O coração da perícope do Bom Samaritano (Lc 10,25-37), texto de frei Gilvander Moreira. 26/08/2013.

O coração da perícope do Bom Samaritano (Lc 10,25-37).
Gilvander Luís Moreira[1]

Para uma interpretação sensata e libertadora do episódio-parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37) é preciso, entre vários exercícios, analisar os versículos-chave de Lc 10,25-37, que são os versículos 33 a 35. Eis o que segue.
Os versículos 33 a 35 descrevem as atitudes – a práxis - do samaritano. São versículos riquíssimos em detalhes e constituem a coluna vertebral do processo que começa com a compaixão e deságua na misericórdia. Eles são a referência com base na qual se define a identidade de cada um dos personagens de Lc 10,25-37. Vamos, agora, em busca das palavras do próprio texto, a fim de sondar seu significado mais profundo.
O samaritano percorre dez passos interligados e interdependentes (Lc 10,33-35):
1.      Certo samaritano...” anônimo, pois não é revelado o nome dele; herege, segundo a religião judaica; impuro, segundo o povo judeu; pagão, segundo a cultura judaica; representante dos samaritanos, que por quase mil anos foram discriminados pelos judeus que se aliavam aos poderes político, econômico e religioso.
2.      O samaritano, em viagem, se aproxima da pessoa caída e semimorta. Não passa adiante. Não levanta teorias que justificam a exclusão e aliviam a própria consciência. Interrompe seus planos e deixa-se guiar pelo inesperado, pelo inédito, pelo que acontece. O samaritano estava em viagem porque estava trabalhando. Estava ocupado e provavelmente também preocupado com suas responsabilidades. Mas, por ironia da história, as pessoas que encontram mais tempo são as mais ocupadas. Diz a sabedoria dos engajados: “Se precisar de ajuda, procure alguém que está muito ocupado, pois este terá mais tempo”. Quem pouco trabalha não encontra tempo – por falta de opção - para ser solidário. Tempo é questão de preferência. Quem ama verdadeiramente sempre encontra tempo para estar com a pessoa amada. Encontra o seu jeito de multiplicar o tempo e conquista o tempo necessário para estar com o outro. O sacerdote e o levita voltavam do trabalho e teriam, em tese, mais tempo para dedicar ao pobre assaltado, mas foram insensíveis. O samaritano usa seu precioso tempo para ser solidário.
3.      O samaritano “chega junto...”, não fica a distância, na arquibancada da vida; aproxima-se do outro que está em apuros. Padre Júlio Lancellotti, vigário episcopal do povo da rua, da cidade de São Paulo, certa vez, quando saía da prisão, foi nervosamente interpelado pelo diretor da prisão: “Pode voltar lá dentro, pois os menores infratores recomeçaram outra rebelião lá e já fizeram alguns funcionários como reféns”. Padre Júlio discerniu no calor do conflito e voltou. Ao entrar, pulou no meio dos menores rebelados e gritou: “Silêncio! Sentem todos!” Um menor grandalhão levantou-se e disse para todos: “Vamos obedecer, pois o padre, nosso amigo, está falando”. Padre Júlio, continuando, conclamou os menores: “Vamos rezar um Pai-nosso. Pai nosso, que estais no céu...” Todos rezaram e assim a rebelião foi contida. No dia seguinte, perguntaram aos menores: “Por que vocês obedecem ao padre Júlio e não obedecem aos guardas penitenciários?” Eles responderam em coro: “Padre Júlio é gente fina; é nosso amigo; chega junto quando estamos em apuros; é verdadeiro; gosta de nós; não mente para nós”. No dia seguinte, padre Júlio constatou que alguns menores tinham sido torturados por dizerem a verdade e denunciarem as arbitrariedades cometidas pelos guardas.
4.      O samaritano o excluído semimorto. Não foi um olhar frio, calculista, sobre o sofrimento do outro, mas um olhar com base no outro que sofre. Um olhar de benevolência e ternura. Deixa que a dor do outro entre através dos próprios olhos. Certamente foi um olhar penetrante. Passa a ver o mundo conforme a dor do outro. E deixa se guiar pela visão que vê o outro sofrendo. Diz a sabedoria popular: aquilo que os olhos não veem o coração não sente. Um provérbio indiano expressa semelhante compreensão ao dizer que os olhos veem mil vezes mais do que os ouvidos escutam. “Não basta se aproximar apenas para fazer uma visita”, alerta tio Maurício, bom samaritano do povo da rua, em Belo Horizonte, autor do livro O Beijo de Deus – o evangelho da Rua segundo tio Maurício.
5.      O samaritano move-se de compaixão em face da dor do excluído. A dor do outro entra pelos olhos e invade todo o corpo. Penetra nas entranhas, no coração, revolvendo-os. Revira o corpo por dentro. Quem está comovido se entrega ao outro, não o agride. Sentir compaixão é associar-se à dor do outro partilhando-a e, desse modo, diminuindo-a. A dor sentida pela pessoa assaltada foi suavizada pelo “odor” da companhia do samaritano. Segundo Dalai Lama, compaixão é admitir que a vida do outro é mais importante do que a minha própria vida; é orientar a vida segundo o outro que sofre. O outro se torna um absoluto na minha vida. Quem decidirá se o meu trabalho vai continuar é a situação do outro.
6.      O samaritano se aproxima ainda mais da pessoa sofrida, entrega-se gradativamente ao outro. É na proximidade que se dá o encontro face a face, o encontro eu–tu. Foi assim que aconteceu com Moisés na sarça ardente (Ex 3,1-6). O Jó da Bíblia, pai da impaciência e da rebeldia, depois de passar por um processo dolorido de revisão da sua experiência de Deus, chega à seguinte conclusão:  “Antes eu Te conhecia somente por ouvir dizer, mas agora meus olhos Te veem” (Jó 42,5). Quer dizer, Jó encontra-se face a face com um Deus solidário e libertador. Mas o encontro face-a-face com Deus se dá no encontro face-a-face com o outro, principalmente com o outro que está excluído, semimorto. Pelo rosto reconhecemos com muito mais facilidade uma pessoa que já vimos alguma vez. Mas se nos apresentar um corpo sem rosto será muito mais difícil o reconhecimento. Uma religiosa, de vida consagrada, desejava viver a contemplação no meio do povo excluído da periferia de Vitória da Conquista, BA. Ela decidiu rezar com o povo aflito da sua vizinhança. Um dia, enquanto visitava as famílias nos seus casebres, percebendo que muitas mães davam água com sal para tentar consolar os filhos que choravam pedindo alimento, a religiosa perguntou para uma mãe: “Por que você vendeu todas as camas, cadeiras e os móveis da casa?” A mãe respondeu: “Irmã, a senhora nunca vai conseguir entender o que significa uma mãe ver o filho chorar e gritar com fome e não ter alimento para dar para o filho. Vendi todos os móveis, um a um, para comprar pão para meus sete filhos. Frio até que a gente aguenta, mas passar fome e ver os filhos pedirem alimento é ser cortada por dentro; mata a gente aos poucos. Nós, mães, não somos de ferro. Somos de carne e osso e amamos os nossos filhos”.
7.      O samaritano cuida do outro no imediato e no mediato. Fez curativos, derramando óleo e vinho nas feridas. A compaixão move o coração e aciona as mãos para a prática da misericórdia, da solidariedade efetiva. O samaritano vive a espiritualidade do cuidado com o outro e consigo mesmo. Falam alto o modo como ele ajuda e o que ele usa para cuidar do outro. Revelam a experiência e a competência de quem já está familiarizado com o exercício da solidariedade. E o que ele usa para aliviar a dor do outro são frutos da mãe-terra e do seu esforço humano (suor, fadiga, tempo). Com produtos naturais, o samaritano recupera a vida do outro: óleo, para curar feridas, e vinho, que além de curar, dá alegria e ajuda a retomar a vida.
8.      O samaritano “colocando-o sobre o seu próprio animal, levou-o a uma pensão, onde cuidou dele...” Fez-se solidário, prestou os primeiros socorros e encaminhou o semimorto para o restabelecimento completo. O samaritano não se contentou com o mínimo de assistência oferecida a alguém em perigo, mas deu seu tempo, seu dinheiro e o seu ser, sem calcular. A oferta do dinheiro não é substitutiva, mas um complemento da sua ação pessoal. Ele amou “com força”, isto é, com os seus próprios bens econômicos. Ele mostrou que amar é agir com o coração, é ter “coragem”. Para o samaritano, o grito por solidariedade é urgente. Seria tarde demais e chegaria atrasado se ele tivesse dito para o excluído semimorto: “Daqui a pouco eu te ajudo”; ou “espera um pouco”; ou “quando eu voltar, eu te ajudo”; ou “depois que eu me aposentar eu te ajudo”; ou “quando eu ganhar na loteria eu te ajudo” ou, ou.... Mas o samaritano cedeu o seu próprio jumento para carregar a vítima, desinstalando-se. Isso faz-nos recordar a alegria com que o povo pobre acolhe uma visita, oferece a própria cama para o hóspede e vai dormir no chão. O que normalmente não acontece na casa de pessoas ricas. Com frequência, observa-se hoje uma placa de advertência com a seguinte inscrição: “Cuidado, cão bravo!”; “Cuidado, cerca elétrica!”.
9.      O samaritano pagou dois denários.[2] Conforme Mt 20,2, um denário era o suficiente para pagar um dia de serviço. Mas “um denário por um dia de serviço” era o suficiente para alimentar a esposa e os filhos, comprar roupas, manter as necessidades do lar, pagar impostos, taxas do templo etc? Concordando com o biblista Fitzmyer, dizemos que “a descrição do samaritano é esplêndida; emprega todas suas posses materiais - azeite, vinho, cavalgadura, dinheiro - para ajudar um pobre infortunado que se encontra pelo caminho”.[3] “Nenhum escritor do Segundo Testamento - salvo, talvez, o autor da carta de Tiago, e este somente de maneira análoga - põe maior ênfase na moderação com a qual o discípulo deve usar suas próprias riquezas materiais.”[4] O samaritano cumpriu o que estava prescrito no shemáh: Dt 6,4-5, que diz “Ouça, Israel... ame a Javé seu Deus com todo o seu coração, com toda a sua alma e  com toda a sua força.” “Amar com toda sua força” diz respeito à dimensão econômica da vida, a partilha dos bens econômicos. O samaritano deixa o semimorto protegido e encaminhado. Vai embora, mas deixa marcas de bondade e sai positivamente marcado para o resto da vida.
10.  O samaritano não deixou nome nem endereço. Soube a hora exata de entrar e de sair da vida do outro. Foi embora. Agindo assim, impossibilitou que se criasse vínculo de dependência entre ele e o socorrido. Ele foi solidário de modo gratuito e libertador.

Belo Horizonte, MG, Brasil, 26 de agosto de 2013.
Facebook: Gilvander Moreira




[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutorando em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, SAB e Via Campesina; conselheiro do Conselho Estadual dos Direitos Humanos de Minas Gerais – CONEDH; e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.brwww.gilvander.org.brwww.twitter.com/gilvanderluis - Facebook: Gilvander Moreira
Obs.: Esse texto é a “6ª parte” do artigo “Seguir Jesus, desafio que exige compromisso”, de Gilvander Luís Moreira, publicado no livro  “RECRIAR O CAMINHO com as Comunidades de Lucas, uma leitura do Evangelho de Lucas feita pelo CEBI-MG, São Leopoldo, CEBI, 2013, pp. 48-77.
[2]    “A moeda denário era parte do sistema de cunhagem do Império Romano. “ Cf. D. E. OAKMAN, “The Buying Power of two denarii. A Comment on Luke 10:35” Forum 3 (1987) 35.
[3]    Fitzmyer, Lucas..., cit., v. 3. p. 287.
[4]    Fitzmyer, Lucas..., cit., v. 1, p. 416.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Testamento-testemunho de Dom Antônio Fragoso, ex-bispo de Crateús, CE.

Testamento-testemunho de Dom Antônio Fragoso, ex-bispo de Crateús, CE.

 Apresentação de frei Gilvander.
Em setembro de 1998, enquanto eu fazia o mestrado em Exegese Bíblica, no Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália, tive a alegria de encontrar no Colégio Internacional dos Carmelitas, em Roma, dom Antônio Fragoso, que no alto dos seus 78 anos contava sobre sua atuação missionária com um entusiasmo contagiante. Dizia se referindo a várias pessoas: “Esse tem uma cabeça arrumada.” Eu não tinha dúvida de que estava diante de um profeta, um homem do Deus dos pobres e dos pobres de Deus. E não sei bem porque, dom Antônio Fragoso me entregou uma cópia de um “Testamento-testemunho espiritual dele”, que eu guardei com muito carinho, depois digitei e o conservo no computador e, principalmente na minha memória e no meu coração como um bússola que me inspira. Eu já o partilhei com algumas pessoas, mas, agora, estimulado por Manoel Soares Martins, que me pediu cópia do “Testamento de dom Antônio Fragoso” se apresentando como “juiz de direito aposentado e filho de Crateús, Estado do Ceará, onde o nosso eterno e saudoso dom Antônio Batista Fragoso foi o Primeiro Bispo de nossa querida Diocese.” Pelo pedido de Manoel, Deus conosco, e também por ter ficado emocionado ao reler o “testamento-testemunho de Dom Antônio Fragoso”, eu estou disponibilizando-o agora na internet a partir de www.gilvander.org.br na certeza de que vai fazer um bem enorme a muitas pessoas que o lerão e meditarão sobre o sentido da vida. Obrigado, dom Antônio Fragoso, que já partilha vida em plenitude, envolvido no infinito mistério de Amor que é nosso Deus, o Deus da vida e dos pobres. Abraço terno. Frei Gilvander Luís Moreira.
Segue, abaixo, um Testamento-testemunho de Dom Antônio Fragoso, ex-bispo de Crateús, CE, organizado em sete partes eloqüentes.

Testamento-testemunho de Dom Antônio Fragoso, bispo de Crateús, CE.


1. DADOS PESSOAIS
-          Antônio Batista Fragoso.
-          Nato em 10/12/1920, dia dos Direitos Humanos, em Teixeira, Estado da Paraíba, Brasil.
-          Ordenado sacerdote, em 2 de julho de 1944, no Seminário da Paraíba.
-          De 1947 a 1957, Assistente da Juventude Operário Católica (JOC), para os Estados do Nordeste Brasileiro.
-          Ordenado bispo, em 30 de maio de 1957.
-          Bispo auxiliar, na Arquidiocese de São Luís do Maranhão, de 1957 a 1964.
-          Bispo Diocesano de Crateús, Estado do Ceará de 1964 a 1998.
-          Padre conciliar, no Vaticano II, em 1962, 1963, 1964 e 1965.
-          Bispo Emérito de Crateús, desde de 17 de fevereiro de 1998.

2. BISPO.
            A JOC me abriu os olhos para a realidade do mundo dos pobres (que, depois, chamados de Empobrecidos e, posteriormente , Excluídos).
            A Teologia dos tempos de Seminário eu a levei a sério com a "paixão" dos tempos de juventude. Mas não consegui ILUMINAR minhas práticas e os "sinais dos tempos", pois ela era mais "doutrinária", dedutiva.
            A metodologia Jocista - do VER, JULGAR e AGIR - vem testada nas experiências dos Militantes e Assistentes da JOC, me ajudou a partir da "Realidade", perceber o seu "sentido e a presença do Reino sob sinais  e a me confrontar com uma Prática Transformadora.
            A notícia da minha escolha para o Episcopado me apanhou de surpresa, convencido que a JOC era o meu futuro. Apelei para o Papa. A nomeação, enviada para mim, no início de dezembro de 1956, só foi publicada em março de 1957.
            É voz corrente (quem sabe desses segredos, com segurança?) que Dom Helder Câmara "sugeriu" à Nunciatura apostólica diversas idas e vindas da Ação Católica Especializada. Lembro-me de que, no Vaticano II, quando Monsenhor Joseph Cardajn foi escolhido Cardeal, nós , os Assistentes da JOC lhe oferecemos um almoço afetuoso. Éramos 18.
            Bispo Auxiliar do Arcebispo Dom José de Madeiras Delgado, tentei fazer UNIDADE com ele, mesmo se éramos diferentes, na nacionalidade e na visão da Igreja e do Mundo.
            Ele me confiou o acompanhamento da Ação Católica Especializada (JOC, JEC, JAC, ACO) e da Pastoral Catequética com as bênçãos e o apoio aberto dele, foi possível promover, em 1958, 1959 e 1960, uma SEMANA CATEQUÉTICA mobilizadora, em cada uma das 60 paróquias da Arquidiocese.
            É bom ter em vista que a, então, Arquidiocese de São Luís cobria as Paróquias  das posteriormente criadas Dioceses da  Viana, Bacobal, coroatã e Brejo.
           
3 - O VATICANO II.     
            Facto convocadas. Dependiam da anuência do Bispo Diocesano. Eu tive a graça de ser plenamente autorizado por Dom José de Medeiros Delgado para participar do Concílio em 1962, 1963 , em 1964 e em 1965 eu já era Bispo Diocesano de Crateús.
            O Vaticano II  marcou fundo a minha vida. O horizonte eclesial se alargou às dimensões dos 4 continentes.
Foi nos oferecida a oportunidade da renovação teológica, por meio de mais de 70 conferências-Debates de Expertos do 1o time teológico do mundo;
Deu-se a queda das imagens tradicionais de Igreja - Igreja Pirâmide  e Igreja centro e periferia - que foi proclamada como a comunidade dos Discípulos de Jesus, todos fundamentalmente iguais, onde a "autoridade" se torna diaconia;
Aprofundou-se o diálogo da Igreja com as "Realidades Terrestres";
O Vaticano II teve dificuldades de acolher o pedido  de João XXIII: apresentar ao mundo  um ROSTO NOVO DE IGREJA, sobretudo da IGREJA DOS POBRES;
Nos bastidores do Concílio, um grupo de Bispos se reunia no Colégio Belga e tematizava a identidade entre Jesus e os Pobres, ensaiando a compreensão das conseqüências sociais, políticas, culturais e místicas dessa identidade;
Ficou-nos a certeza de que o Vaticano II não era o ponto de chegada, mas o ponto de partida de um processo exigente de conversão pessoal e eclesial.
O Antônio Fragoso, que saiu do Concílio, não era mais o mesmo que nele entrou, em outubro de 1962.
Nunca direi demais a Deus toda a minha gratidão por ter sido e continuar sendo PADRE CONCILIAR.

4. EM CRATEÚS.
O Vaticano II me interpelou e se esvazia, se os cristãos e sobretudo o Episcopado não o puserem em prática.
As tentações chegam, previstas ou inesperadas. A "saudade das panelas do Egito", a recuperação do pré-concílio, a "restauração" de uma modernizada neo-cristandade podem gerar o "desencanto" até nos mais ardentes, sepultar a memória do acontecimento, levar a proposta de "hermenêuticas" ideologizadas (talvez, bem intencionadas).
O desafio é este: como assumir o processo conciliar, articulando a Comunhão Evangélica de Igreja e a Ousadia profética?
      A Igreja de Crateús, situada no sertão árido nordestino (os Sertões de Crateús e dos Inhamuns), também se sentiu desafiada e extremamente frágil para o sopro inspirador do Vaticano II (não dando?) referencial para ninguém, mas, expressamos o desejo de dizer "sim" ao Apelo do Concílio.
1.      Buscou assumir um "rosto rural", priorizando o anúncio da Boa Nova aos Pobres, por vezes, dando pretexto às queixas das "classes Médias tradicionais”.
2.      O Bispo com mais boa vontade do que “Know-how" não quis revestir a "figura histórica e popular de BISPO", mas ir se tornando companheiro e irmão.
3.      Todas as decisões pastorais eram discutidas longamente com os leigos, as Religiosas e os Padres. O Bispo não quis prevalecer-se de seus "poderes canônicos" para destacar seu voto ou sua decisão, mas habitualmente aceitou que o voto de qualquer dos Leigos e Presbíteros fosse igual ao seu.
4.      Desejando ser uma comunidade de discípulos, SEM PODER como Jesus, a Diocese recusou Ter OBRAS (Colégios, Escolas, Rádio, Hospitais). As obras, se necessárias forem, devem ser iniciativas da "comunidade" e não do Bispo, do Padre, da "Diocese", da "Paróquia".
5.      A Diocese de Crateús, muito pobre, depois de experimentar, durante 10 anos, pedir DINHEIRO/AJUDA às "Agências doadoras" católicas e/ou não governamentais decidiu, sem muita unanimidade (!) não mais fazer projetos para o Exterior ou para o governo do País. A ideia inspiradora era esta: "uma mulher, um homem, crescem quando DÃO DE SI, não quando estendem a mão para receber".
6.      A Diocese decidiu não fazer um "Seminário menor". Até mesmo chegou a pensar que "o coração da Diocese não é o seminário, mas a formação/educação da fé da comunidade, com seus Ministérios. Das Igrejas vivas na base nascerão, quando o Espírito soprar, VOCAÇÕES ORDENADAS E CONSAGRADAS suficientes.
7.      Muitos Cristãos pediam "Espiritualidade", "Mística", "Nutrição da Fé", calor do coração na Liturgia", mas não aceitavam que a Fé movesse os Cristãos para o combate pela Justiça, para uma Prática transformadora e radical.
8.      A Diocese assumiu a responsabilidade de lutar para que os Cristãos tivessem duas pernas sãs e articuladas: a perna da Experiência de Deus e a perna do combate pela Justiça. Esta opção trouxe tensões e afastamentos dolorosos.
9.      Nos seus 34 anos, a Igreja de Crateús reconhece que está só NOS PRIMEIROS PASSOS de vivência da Inspiração do Vaticano II.

5. VIOLÊNCIA E NÃO-VIOLÊNCIA.
            A Igreja de Crateús não é uma ILHA, cujas pontes para "invasão" de idéias e propostas culturais estivessem cortadas.
            A consciência da MISÉRIA (= Pobreza, Empobrecimento, Exclusão) leva facilmente, à INDIGNAÇÃO ÉTICA.
            A indignação ética é o primeiro passo necessário para o combate pela Justiça e pode-se abrir para a SOLIDARIEDADE ATIVA ou para VENCER A VIOLÊNCIA do Sistema com a violência popular.
            As últimas cinco décadas "empurraram" mais no sentido de combater a violência com a violência.
            Ultimamente, emergem Apelos para a Solidariedade (= "novo nome da Paz?").
            Em Crateús, fortemente marcada pela injustiça e a opressão, a tendência dos intelectuais"  e dos "Ativistas" era a "Revolução armada". Não havia estratégias  com armas, havia mais "idealismos"  e discursos.
            Eu fui muito motivado por homens como Gandhi, pelo "movimento Internacional de Reconciliação" (Jean Goas e Hildegard Gon Mayer), pela  "irmandade do servo sofredor" (Bispo do Padre Alfredinho Kunz), pela "pressão Libertadora" (Dom Helder Câmara) pela "Firmeza Permanente" (Dr. Mário Carvalho de Jesus).
            Não consegui convencer a maioria da Diocese de que o combate pela Justiça, NÃO VIOLENTO, inspirado na Força Libertadora do Amor, era a Esperança. Ninguém queria a Revolução Armada, mas tinha medo de que a "Não Violência "fosse negativa, acomodada, "inocente".
            Chego a pensar que a maioria da população da Diocese tem práticas não-violentas, mas é carente de EDUCAÇÃO para a ATITUDE solidária, que recusa usar as armas dos opressores.

6 – MONSENHOR BETTAZZI E PAZ CHRISTI.
            Não é meu propósito falar do meu colega do Vaticano II, Monsenhor Luigi Bettazzi, Bispo de Ivrea, e Nem da "Fraternidade dos Pequenos Bispos", que cerca de 20 Padres conciliares organizamos, durante o Concílio, como um pequeno grupo de Amizade e mútuo apoio, inspirado no Irmão Carlos de Foucauld e sua Espiritualidade, dos 20, 9 já se foram para a casa do Pai. Eram do Vietnam, da Coréia do Sul, da África, da Alemanha, da França, os outros, ainda sobreviventes, DAMOS GRAÇAS a Deus por este grupo.
            Quero falar do testemunho de Monsenhor Bettazzi em favor da PAZ (= Pax Christi).
            Monsenhor Bettazzi foi sempre um bispo da Solidariedade ativa não violenta e da Profecia audaciosa. Nem sempre encontrou compreensão a que tinha direito.
            Lembro-me das suas posições pela autodeterminação do Vietnã na Mídia ocidental.
            Lembro-me de suas abertas e corajosas mensagens, nos congressos da Pax Christi italiana e da Pax Christi internacional. 
            Lembro-me de seus livros deliciosos de ler, interpelantes para os que querem sair do "status quo" ou de atitudes sectárias, especialmente o denso e profético "La Sinistra di Dio".
            Lembro-me da Visita Pesquisa à América Central e da publicação contraditada do relatório.
            Sinto-me gratificado por ter Monsenhor Bettazzi como Amigo e Irmão e como um militante não violento da PAZ.

7 - ESPERANÇAS PARA O FUTURO.
            Um homem com quase 78 anos ainda pode ter esperanças "concretas"?
            Sou filho de um sertanejo paraibano muito pobre, que foi sempre um sonhador incorrigível, "jovem aos 90 anos carregando utopias mobilizadoras”.
            São estas algumas das minhas esperanças:
-          Uma Igreja com ROSTO DE POBRE, comunidade de servidores de Jesus, sem poder, vivendo a mística do serviço de "lavar os pés" da humanidade, principalmente dos pobres, conheço muitos testemunhos. Por isto, sei que é possível.
-          O ministério dos Cristãos que, na Igreja Católica, unem a comunhão eclesial evangélica e a profecia explícita. Quem não se lembra do Padre Haering, do Arcebispo John Quinn, do Padre Tissa Balasuriya, de Monsenhor Oscar Romero, de Monsenhor Ivan Girardi, da multidão dos catequistas e celebradores da palavra nas CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), dos milhões de mártires "anônimos" no combate pela justiça?
-          As CEBs - pequenas Igrejas Vivas na Base - de tipo rural e, no futuro, de tipo urbano em que unem, no cotidiano "anônimo" a maior fidelidade ao Evangelho e a teimosia profética.
-          O pluralismo de rastos da Igreja vinda de Teologias, de Liturgias, de formas de ser PADRE ensaiando, já na História presente, a UNIDADE NA DIVERSIDADE.
-          A invenção  de realizações históricas da UTOPIA SOCIALISTA, que os assim chamados "SOCIALISMOS REAIS" experimentaram e traíram e a "globalização" se gloria de havê-lo sepultado definitivamente.
-          A resistência multissecular dos Indígenas, dos Negros, das Mulheres, dos Sem poder e que não é resgatada pela opinião pública de hoje, mas faz tremer o sistema global que o "ignora" e o "escanteia".
Estas ESPERANÇAS "CONCRETAS" estão fazendo o seu caminho e NINGUÉM vai impedi-los  de florescerem e frutificarem, no tempo que o Espírito programa.

                      Antônio Fragoso,
Bispo Emérito de Crateús. João Pessoa, Paraíba, Brasil, 15 de setembro de 1998.


terça-feira, 20 de agosto de 2013

Nota da CPT/MG sobre o julgamento do Massacre de Felisburgo: o que não pode ser esquecido.

Nota da CPT/MG sobre o julgamento do Massacre de Felisburgo: o que não pode ser esquecido.

“Enquanto estavam no campo, Caim se lançou contra o seu irmão Abel e o matou. Então Javé perguntou a Caim: “Onde está o seu irmão Abel?” Caim respondeu: “Não sei. Por acaso eu sou o guarda do meu irmão?” Javé disse: “O que foi que você fez? Ouço o sangue do seu irmão, clamando da terra para mim. Por isso você é amaldiçoado por essa terra que abriu a boca para receber de suas mãos o sangue do seu irmão.” (Da Bíblia, Livro de Gênesis 4,8-11)

Os agentes e militantes da Comissão Pastoral da Terra – CPT -, em Minas Gerais, profundamente irmanados com os companheiros Sem Terra do MST que, numa luta sem trégua, lutam pela socialização da terra, por reforma agrária massiva e popular, estão comprometidos também com a luta por justiça diante do crime hediondo, com requintes de covardia e barbarismo, que foi o Massacre de Felisburgo. Basta de punição para os pobres, negros e jovens das periferias. Basta de impunidade para os crimes perpetrados por integrantes da classe dominante. Para que a verdade triunfe, a Comissão Pastoral da Terra vem a público dizer o que não pode ser esquecido no caso do Massacre de Felisburgo. Eis o que segue.
Na madrugada do dia 1º de maio de 2002, dia das/os trabalhadoras/res, cerca de 230 famílias sem-terra, organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ocuparam a Fazenda Nova Alegria, de 1.700 hectares, em Felisburgo, Vale do Jequitinhonha, MG. Era a primeira ocupação do MST no município. Cerca de 1/3 da fazenda (515 hectares) é de terra devoluta, grilada pela família do fazendeiro e empresário Adriano Chafic. O coronelismo imperava incólume na região, mas a fome e necessidade impeliram os camponeses a se unir, se organizar e a partir para a luta. Com poucas reuniões promovidas pelo MST, o povo teve a coragem de quebrar a cerca desse latifúndio, onde, aliás, posseiros já tinham sido humilhados, inclusive, o Sr. Koné, ali por muito tempo e ter depois simplesmente desaparecido.
Mas a sanha egoísta dos latifundiários irrompeu-se. Era inadmissível o MST chegar, ocupar e quebrar um tabu que dizia “aqui quem manda é os fazendeiros.” Era inaceitável Sem Terra ter vez e voz. Assim, uma escalada de ameaças desencadeou-se durante dois anos e meio. Ameaças de todos os tipos. O povo do Acampamento Terra Prometida – pelo Deus da vida e pela luta organizada – teve de montar guarita e Comissão de Segurança para se defender. Inúmeras denúncias foram feitas pelo MST e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) alertando as polícias militar e civil, a Secretaria de Segurança de Minas, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), o Governo Federal, enfim, todas as autoridades sobre os riscos a que estavam sujeitos os trabalhadores. Estava já sendo criadas as condições para se fazer o que ficou conhecido como O Massacre de Felisburgo. Mas ... até os Boletins de Ocorrência eram “revisados” pelos Sem Terra, porque quase sempre maquiados por policiais que se negavam a escrever a versão dos Sem Terra. A CPT, em 24 de setembro de 2004, fez uma representação junto à Secretaria de Segurança Pública de Minas, alertando que oito jagunços estavam há dois dias dentro do acampamento, mas as autoridades não tomaram as medidas para evitar o massacre. O Estado, mais do que omisso, revelou-se cúmplice de violência.
Estes fatos ganharam repercussão nacional e internacional, mas não são isolados. Eles se inserem no bojo dos 112 conflitos agrários no estado de Minas Gerais, registrados pela CPT em 2004. Estes conflitos, além dos nove assassinatos acontecidos em Minas Gerais, foram responsáveis por 32 tentativas de assassinatos, 27 ameaças de morte, 24 torturados, 75 presos e 56 feridos. Em 25 de novembro de 2004, a CPT de Minas entregou ao Governo do Estado e à Assembleia Legislativa de Minas Gerais um dossiê denunciando a existência de milícias armadas atormentando a vida dos sem-terra acampados no estado. A CPT/MG também registrou 26 ataques de jagunços a acampamentos em Minas nos anos de 2003 e 2004.
Após ter acontecido em Unaí, MG, dia 28 de janeiro de 2004, o Massacre dos quatro fiscais do Ministério do Trabalho, no mesmo ano, dia 20 de novembro de 2004, um sábado chuvoso, dia de Zumbi dos Palmares e da Consciência Negra, por volta das 10:40h da manhã, Adriano Chafic, dono também de muitas outras fazendas na Bahia, chegou ao Acampamento Terra Prometida, com um bando de 17 jagunços. Renderam um Sem Terra que estava na guarita do acampamento e, com revólver encostado na sua orelha, o obrigaram a soltar um foguete, que era a senha para reunir todo o povo do acampamento em caso de ameaça ou de necessidade de se reunir com rapidez. O povo começou a se reunir. Adriano Chafic, visto por muitos no local, liderava a operação, perguntando “Cadê a Eni e o Jorge?” e ordenando “Podem atirar e matar...”. O bando de jagunços - uns encapuzados, outros não - iniciaram os disparos. Dentro de poucos minutos já tinham assassinado cinco Sem Terra - Francisco Nascimento Rocha (72 anos), Juvenal Jorge da Silva (65 anos) Miguel José dos Santos (56 anos), Joaquim José dos Santos (49 anos) e Iraguiar Ferreira da Silva (23 anos). Todos os tiros foram à queima roupa.  Feriram mais de 12 pessoas, incendiaram com gasolina dezenas de barracos de lona preta, inclusive a barraca da Escola, a barraca de alimentos, a barraca da biblioteca, barracos de Maria Gomes dos Santos e do Jorge Rodrigues. Uma criança de doze anos levou um tiro próximo ao olho. Puseram gado nas lavouras dos Sem Terra. Muitos trabalhadores do acampamento ficaram, desde então, amedrontados e portadores de alguma doença, física ou mental, como consequência daquele crime.
 Maria Gomes dos Santos está viva, porque naquele momento estava na pequena Secretaria do MST na cidade de Jequitinhonha. O Jorge Rodrigues está vivo, porque companheiros o convenceram a sair rastejando pelos fundos do acampamento. Ele fugiu pelo mato por muitos quilômetros até poder telefonar e dizer a Maria Gomes: “Cinco companheiros tombaram no Acampamento Terra Prometida, mas nós seguiremos em frente!”
O pânico e traumas indeléveis estão ainda como fantasmas na mente, no subconsciente de dezenas de crianças, idosos, mães desesperadas procurando seus filhos. Leonice Francisca, mãe de onze filhos, com seis já tendo migrado para São Paulo, por falta de reforma agrária, em pranto gritava procurando seus filhos.
Avisada logo em seguida por Maria Gomes, a Polícia só apareceu no local do Massacre de Felisburgo seis horas após, dando prazo suficiente para os jagunços e Adriano Chafic fugirem, após esconder o arsenal de armas em um buraco no mato. Detalhe: cada jagunço empunhava dois revólveres. Além de encontrar as armas, a polícia encontrou as Notas Fiscais de compra das armas na Bahia e da compra de colchões para abrigar os jagunços durante a preparação do bárbaro massacre.
Houve feridos que morreram por falta de socorro. Um motorista de Kombi da prefeitura de Felisburgo foi demitido porque deu carona para um trabalhador Sem Terra que implorava na beira da estrada por socorro. Mortes a queima roupa e com requintes de crueldade. Assassinatos seletivos, pois os cinco mortos eram lideranças do acampamento e do MST do Vale do Jequitinhonha. O ódio também se voltava contra ex-trabalhadores da fazenda, pois, na mente doentia do assassino, significava afronta à submissão dos trabalhadores aos seus coronéis.
Adriano Chafic foi preso duas vezes e conquistou habeas corpus. Confessou a participação no massacre. Ele e os jagunços – um já morreu – já deveriam estar detrás das grades, condenados como perpetradores desse crime hediondo, mas há muitos outros culpados que não podem ser esquecidos. O prefeito de Felisburgo na época e vários outros fazendeiros participavam agressivamente das ameaças e davam todo apoio à sanha criminosa do Adriano Chafic. Policiais, delegado e o governo de Minas que deixa as terras nas mãos de empresas, especialmente as eucaliptadoras. Some-se que agora o governador de Minas está tentando reabilitar uma Proposta de Emenda à Constituição de Minas e aprová-la na Assembleia Legislativa querendo passar de 250 para 2.500 hectares a área que o Estado de Minas Gerais pode titular as terras devolutas para as pessoas físicas ou jurídicas. Algo antidemocrático que significa entregar de vez a imensidão de terras devolutas de MG, contrariando a Constituição Federal que destina essas terras preferencialmente para a Política de Reforma Agrária. Logo, o Governo de MG também deveria estar no Banco dos réus ao lado do mandante Chafic.
O Presidente Luiz Inácio da Silva, o Lula, assinou o Decreto de desapropriação da Fazenda Nova Alegria por crime ambiental, não porque lá ocorreu o massacre. Ou seja, matar uma árvore é mais grave do que matar cinco pessoas, disse implicitamente o decreto de desapropriação. Mas o Poder judiciário não se comoveu nem com as árvores matadas e nem com o sangue dos pobres vertendo na mãe terra, naquele dia chuvoso. E impugnou o decreto desapropriatório. Assim as 60 famílias que perseveram na luta estão ainda sem ser assentadas e terão que fazer a reforma agrária na marra, porque o Estado violentador dos direitos humanos não o faz.
No memorial construído no cemitério da cidade de Felisburgo, há uma grande inscrição que diz: "Aqui foram sepultados os Sem Terra Francisco, Iraguiar, Manoel, Joaquim e Miguel, covardemente assassinados a mando do fazendeiro Adriano Chafik, dia 20 de novembro de 2004. Eles tombaram, mas o sangue deles circula nas nossas artérias e nós seguiremos lutando por reforma agrária, por justiça social e dignidade. Essa era a luta deles e é nossa luta." A Família MST assumiu o compromisso, imortalizado na frase inscrita do lado esquerdo do memorial: "Nós caminharemos por vocês na busca dos seus sonhos que também são os nossos sonhos: a terra, a justiça e a dignidade". O memorial guarda a triste lembrança do dia em que o fazendeiro Adriano Chafik comandou o Massacre de Felisburgo.
Em 20 de novembro de 2005, na celebração de 1 ano do massacre de Felisburgo, uma série de testemunhos deixou todos os presentes com o coração na mão. O Sem Terra Jorge Rodrigues Pereira, um dos marcados para morrer naquele dia, deu o seu testemunho: "Iraguiar, antes de ser assassinado, me disse: 'Jorge, sai fora, porque vão matar você'. Quando vi o tanto de armas, tentei animar os companheiros a dialogar com os pistoleiros, mas tive que correr para não ser morto também. Fugi para procurar socorro. Andei uns oito quilômetros pelo mato até um vilarejo, onde pude telefonar para avisar aos companheiros da cidade de Jequitinhonha e de Belo Horizonte. Nós não queremos guerra. Queremos terra, pois sabemos plantar".
José Maria Martins, um sobrevivente que levou um tiro na perna, disse: "Enquanto a gente tentava levantar um companheiro que tombava, os pistoleiros matavam outros. Após fugir para não morrer, olhei para trás e vi uma nuvem de fumaça cobrindo o acampamento que ardia em chamas. Nunca vou esquecer isso. Doeu muito e continua doendo!".
A Sem Terra Maria Gomes dos Santos enfatizou: "Antes da chegada do MST em Felisburgo, os pobres sempre se curvavam diante do poder dos fazendeiros. O massacre foi premeditado. As armas foram compradas antes e os coronéis diziam que o massacre não aconteceria antes da eleição para não atrapalhar a política e o candidato apoiado por eles, ou seja, um massacre não ficaria bem".
Dia 20 de novembro de 2009, no cemitério de Felisburgo, na celebração do 5º ano do Massacre de Felisburgo, a emoção foi grande. Muitos choraram. As viúvas e os sobreviventes do massacre de Felisburgo sentiram, mais uma vez, uma espada de dor atravessando o coração deles. Graziele José dos Santos, de onze anos, entre lágrimas desabafou: "Todos os dias sinto uma grande dor no coração, pois perdi meu pai Joaquim, perdi meu tio Miguel e perdi meu cunhado Iraguiar. Todos nesse covarde massacre. Eu só peço justiça!" Eis a dor que o latifúndio e o coronelismo causam.
A psicóloga doutoranda da PUC/SP Fabiana Andrade e professora da PUC/MG pesquisou em sua dissertação o trauma causado pelo Massacre de Felisburgo. Diz ela: “Diagnostiquei que as pessoas desenvolveram um trauma que afeta suas vidas diariamente. Elas têm medo, não dormem à noite, algumas pessoas desmaiam e têm pesadelos constantes.”
Três processos de indenização na esfera cível tramitam parados na comarca de Jequitinhonha. Indenização? Cadê?
Apesar de tanta dor, um sentimento pode ser cultivado: hoje, quase nove anos após, o MST é respeitado em Felisburgo. Todo sábado a produção do Acampamento Terra Prometida é carinhosamente esperada na Feira de Felisburgo, pois os alimentos, verduras e legumes produzidos hoje pelas 60 famílias da Terra Prometida abastecem a Feira da Cidade. “70% do abastecimento de alimentos para a cidade vem do Terra Prometida”, diz o vice-prefeito de Felisburgo, Franklin Canguçu. Ou seja, o latifúndio e os latifundiários oferecem balas que matam os Sem Terra, mas os Sem Terra oferecem alimentação saudável, sem agrotóxicos, para o povo. No acampamento Terra Prometida, a luta segue com muita organização: grupos de jovens, rádio comunitária, escola municipal, além da organização em núcleos de base. Assim, o MST segue na luta produzindo acima de tudo pessoas cidadãs e revolucionárias. Tombaram cinco Sem Terra, mas os sobreviventes seguiram em frente!
O julgamento de Adriano Chafic e de dois jagunços, após quase nove anos, após ser marcado e desmarcado várias vezes, está remarcado para o dia 21 de agosto de 2013 pelo Tribunal do Júri, no Fórum Lafaiete, em Belo Horizonte, MG. O Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas, da área de conflitos agrários, Dr. Afonso Henrique de Miranda alerta: “Eu não estou trabalhando com a possibilidade de Chafik ser inocentado. Eu trabalho com provas, e temos provas suficientes para sua condenação.” Será feita justiça?
A Comissão Pastoral da Terra acompanha de perto o Acampamento Terra Prometida, em Felisburgo, desde o se início, e não descansará enquanto não forem julgados e condenados todos os jagunços e os mandantes do crime hediondo que foi o Massacre de Felisburgo. Nossa solidariedade às famílias que perderam seus entes queridos e ainda não foram nem indenizadas. Nosso apoio irrestrito ao MST e a toda a família Sem Terra para clamam por justiça.

Belo Horizonte, MG, Brasil, 20 de agosto de 2013.

Assina essa Nota,
Coordenação da Comissão Pastoral da Terra – CPT/MG,


Eis, abaixo, links de alguns vídeos que estão na internet, no youtube, vídeos que revelam a verdade nua e crua sobre o Massacre de Felisburgo.

1)      Massacre de Felisburgo, 1ª parte de 6 (7,2 minutos):

2)      Massacre de Felisburgo, 2,30 minutos:

3)      Massacre de Felisburgo, feito pelo italiano Antonio Luppo:

4)      Depoimento de João Pedro Stédile, da coord. do MST Nacional, sobre o Massacre de Felisburgo, 7 minutos.

5)      Massacre de Felisburgo, parte 1 (7,41 minutos):

6)      Massacre de Felisburgo: Mística durante o Encontro de preparação para o Plebiscito Popular em MG (12 minutos):


8)      Brigada Justiça para Felisburgo. Justiça para o Massacre de Felisburgo. Julgamento em BH, 15/05/2013


9)      Palavra Ética com Antoniel Assis e Joselane Gomes: massacre de Felisburgo. E a Justiça? 14/11/2012

https://www.youtube.com/watch?v=6qMtT0PgUGk

 

10)  Massacre de Felisburgo (Audiência na ALMG): Eni e Dr. Afonso Henrique/Denúncias graves. 21/11/2012

https://www.youtube.com/watch?v=cxkNoUVA4u0

 

11)  Dep. Padre João cobra Reforma Agrária em Audiência sobre Massacre de Felisburgo. 21/11/2012

https://www.youtube.com/watch?v=xHNyKMQgiN8

 

12)  Jorge Rodrigues, sobrevivente do Massacre de Felisburgo, MG: memória do Massacre. 20/10/2012

https://www.youtube.com/watch?v=e6UniPXXcuc

 

13)  Massacre de Felisburgo: Kely, do MST e sobrevivente, relata que ameaças continuam. 20/10/2012

https://www.youtube.com/watch?v=T4Ya57hh7Zk

 

14)  Palavra Ética com Jorge Rodrigues e Maíra Gomes, sobreviventes/Massacre/Felisburgo/MST. 07/11/2012

https://www.youtube.com/watch?v=zlooMdNqQRo

 

15)  Justiça para Felisburgo

https://www.youtube.com/watch?v=ZJ1sQhTT5Dw

 

16)   JUSTIÇA PARA FELISBURGO 1

https://www.youtube.com/watch?v=1mHsA4yLw6Q

 

17)  JUSTIÇA PARA FELISBURGO 6

https://www.youtube.com/watch?v=1mHsA4yLw6Q

 

18)  JUSTIÇA PARA FELISBURGO 5

https://www.youtube.com/watch?v=1AePAGHbR0U


Obs.: Muitos dos vídeos, acima referidos, têm outras partes que podem ser encontradas em www.youtube.com.br



quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Não é justo despejar o ACAMPAMENTO JOSÉ BANDEIRA, do MST, em Pirapora, norte de Minas, onde 180 famílias Sem Terra estão lutando para viver com dignidade. NOTA DA CPT - 15/08/2013

Não é justo despejar o ACAMPAMENTO JOSÉ BANDEIRA, do MST, em Pirapora, norte de Minas, onde 180 famílias Sem Terra estão lutando para viver com dignidade.

Nota da Comissão Pastoral da Terra – CPT/MG

No Acampamento José Bandeira, do MST, no município de Pirapora, Norte de Minas Gerais, 180 famílias Sem Terra resistem há 8 anos. Em 2003, famílias do MST ocuparam a Fazenda Prata, área de 2.937 hectares, abandonada mais há muito tempo. Após sete anos, o MST foi “despejado” da fazenda. A fazenda Prata voltou a ficar abandonada. Após 2 anos, em 05 de  agosto de 2012, cerca de 180 famílias do MST reocuparam a Fazenda Prata. Muitas pessoas idosas da região dizem: “Somos testemunhas de que a Fazenda Prata nunca produziu nada, além de engordar boi e ser mansão para receber o general João Batista Figueiredo e gente poderosa.” Na fazenda, há uma sede com casas enormes, grã finas, inclusive uma enorme piscina abandonada, pista de pouso para pequenos aviões. Tudo isso largado.  Laudo do INCRA atestou que a fazenda era improdutiva e não cumpria sua função social. As famílias acampadas em barracos de lona preta, sem energia elétrica – com lamparina de querosene ou óleo, ou à luz de vela - produzem bastante hortaliças – verduras e legumes -, milho, feijão, arroz, mandioca etc. Detalhe: sem agrotóxico, com adubação orgânica, na linha da agroecologia. Criam galinhas, porcos e algumas cabeças de gado. Após 8 anos de resistência na terra, o juiz da Vara Agrária de Minas Gerais, Octávio de Almeida Neves, sem visitar a área e fazer audiência in loco, concedeu Liminar de reintegração de posse que exige a expulsão dos Sem Terra da área. Lá, as famílias estão vivendo em paz, produzindo alimentos saudáveis para, inclusive, abastecer a Feira Popular de sábado e domingo na cidade de Pirapora. O povo de Pirapora e o atual prefeito, com todo seu secretariado, apoiam o Assentamento das 180 famílias que hoje resistem no Acampamento José Bandeira. Dia 08/08/2013, os acampados fizeram uma Marcha do Acampamento até a sede da AMMESF – Associação da Bacia do São Francisco, em Pirapora, onde, com centenas de militantes, participaram de audiência com a juíza Renata Viana Souza, da Comarca Local, que tem em mãos carta precatória para cumprir o despejo, mas a juíza, diante das manifestações e da legitimidade da luta do MST na Fazenda Prata pediu para juntar documentos e enviará em 15 dias um Parecer ao Juiz da Vara Agrária de MG, esperamos que sugerindo a revogação da Liminar de reintegração de posse. As 180 famílias do MST dizem que não saem de lá nem mortos. E tem direito de resistir, pois a lei que manda despejá-los é injusta. Dias 10 e 11/08/2013, frei Gilvander Moreira e muitos outros apoiadores visitaram o Acampamento José Bandeira, celebraram ecumenicamente, fizeram Marcha até ao Rio São Francisco, onde foram batizadas nas águas do Velho Chico, 13 crianças Sem Terrinha do Acampamento. Depois participamos de confraternização celebrando 1 ano de Acampamento e de resistência na terra. Assim, todos estão revigorados para continuar a luta pela conquista definitiva da Fazenda Prata, hoje, Acampamento José Bandeira, com 180 famílias do MST, que não admitirá em hipótese alguma o despejo. A Comissão Pastoral da Terra hipoteca irrestrito apoio à luta das 180 famílias do Acampamento José Bandeira, do MST, em Pirapora, como uma luta justa, legítima e necessária. Mandar despejar as famílias do MST da fazenda Prata é uma decisão injusta e covarde, não pode ser aceita.

Belo Horizonte, MG, Brasil, 17 de agosto de 2013.
Assinam,
Participantes da 20ª Assembleia estadual da CPT/MG – Comissão Pastoral da Terra.
Obs.: Cf., abaixo, links de 12 vídeos gravados por frei Gilvander no Acampamento José Bandeira, do MST, em Pirapora, MG, dias 10 e 11/08/2013. São vídeos que ajudam a entender melhor a luta justa e necessária das 180 famílias que lá batalham para serem assentadas e não mais despejadas.