventude Camponesa e a PJR.
Em sintonia com a Campanha da
Fraternidade de 2013 - Fraternidade e Juventude -, como instrumento inspirador
para a Juventude Camponesa e para a Pastoral da Juventude Rural, apresentamos
Jesus de Nazaré, o jovem de Nazaré que se tornou Cristo, messias, filho de Deus.
Jovem, camponês, da periferia, Jesus, no meio de muitos jovens, apresenta uma
Pedagogia que emancipa e liberta. Hoje, os/as jovens estão sendo
marginalizados, violentados em sua dignidade, milhares assassinados anualmente.
As prisões estão abarrotadas de jovens das periferias. Os modelos de educação
hegemônicos mais fazem adestramento, capacitação profissional para encaixar os
jovens na máquina mortífera que é o mercado endeusado. No meio dessa realidade
conflituosa, faz bem nos inspirar na pedagogia de Jesus, um jovem camponês da
periferia, que humaniza pelo seu ensinamento e testemunho.
5 – Treze
características da pedagogia emancipatória de Jesus de Nazaré.
Jesus não nos salva automaticamente, mas
testemunha um jeito de viver, melhor dizendo, um jeito de conviver que é libertador
e salvador. Vital é prestarmos atenção no jeito e como Jesus ensina e atua. Faz
bem prestarmos atenção no processo pedagógico efetivado por Jesus. Trata-se de
uma Pedagogia emancipatória com muitas características, entre as quais,
destacamos treze.
5.1) A
partir da periferia. O Evangelho de
Lucas interpreta a vida, ações e ensinamentos de Jesus ao longo de uma grande
caminhada da Galileia até Jerusalém, ou seja, da periferia geográfica e social
ao centro econômico, político, cultural e religioso da Palestina. A Palavra, em
Lucas, é a palavra de um leigo, de um camponês galileu, “alguém de Nazaré”,
pessoa simples, pequena, alguém que vem da grande tribulação. Não é palavra de
sumo sacerdote, nem do poder.
5.2)
Prioriza a formação. Nessa grande
viagem, subida para Jerusalém, Jesus prioriza a formação dos discípulos e
discípulas. Ele percebe que não tem mais aquela adesão incondicional da
primeira hora. Jesus descobriu que para consolar os aflitos era necessário
também incomodar os acomodados e denunciar pessoas e estruturas injustas e
corruptas. Assim, o jovem de Nazaré começou a perder apoio popular. Era
necessário caprichar na formação de um grupo menor que pudesse garantir os
enfrentamentos que se avolumavam. Jesus sabia muito bem que em Jerusalém estava
o centro dos poderes religioso, econômico, político e judiciário. Lá travaria o
maior embate.
5.3) Não foge
do combate. O Evangelho de Lucas diz:
Jesus, cheio do Espírito, em uma proposta periférica alternativa, vai, em uma
caminhada, de Nazaré a Jerusalém; ou seja, vai da periferia para o centro,
caminhando no Espírito. Em Jerusalém acontece um confronto entre o projeto de
Jesus e o projeto oficial. Este tenta matar o projeto de Jesus (e de seu
movimento) condenando-o à morte na cruz. Mas o Espírito é mais forte que a
morte. Jesus ressuscita. No final do Evangelho de Lucas, Jesus diz aos
discípulos: “Permaneçam em Jerusalém até
a vinda do Espírito Santo” (Lc 24,49).
5.4) Sempre
em movimento. Seguir Jesus exige uma
dinâmica de permanente movimento. A sociedade capitalista leva-nos a buscar
segurança, o que é uma farsa. É hora de aprendermos a seguir Jesus de forma
humilde e vulnerável, porém mais autêntica e real. Isso não quer dizer distrair
com costumes e obrigações que provêm do passado, mas não ajudam a construir uma
sociedade justa, solidária e sustentável ecologicamente.
5.5) Anda na
contramão. Seguir Jesus implica andar
na contramão, remar contra a correnteza de tantos fundamentalismos e da
idolatria do consumismo. Exige também rebeldia, coragem, audácia diante de
costumes que entortam o queixo e de modas que aniquilam o infinito potencial
humano existente em nós.
5.6) Sabe a hora de conviver e a hora de lutar. O Evangelho de Lucas apresenta dois envios de
discípulos para a missão. No primeiro envio (Lc 10,1-11), Jesus indicou aos
discípulos que fossem despojados e desarmados para o campo de missão. Assim
deve ser todo início de missão: conhecer, conviver, estabelecer amizades, cativar,
assumir a cultura do outro, tornar-se um/a irmã/ão entre as/os irmã/ãos para
que seja reconhecido como “um dos nossos”. No segundo envio (Lc 22,35-38), em
hora de luta e combate, Jesus sugere que os discípulos devem ir preparados para
a resistência. Por isso “pegar bolsa e
sacola, uma espada – duas no máximo.” (Lc 22,36-38). Durante a evolução da
missão, chega a hora em que não basta esbanjar ternura, graciosidade e
solidariedade. É preciso partir para a luta, pois as injustiças precisam ser
denunciadas. Ao tomar partido e “dar nomes aos bois” irrompem-se as divisões e
desigualdades existentes na realidade. Os incomodados tendem naturalmente a
querer calar quem os está incomodando. É a hora das perseguições que exigem
resistência. Confira a trajetória de vida dos/as mártires da caminhada: Padre
Josimo, Padre Ezequial Ramin, Chico Mendes, Margarida Alves, Sem Terra de
Eldorado dos Carajás, Irmã Dorothy, Santo Dias, Chicao Xucuru, Padre Gabriel,
padre Henrique etc.
5.7) Resiste, o que não é violência, mas legítima defesa. Diante de qualquer tirania e de um Estado
violentador, vassalo do sistema capitalista que sempre tritura vidas e pratica
injustiças, é dever das pessoas cristãs resistirem contras as opressões
perpetradas contra os empobrecidos, os preferidos de Jesus. Lucas, em Lc
22,35-38, sugere desobediência civil – econômica, política e religiosa. Em uma
sociedade desigual, esse é “outro caminho” a ser seguido (cf. Mt 2,12) por nós,
discípulos e discípulas de Jesus, o rebelde de Nazaré.
5.8) Não trai sua origem. Jesus, o jovem de Nazaré, se tornou
Cristo, filho de Deus. Como camponês, deve ter feito muitos calos nas mãos, na
enxada e na carpintaria, ao lado de seu pai José. Os evangelhos fazem questão
de dizer que Jesus nasceu em Belém, (em hebraico, “casa do pão” para todos),
cidade pequena do interior. “És tu Belém
a menor entre todas as cidades, mas é de ti que virá o salvador”, diz o
evangelho de Mateus (Mt 2,6), resgatando a profecia de Miquéias (Miq 5,1). Segundo
Lucas, Jesus inicia sua missão pública
em Nazaré, sua terra de origem, em uma sinagoga, onde aprendeu muita coisa
libertadora. Jesus
se orgulhava de ser jovem camponês. Valorizava a cultura camponesa. Percebia
que a cidade, muitas vezes, mata os profetas, mata os jovens, como o jovem de
Naim (Lc 7,11-17).
5.9) Pedagogia
da partilha de pães, que liberta e emancipa. A fome era um
problema tão sério na vida dos primeiros cristãos e cristãs, que os quatro
evangelhos da Bíblia relatam Jesus partilhando pães e saciando a fome do povo.
É óbvio que não devemos historicizar os relatos de partilha de pães como se
tivessem acontecido tal como descrito. Os evangelhos foram escritos de quarenta
a setenta anos depois. Logo, são interpretações teológicas que querem ajudar as
primeiras comunidades a resgatar o ensinamento e a práxis original do jovem galileu. Não podemos também restringir o sentido
espiritual da partilha dos pães a uma interpretação eucarística, como se a fome
de pão se saciasse pelo pão partilhado na eucaristia. Isso seria
espiritualização do texto. Eucaristia, celebrada em profunda sintonia com as
agruras da vida, é uma das fontes que sacia a fome de Deus, mas as narrativas
das partilhas de pães têm como finalidade inspirar solução radical para um
problema real e concreto: a fome de pão.
A
beleza espiritual das narrativas de partilha de pães – o correto é partilha de
pães e não multiplicação de pães - está no processo seguido: uma série de
passos articulados e entrelaçados que constituem um processo libertador. O
milagre não está aqui ou ali, mas no processo todo. Ei-lo em várias
características:
5.10.1) Cidade, lugar de violência?
O evangelho de Mateus mostra que o povo faminto “vem das cidades”. As cidades,
ao invés de serem locais de exercício da cidadania, se tornaram espaços de
exclusão e de violência sobre os corpos humanos. Faz bem recordar que Deus criou – e
continua criando -, nas ondas da evolução, tudo “em seis dias e no sétimo dia descansou.” Conta-se que alguém teria
perguntado a Deus porque ele resolveu descansar após o sexto dia. Deus teria
dito que já tinha criado tudo com muito amor e para o bem da humanidade e de
toda a biodiversidade. Quando viu que faltava criar a cidade, o Deus criador
concluiu que era melhor descansar.
5.10.2) Ir para o meio dos excluídos e injustiçados.
“Jesus atravessa para a outra margem do
mar da Galileia” (Jo 6,1), entra no mundo dos gentios, dos pagãos, dos
impuros, enfim, dos excluídos e injustiçados. Jesus não fica no mundo dos
incluídos, mas estabelece comunicação efetiva e afetiva entre os dois mundos, o
dos incluídos e o dos excluídos. Assim, tabus e preconceitos desmoronam-se.
5.10.3) Nunca perder a capacidade de se comover e de se
indignar. Profundamente comovido, porque “os pobres estão como ovelhas sem pastor” (Mc 6,34), Jesus percebe
que os governantes e líderes da sociedade não estavam sendo libertadores, mas
estavam colocando grandes fardos pesados nas costas do povo. Com olhar altivo e
penetrante, Jesus vê uma grande multidão de famintos que vem ao seu encontro,
só no Brasil são milhões de pessoas que têm os corpos implodidos pela bomba
silenciosa da fome ou da má alimentação.
5.10.4) Postura crítica. Jesus não
sentiu medo dos pobres, encarou-os e procura superar a fome que os golpeava e
humilhava. Apareceram dois projetos para resgatar a cidadania do povo faminto.
O primeiro foi apresentado pelo discípulo Filipe: “Onde vamos comprar pão para alimentar tanta gente?” (Jo 6,5). No
mesmo tom, outros discípulos tentavam lavar as mãos: “Despede as multidões para que possam ir aos povoados comprar alimento.”
(Mt 14,15). Filipe está dentro do mercado e pensa a partir do mercado. Está
pensando que o mercado é um deus capaz de salvar as pessoas. Cheio de boas
intenções, Filipe não percebe que está enjaulado na idolatria do mercado.
5.10.5) Postura criativa. O segundo
projeto é posto à baila por André, outro discípulo de Jesus, que, mesmo se
sentindo fraco, acaba revelando: “Eis um
menino com cinco pães e dois peixes” (Jo 6,9). Jesus acorda nos discípulos
e discípulas a responsabilidade social, ao dizer: “Vocês mesmos devem alimentar os famintos” (Mt 14,16). Jesus quer
mãos à obra. Nada de desculpas esfarrapadas e racionalizações que tranquilizam
consciências. Jesus pulou de alegria e, abraçando o projeto que vem de André
(em grego, andros = humano), anima o
povo a “sentar na grama” (Jo 6,10).
Aqui aparecem duas características fundamentais do processo protagonizado por
Jesus para levar o povo da exclusão à cidadania, da injustiça à justiça. Jesus
convida o povo para se sentar. Por quê? Na sociedade escravocrata do império
romano somente as pessoas livres, cidadãs, podiam comer sentadas. Os escravos
deviam comer de pé, pois não podiam perder tempo de trabalho. Deviam engolir rápido
e retomar o serviço árduo. Um terço da população era escrava e outro terço, semiescrava.
Logo, quando Jesus inspira o povo para sentar-se, ele está, em outros termos,
defendendo que os escravos têm direitos e devem ser tratados como cidadãos.
5.10.6) Organização é o segredo da pedagogia de Jesus.
Jesus estimula a organização dos famintos. “Sentem-se,
em grupos de cem, de cinquenta, ...”
(Mc 6,40). Assim, Jesus e os primeiros cristãos e cristãs nos inspiram que o
problema da fome e todos os outros problemas sociais só serão resolvidos, de
forma justa, quando o povo marginalizado e injustiçado se organizar e partir
para lutas coletivas.
5.10.7) Gratidão. “Jesus
agradeceu a Deus...” A dimensão da mística foi valorizada. A luz e a força
divinas permeiam e perpassam os processos de luta. Faz bem reconhecer isso.
Vamos continuar cantando com Manelão - cantor e compositor das Comunidades
Eclesiais de Base que já partilha vida em plenitude - cantos revolucionários,
tal como: É madrugada, levanta povo!
/ A luz do dia vai nascer de novo! / Rompe as cadeias, abre o coração,/ Vamos dar as mãos, já é o reino do povo!
/ O povo agora é Senhor da história,
/ Somos rebentos desta nova era. / A liberdade, a fraternidade. / São as bandeiras desta nova terra!
5.10.8) Não ser paternalista.
Quem reparte o pão não é Jesus, mas os discípulos. Jesus provoca a
solidariedade conclamando para a organização dos marginalizados como meio para
se chegar à cidadania de e para todos. Dar pão a quem tem fome sem se perguntar
por que tantos passam fome é ser cúmplice do capital que rouba o pão da boca da
maioria.
5.10.9) Reaproveitar. “Recolham os pedaços que sobraram, para não se desperdiçar nada.”
(Jo 6,12). Economia que evita o desperdício. Quase 1/3 da alimentação produzida
é jogada no lixo, enquanto tantos passam fome. É hora de reduzir o consumo.
Reaproveitar, reciclar. Nada deve se perder, mas ser tudo transformado. Em uma
casa ecológica tudo é reaproveitado, inclusive as fezes são consideradas
recursos, pois viram adubo fértil e orgânico. Envolvidos pela crise ecológica,
com aquecimento e escurecimento global é hora de reduzir, reutilizar, reciclar
reaproveitar, recusar, recuperar e repensar.
5.11) Participar da vida pública transformando a
sociedade (Lc 10,38-42).
Seguindo para Jerusalém, Jesus entra na casa de duas mulheres, Marta e
Maria (Lc 10,38-42). Tradicionalmente, a narrativa de Lc 10,38-42 tem sido
interpretada como uma oposição entre vida ativa e vida contemplativa. Ao longo
dos séculos e ainda hoje, muitos usam e abusam de Lc 10,38-42 para justificar a
vida contemplativa em detrimento da vida ativa, mas essa interpretação não tem
consistência exegético-bíblica. Não há nenhuma referência no texto que diga que
Jesus estivesse rezando ou orando com Maria. Para entender bem Lc 10,38-42 é
preciso considerar algumas coisas.
Primeiro, nas
duas perícopes anteriores, Lucas revelou uma oposição, um contraste: humildes X
entendidos (Lc 10,21-24) e samaritano X sacerdote e levita (Lc 10,29-37). Em Lc
10,38-42 também há uma oposição, um contraste: Maria X Marta. A postura de
Maria é elogiada por Jesus e a postura de Marta é censurada: “Marta, Marta! ... uma só coisa é necessária...”
(Lc 10,41-42).
Segundo,
precisamos considerar a situação das mulheres na época de Jesus e do evangelho
de Lucas (anos 80/90 do 1º século). As mulheres eram - não todas, é óbvio -
propriedades do pai e, depois de casadas, dos maridos; não participavam da vida
pública, deviam ficar restritas ao lar; não aprendiam a ler e a escrever; não
recebiam os ensinamentos da Torá, a Lei. Encontra-se escrito no
Talmud dos Judeus (Escritura não-sagrada): “Que
as palavras da Torá sejam queimadas, mas não transmitidas às mulheres”. A
oração que muitos judeus piedosos rezavam dizia: “Louvado sejas Deus por não ter-me feito mulher!” O machismo e o
patriarcalismo campeavam.
Ao sentar-se
aos pés de Jesus, para ouvir-lhe os ensinamentos, Maria reivindica para si o
direito de ser discípula. Ela reclama para si o direito de ser cidadã no
sentido pleno. “Sentar-se aos pés”
era a atitude dos discípulos dos rabis, os mestres.
Em Lc 10,38-42,
Maria faz desobediência civil e religiosa, pois fica aos pés de Jesus
ouvindo-o. Somente os homens judeus podiam ficar aos pés de um mestre e se
tornarem discípulos. Maria ouve Jesus e, provavelmente, dialoga com Jesus e o
interroga. Assim Maria se torna discípula.
Um judeu entrar
em uma casa onde só havia mulheres também era algo censurável pela sociedade.
Jesus desobedece a essa regra moral e entra na casa de duas mulheres. Assim,
Jesus vai formando seus discípulos e discípulas enquanto caminha para
Jerusalém.
5.12) Ser simples como as pombas e esperto como as
serpentes.
Após uma longa marcha da Galileia a
Jerusalém, da periferia à capital (Lc 9,51-19,27), Jesus e seu movimento estão
às portas de Jerusalém. De forma clandestina, não confessando os verdadeiros
motivos, Jesus e o seu grupo entram em Jerusalém, narra o Evangelho de Lucas
(Lc 19,29-40). De alguma forma deve ter acontecido essa entrada de Jesus em
Jerusalém, provavelmente não tal como narrado pelo evangelho, que tem também um
tom midráxico, ou seja, quer tornar presente e viva uma profecia do passado.
Dois discípulos recebem a tarefa de viabilizar
a entrada na capital, de forma humilde, mas firme e corajosa. Deviam arrumar um
jumentinho – meio de transporte dos pobres -, mas deviam fazer isso
disfarçadamente, de forma “clandestina”. O texto repete o seguinte: “Se alguém
lhes perguntar: “Por que vocês estão desamarrando o jumentinho?”, digam
somente: ‘Porque o Senhor precisa dele’”. A repetição indica a necessidade de
se fazer a preparação da entrada na capital de forma discreta, clandestina,
sutil, sem alarde. Se dissessem toda a estratégia, a entrada em Jerusalém seria
proibida pelas forças de repressão.
Com os “próprios mantos” prepararam o
jumentinho para Jesus montar. Foi com o pouco de cada um/a que a entrada em
Jerusalém foi realizada. A alegria era grande no coração dos discípulos e
discípulas. “Bendito o que vem como rei...”
Viam em Jesus outro modelo de exercer o poder, não mais como dominação, mas
como gerenciamento do bem comum.
Ao ouvir o anúncio dos discípulos – um
novo jeito de exercício do poder – certo tipo de fariseu se incomoda e tenta
sufocar aquele evangelho. Hipocritamente chamam Jesus de mestre, mas querem
domesticá-lo, domá-lo. “Manda que teus
discípulos se calem.”, impunham os que se julgavam salvos e os mais
religiosos. “Manda...!” Dentro do paradigma “mandar-obedecer”, eles são os que
mandam. Não sabem dialogar, mas só impor. “Que se calem!”, gritam. Quem anuncia
a paz como fruto da justiça testemunha fraternidade e luta por justiça, o que
incomoda o status quo opressor. Mas
Jesus, em alto e bom som, com a autoridade de quem vive o que ensina,
profetisa: “Se meus discípulos (profetas)
se calarem, as pedras gritarão.” (Lc 19,40). Esse alerta do galileu virou
refrão de música das Comunidades Eclesiais de Base: “Se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão. Se fecharem uns poucos caminhos, mil trilhas
nascerão... O poder tem raízes na areia, o tempo faz cair. União é a
rocha que o povo usou pra construir...!”
Dia 10 de abril de 1996, milhares de
trabalhadores rurais do MST, em marcha, estavam chegando a 22 capitais do
Brasil. Na chegada a Belo Horizonte, após marcharem de Governador Valadares à
capital mineira, 500 Sem Terra foram bloqueados pela tropa de choque da polícia
militar de Minas Gerais. Vinte Sem Terra foram presos; outros vinte,
hospitalizados. O governador de Minas havia dado ordens para proibir a entrada
do MST em Belo Horizonte, porque três dias após, dia 13 de abril de 1996, a
Fiat faria o lançamento de um novo modelo de automóvel, o Fiat Pálio, na Av. Afonso
Pena, em Belo Horizonte. 700 jornalistas internacionais estariam presentes. Os
gritos do MST por reforma agrária poderiam aparecer na imprensa internacional,
o que seria mosca na sopa. Mesmo reprimidos, conseguimos entrar em Belo
Horizonte no dia seguinte contando com o apoio do povo de BH. Um Sem Terra
disse: “Quando os oprimidos hebreus
tentaram fugir da opressão do imperialismo egípcio tiveram que enfrentar o Mar
Vermelho. Na chegada de Belo Horizonte, um Mar de policiais queria fazer um Mar
Vermelho com nosso sangue. Feriram-nos, mas conseguimos entrar na capital.
Assim foi com Jesus de Nazaré também.”
5.13)
Intransigência diante da opressão econômica e política. Os quatro evangelhos da Bíblia (Mt 21,12-13; Mc 11,15-19; Lc 19,45-46 e Jo
2,13-17) relatam que Jesus, próximo à maior festa judaico-cristã, a Páscoa,
impulsionado por uma ira santa, invadiu o templo de Jerusalém, lugar mais
sagrado do que os templos da idolatria do capital que muitas vezes tem a cruz
de Cristo pendurada em um ponto de destaque. Furioso como todo profeta, ao
descobrir que a instituição tinha transformado o templo em uma espécie de Banco
Central do país + sistema bancário + bolsa de valores, Jesus “fez um chicote de
cordas e expulsou todos do templo, bem como as ovelhas e bois, destinados aos
sacrifícios. Derramou pelo chão as moedas dos cambistas e virou suas mesas. Aos
que vendiam pombas (eram os que diretamente negociavam com os mais pobres
porque os pobres só conseguiam comprar pombos e não bois), Jesus ordenou: “Tirem estas coisas daqui e não façam da casa
do meu Pai uma casa de negócio.” Essa ação de Jesus foi o estopim para sua
condenação à pena de morte, mas Jesus ressuscitou e vive também em milhões de
pessoas que não aceitam nenhuma opressão.
Enfim,
jovens como Jesus de Nazaré, exercitemos pedagogias que libertam e emancipam.
Belo Horizonte, MG, Brasil, 24 de
janeiro de 2014.
Frei Gilvander
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e
bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em
Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma; doutorando em
Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, SAB e Via Campesina; conselheiro
do Conselho Estadual dos Direitos Humanos de Minas Gerais – CONEDH; e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br
– www.gilvander.org.br
– www.twitter.com/gilvanderluis
- facebook: Gilvander Moreira