O coração da perícope do Bom Samaritano
(Lc 10,25-37).
Gilvander Luís
Moreira[1]
Para uma
interpretação sensata e libertadora do episódio-parábola do Bom Samaritano (Lc
10,25-37) é preciso, entre vários exercícios, analisar os versículos-chave de
Lc 10,25-37, que são os versículos 33 a 35. Eis o que segue.
Os versículos 33 a 35 descrevem as atitudes –
a práxis - do samaritano. São
versículos riquíssimos em detalhes e
constituem a coluna vertebral do processo que começa com a compaixão e deságua
na misericórdia. Eles são a referência com base na qual se define a identidade
de cada um dos personagens de Lc 10,25-37. Vamos, agora, em busca das
palavras do próprio texto, a fim de sondar seu significado mais profundo.
O samaritano percorre dez passos interligados
e interdependentes (Lc 10,33-35):
1. “Certo samaritano...” anônimo, pois não é revelado o nome dele; herege,
segundo a religião judaica; impuro, segundo o povo judeu; pagão, segundo a
cultura judaica; representante dos samaritanos, que por quase mil anos foram
discriminados pelos judeus que se aliavam aos poderes político, econômico e
religioso.
2. O
samaritano, em viagem, se aproxima da pessoa caída e semimorta. Não passa adiante. Não levanta teorias que
justificam a exclusão e aliviam a própria consciência. Interrompe seus planos e
deixa-se guiar pelo inesperado, pelo inédito, pelo que acontece. O samaritano
estava em viagem porque estava trabalhando. Estava ocupado e provavelmente
também preocupado com suas responsabilidades. Mas, por ironia da história, as pessoas
que encontram mais tempo são as mais ocupadas. Diz a sabedoria dos engajados:
“Se precisar de ajuda, procure alguém que está muito ocupado, pois este terá
mais tempo”. Quem pouco trabalha não encontra tempo – por falta de opção - para
ser solidário. Tempo é questão de preferência. Quem ama verdadeiramente sempre
encontra tempo para estar com a pessoa amada. Encontra o seu jeito de
multiplicar o tempo e conquista o tempo necessário para estar com o outro. O
sacerdote e o levita voltavam do trabalho e teriam, em tese, mais tempo para
dedicar ao pobre assaltado, mas foram insensíveis. O samaritano usa seu
precioso tempo para ser solidário.
3. O
samaritano “chega junto...”,
não fica a distância, na arquibancada da vida; aproxima-se do outro que está em
apuros. Padre Júlio Lancellotti, vigário episcopal do povo da rua, da cidade de
São Paulo, certa vez, quando saía da prisão, foi nervosamente interpelado pelo
diretor da prisão: “Pode voltar lá
dentro, pois os menores infratores recomeçaram outra rebelião lá e já fizeram
alguns funcionários como reféns”. Padre Júlio discerniu no calor do
conflito e voltou. Ao entrar, pulou no meio dos menores rebelados e gritou: “Silêncio! Sentem todos!” Um menor
grandalhão levantou-se e disse para todos: “Vamos
obedecer, pois o padre, nosso amigo, está falando”. Padre Júlio,
continuando, conclamou os menores: “Vamos
rezar um Pai-nosso. Pai nosso, que estais no céu...” Todos rezaram e assim
a rebelião foi contida. No dia seguinte, perguntaram aos menores: “Por que vocês obedecem ao padre Júlio e não
obedecem aos guardas penitenciários?” Eles responderam em coro: “Padre Júlio é gente fina; é nosso amigo;
chega junto quando estamos em apuros; é verdadeiro; gosta de nós; não mente
para nós”. No dia seguinte, padre Júlio constatou que alguns menores tinham
sido torturados por dizerem a verdade e denunciarem as arbitrariedades
cometidas pelos guardas.
4. O
samaritano vê
o excluído semimorto. Não foi um olhar frio, calculista, sobre o
sofrimento do outro, mas um olhar com base no outro que sofre. Um olhar de
benevolência e ternura. Deixa que a dor do outro entre através dos próprios
olhos. Certamente foi um olhar penetrante. Passa a ver o mundo conforme a dor
do outro. E deixa se guiar pela visão que vê o outro sofrendo. Diz a sabedoria
popular: aquilo que os olhos não veem o coração não sente. Um provérbio indiano
expressa semelhante compreensão ao dizer que os olhos veem mil vezes mais do
que os ouvidos escutam. “Não basta se aproximar apenas para fazer uma visita”,
alerta tio Maurício, bom samaritano do povo da rua, em Belo Horizonte, autor do
livro O Beijo de Deus – o evangelho da
Rua segundo tio Maurício.
5. O
samaritano move-se de compaixão em
face da dor do excluído. A
dor do outro entra pelos olhos e invade todo o corpo. Penetra nas entranhas, no
coração, revolvendo-os. Revira o corpo por dentro. Quem está comovido se
entrega ao outro, não o agride. Sentir compaixão é associar-se à dor do outro
partilhando-a e, desse modo, diminuindo-a. A dor sentida pela pessoa assaltada foi suavizada pelo “odor” da companhia do samaritano. Segundo
Dalai Lama, compaixão é admitir que a vida do outro é mais importante do que a
minha própria vida; é orientar a vida segundo o outro que sofre. O outro se
torna um absoluto na minha vida. Quem decidirá se o meu trabalho vai continuar
é a situação do outro.
6. O
samaritano se aproxima ainda mais da
pessoa sofrida, entrega-se gradativamente ao outro. É na proximidade que se dá o encontro face a
face, o encontro eu–tu. Foi assim
que aconteceu com Moisés na sarça ardente (Ex 3,1-6). O Jó da Bíblia, pai da
impaciência e da rebeldia, depois de passar por um processo dolorido de revisão
da sua experiência de Deus, chega à seguinte conclusão: “Antes
eu Te conhecia somente por ouvir dizer, mas agora meus olhos Te veem” (Jó 42,5). Quer dizer, Jó encontra-se
face a face com um Deus solidário e libertador. Mas o encontro face-a-face com
Deus se dá no encontro face-a-face com o outro, principalmente com o outro que
está excluído, semimorto. Pelo rosto reconhecemos com muito mais facilidade uma
pessoa que já vimos alguma vez. Mas se nos apresentar um corpo sem rosto será
muito mais difícil o reconhecimento. Uma religiosa, de vida consagrada,
desejava viver a contemplação no meio do povo excluído da periferia de Vitória
da Conquista, BA. Ela decidiu rezar com o povo aflito da sua vizinhança. Um
dia, enquanto visitava as famílias nos seus casebres, percebendo que muitas
mães davam água com sal para tentar consolar os filhos que choravam pedindo
alimento, a religiosa perguntou para uma mãe: “Por que você vendeu todas as camas, cadeiras e os móveis da casa?”
A mãe respondeu: “Irmã, a senhora nunca
vai conseguir entender o que significa uma mãe ver o filho chorar e gritar com
fome e não ter alimento para dar para o filho. Vendi todos os móveis, um a um,
para comprar pão para meus sete filhos. Frio até que a gente aguenta, mas
passar fome e ver os filhos pedirem alimento é ser cortada por dentro; mata a
gente aos poucos. Nós, mães, não somos de ferro. Somos de carne e osso e amamos
os nossos filhos”.
7. O
samaritano cuida do outro no imediato e
no mediato. Fez
curativos, derramando óleo e vinho nas feridas. A compaixão move o coração e aciona as mãos para a prática da
misericórdia, da solidariedade efetiva. O samaritano vive a espiritualidade do cuidado com o outro e consigo mesmo.
Falam alto o modo como ele ajuda e o que ele usa para cuidar do outro. Revelam a experiência e a competência de quem já
está familiarizado com o exercício da solidariedade. E o que ele usa para
aliviar a dor do outro são frutos da
mãe-terra e do seu esforço humano (suor, fadiga, tempo). Com produtos naturais,
o samaritano recupera a vida do outro: óleo, para curar feridas, e vinho, que
além de curar, dá alegria e ajuda a retomar a vida.
8. O
samaritano “colocando-o
sobre o seu próprio animal, levou-o a uma pensão, onde cuidou dele...” Fez-se solidário, prestou os primeiros
socorros e encaminhou o semimorto para o restabelecimento completo. O
samaritano não se contentou com o mínimo de assistência oferecida a alguém em
perigo, mas deu seu tempo, seu dinheiro e o seu ser, sem calcular. A oferta do
dinheiro não é substitutiva, mas um complemento da sua ação pessoal. Ele amou
“com força”, isto é, com os seus próprios bens econômicos. Ele mostrou que amar
é agir com o coração, é ter “coragem”. Para o samaritano, o grito por
solidariedade é urgente. Seria tarde demais e chegaria atrasado se ele tivesse
dito para o excluído semimorto: “Daqui a
pouco eu te ajudo”; ou “espera um
pouco”; ou “quando eu voltar, eu te
ajudo”; ou “depois que eu me
aposentar eu te ajudo”; ou “quando eu
ganhar na loteria eu te ajudo” ou, ou.... Mas o samaritano cedeu o seu
próprio jumento para carregar a vítima, desinstalando-se. Isso faz-nos recordar
a alegria com que o povo pobre acolhe uma visita, oferece a própria cama para o
hóspede e vai dormir no chão. O que normalmente não acontece na casa de pessoas
ricas. Com frequência, observa-se hoje uma placa de advertência com a seguinte inscrição:
“Cuidado, cão bravo!”; “Cuidado, cerca elétrica!”.
9. O samaritano pagou
dois denários.[2] Conforme Mt 20,2, um denário era o
suficiente para pagar um dia de serviço. Mas “um denário por um dia de serviço”
era o suficiente para alimentar a esposa e os filhos, comprar roupas, manter as
necessidades do lar, pagar impostos, taxas do templo etc? Concordando com o
biblista Fitzmyer, dizemos que “a descrição do samaritano é esplêndida; emprega
todas suas posses materiais - azeite, vinho, cavalgadura, dinheiro - para
ajudar um pobre infortunado que se encontra pelo caminho”.[3]
“Nenhum escritor do Segundo Testamento - salvo, talvez, o autor da carta de
Tiago, e este somente de maneira análoga - põe maior ênfase na moderação com a
qual o discípulo deve usar suas próprias riquezas materiais.”[4] O
samaritano cumpriu o que estava prescrito no shemáh: Dt 6,4-5, que diz “Ouça,
Israel... ame a Javé seu Deus com todo o seu
coração, com toda a sua alma
e com toda a sua força.” “Amar com toda sua força” diz respeito à
dimensão econômica da vida, a partilha dos bens econômicos. O samaritano deixa o
semimorto protegido e encaminhado. Vai embora, mas deixa marcas de bondade e
sai positivamente marcado para o resto da vida.
10. O
samaritano não deixou nome nem endereço. Soube a hora exata de entrar e de sair da vida do outro. Foi embora.
Agindo assim, impossibilitou que se criasse vínculo de dependência entre ele e
o socorrido. Ele foi solidário de modo gratuito e libertador.
Belo
Horizonte, MG, Brasil, 26 de agosto de 2013.
Frei
Gilvander Moreira – www.gilvander.org.br
– www.freigilvander.blogspot.com.br
Facebook:
Gilvander Moreira
[1]
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela
UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo
Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutorando em Educação pela
FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, SAB e Via Campesina; conselheiro do Conselho
Estadual dos Direitos Humanos de Minas Gerais – CONEDH; e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br
– www.gilvander.org.br – www.twitter.com/gilvanderluis -
Facebook: Gilvander Moreira
Obs.: Esse texto é a “6ª
parte” do artigo “Seguir Jesus, desafio que exige compromisso”, de Gilvander
Luís Moreira, publicado no livro “RECRIAR
O CAMINHO com as Comunidades de Lucas, uma leitura do Evangelho de Lucas feita
pelo CEBI-MG, São Leopoldo, CEBI, 2013, pp. 48-77.
[2] “A moeda denário era parte
do sistema de cunhagem do Império Romano. “ Cf. D. E. OAKMAN, “The
Buying Power of two denarii. A Comment on Luke 10:35” Forum 3 (1987) 35.
[3] Fitzmyer, Lucas..., cit., v. 3. p. 287.
[4] Fitzmyer,
Lucas..., cit., v. 1, p. 416.
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