segunda-feira, 26 de agosto de 2013

O coração da perícope do Bom Samaritano (Lc 10,25-37), texto de frei Gilvander Moreira. 26/08/2013.

O coração da perícope do Bom Samaritano (Lc 10,25-37).
Gilvander Luís Moreira[1]

Para uma interpretação sensata e libertadora do episódio-parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37) é preciso, entre vários exercícios, analisar os versículos-chave de Lc 10,25-37, que são os versículos 33 a 35. Eis o que segue.
Os versículos 33 a 35 descrevem as atitudes – a práxis - do samaritano. São versículos riquíssimos em detalhes e constituem a coluna vertebral do processo que começa com a compaixão e deságua na misericórdia. Eles são a referência com base na qual se define a identidade de cada um dos personagens de Lc 10,25-37. Vamos, agora, em busca das palavras do próprio texto, a fim de sondar seu significado mais profundo.
O samaritano percorre dez passos interligados e interdependentes (Lc 10,33-35):
1.      Certo samaritano...” anônimo, pois não é revelado o nome dele; herege, segundo a religião judaica; impuro, segundo o povo judeu; pagão, segundo a cultura judaica; representante dos samaritanos, que por quase mil anos foram discriminados pelos judeus que se aliavam aos poderes político, econômico e religioso.
2.      O samaritano, em viagem, se aproxima da pessoa caída e semimorta. Não passa adiante. Não levanta teorias que justificam a exclusão e aliviam a própria consciência. Interrompe seus planos e deixa-se guiar pelo inesperado, pelo inédito, pelo que acontece. O samaritano estava em viagem porque estava trabalhando. Estava ocupado e provavelmente também preocupado com suas responsabilidades. Mas, por ironia da história, as pessoas que encontram mais tempo são as mais ocupadas. Diz a sabedoria dos engajados: “Se precisar de ajuda, procure alguém que está muito ocupado, pois este terá mais tempo”. Quem pouco trabalha não encontra tempo – por falta de opção - para ser solidário. Tempo é questão de preferência. Quem ama verdadeiramente sempre encontra tempo para estar com a pessoa amada. Encontra o seu jeito de multiplicar o tempo e conquista o tempo necessário para estar com o outro. O sacerdote e o levita voltavam do trabalho e teriam, em tese, mais tempo para dedicar ao pobre assaltado, mas foram insensíveis. O samaritano usa seu precioso tempo para ser solidário.
3.      O samaritano “chega junto...”, não fica a distância, na arquibancada da vida; aproxima-se do outro que está em apuros. Padre Júlio Lancellotti, vigário episcopal do povo da rua, da cidade de São Paulo, certa vez, quando saía da prisão, foi nervosamente interpelado pelo diretor da prisão: “Pode voltar lá dentro, pois os menores infratores recomeçaram outra rebelião lá e já fizeram alguns funcionários como reféns”. Padre Júlio discerniu no calor do conflito e voltou. Ao entrar, pulou no meio dos menores rebelados e gritou: “Silêncio! Sentem todos!” Um menor grandalhão levantou-se e disse para todos: “Vamos obedecer, pois o padre, nosso amigo, está falando”. Padre Júlio, continuando, conclamou os menores: “Vamos rezar um Pai-nosso. Pai nosso, que estais no céu...” Todos rezaram e assim a rebelião foi contida. No dia seguinte, perguntaram aos menores: “Por que vocês obedecem ao padre Júlio e não obedecem aos guardas penitenciários?” Eles responderam em coro: “Padre Júlio é gente fina; é nosso amigo; chega junto quando estamos em apuros; é verdadeiro; gosta de nós; não mente para nós”. No dia seguinte, padre Júlio constatou que alguns menores tinham sido torturados por dizerem a verdade e denunciarem as arbitrariedades cometidas pelos guardas.
4.      O samaritano o excluído semimorto. Não foi um olhar frio, calculista, sobre o sofrimento do outro, mas um olhar com base no outro que sofre. Um olhar de benevolência e ternura. Deixa que a dor do outro entre através dos próprios olhos. Certamente foi um olhar penetrante. Passa a ver o mundo conforme a dor do outro. E deixa se guiar pela visão que vê o outro sofrendo. Diz a sabedoria popular: aquilo que os olhos não veem o coração não sente. Um provérbio indiano expressa semelhante compreensão ao dizer que os olhos veem mil vezes mais do que os ouvidos escutam. “Não basta se aproximar apenas para fazer uma visita”, alerta tio Maurício, bom samaritano do povo da rua, em Belo Horizonte, autor do livro O Beijo de Deus – o evangelho da Rua segundo tio Maurício.
5.      O samaritano move-se de compaixão em face da dor do excluído. A dor do outro entra pelos olhos e invade todo o corpo. Penetra nas entranhas, no coração, revolvendo-os. Revira o corpo por dentro. Quem está comovido se entrega ao outro, não o agride. Sentir compaixão é associar-se à dor do outro partilhando-a e, desse modo, diminuindo-a. A dor sentida pela pessoa assaltada foi suavizada pelo “odor” da companhia do samaritano. Segundo Dalai Lama, compaixão é admitir que a vida do outro é mais importante do que a minha própria vida; é orientar a vida segundo o outro que sofre. O outro se torna um absoluto na minha vida. Quem decidirá se o meu trabalho vai continuar é a situação do outro.
6.      O samaritano se aproxima ainda mais da pessoa sofrida, entrega-se gradativamente ao outro. É na proximidade que se dá o encontro face a face, o encontro eu–tu. Foi assim que aconteceu com Moisés na sarça ardente (Ex 3,1-6). O Jó da Bíblia, pai da impaciência e da rebeldia, depois de passar por um processo dolorido de revisão da sua experiência de Deus, chega à seguinte conclusão:  “Antes eu Te conhecia somente por ouvir dizer, mas agora meus olhos Te veem” (Jó 42,5). Quer dizer, Jó encontra-se face a face com um Deus solidário e libertador. Mas o encontro face-a-face com Deus se dá no encontro face-a-face com o outro, principalmente com o outro que está excluído, semimorto. Pelo rosto reconhecemos com muito mais facilidade uma pessoa que já vimos alguma vez. Mas se nos apresentar um corpo sem rosto será muito mais difícil o reconhecimento. Uma religiosa, de vida consagrada, desejava viver a contemplação no meio do povo excluído da periferia de Vitória da Conquista, BA. Ela decidiu rezar com o povo aflito da sua vizinhança. Um dia, enquanto visitava as famílias nos seus casebres, percebendo que muitas mães davam água com sal para tentar consolar os filhos que choravam pedindo alimento, a religiosa perguntou para uma mãe: “Por que você vendeu todas as camas, cadeiras e os móveis da casa?” A mãe respondeu: “Irmã, a senhora nunca vai conseguir entender o que significa uma mãe ver o filho chorar e gritar com fome e não ter alimento para dar para o filho. Vendi todos os móveis, um a um, para comprar pão para meus sete filhos. Frio até que a gente aguenta, mas passar fome e ver os filhos pedirem alimento é ser cortada por dentro; mata a gente aos poucos. Nós, mães, não somos de ferro. Somos de carne e osso e amamos os nossos filhos”.
7.      O samaritano cuida do outro no imediato e no mediato. Fez curativos, derramando óleo e vinho nas feridas. A compaixão move o coração e aciona as mãos para a prática da misericórdia, da solidariedade efetiva. O samaritano vive a espiritualidade do cuidado com o outro e consigo mesmo. Falam alto o modo como ele ajuda e o que ele usa para cuidar do outro. Revelam a experiência e a competência de quem já está familiarizado com o exercício da solidariedade. E o que ele usa para aliviar a dor do outro são frutos da mãe-terra e do seu esforço humano (suor, fadiga, tempo). Com produtos naturais, o samaritano recupera a vida do outro: óleo, para curar feridas, e vinho, que além de curar, dá alegria e ajuda a retomar a vida.
8.      O samaritano “colocando-o sobre o seu próprio animal, levou-o a uma pensão, onde cuidou dele...” Fez-se solidário, prestou os primeiros socorros e encaminhou o semimorto para o restabelecimento completo. O samaritano não se contentou com o mínimo de assistência oferecida a alguém em perigo, mas deu seu tempo, seu dinheiro e o seu ser, sem calcular. A oferta do dinheiro não é substitutiva, mas um complemento da sua ação pessoal. Ele amou “com força”, isto é, com os seus próprios bens econômicos. Ele mostrou que amar é agir com o coração, é ter “coragem”. Para o samaritano, o grito por solidariedade é urgente. Seria tarde demais e chegaria atrasado se ele tivesse dito para o excluído semimorto: “Daqui a pouco eu te ajudo”; ou “espera um pouco”; ou “quando eu voltar, eu te ajudo”; ou “depois que eu me aposentar eu te ajudo”; ou “quando eu ganhar na loteria eu te ajudo” ou, ou.... Mas o samaritano cedeu o seu próprio jumento para carregar a vítima, desinstalando-se. Isso faz-nos recordar a alegria com que o povo pobre acolhe uma visita, oferece a própria cama para o hóspede e vai dormir no chão. O que normalmente não acontece na casa de pessoas ricas. Com frequência, observa-se hoje uma placa de advertência com a seguinte inscrição: “Cuidado, cão bravo!”; “Cuidado, cerca elétrica!”.
9.      O samaritano pagou dois denários.[2] Conforme Mt 20,2, um denário era o suficiente para pagar um dia de serviço. Mas “um denário por um dia de serviço” era o suficiente para alimentar a esposa e os filhos, comprar roupas, manter as necessidades do lar, pagar impostos, taxas do templo etc? Concordando com o biblista Fitzmyer, dizemos que “a descrição do samaritano é esplêndida; emprega todas suas posses materiais - azeite, vinho, cavalgadura, dinheiro - para ajudar um pobre infortunado que se encontra pelo caminho”.[3] “Nenhum escritor do Segundo Testamento - salvo, talvez, o autor da carta de Tiago, e este somente de maneira análoga - põe maior ênfase na moderação com a qual o discípulo deve usar suas próprias riquezas materiais.”[4] O samaritano cumpriu o que estava prescrito no shemáh: Dt 6,4-5, que diz “Ouça, Israel... ame a Javé seu Deus com todo o seu coração, com toda a sua alma e  com toda a sua força.” “Amar com toda sua força” diz respeito à dimensão econômica da vida, a partilha dos bens econômicos. O samaritano deixa o semimorto protegido e encaminhado. Vai embora, mas deixa marcas de bondade e sai positivamente marcado para o resto da vida.
10.  O samaritano não deixou nome nem endereço. Soube a hora exata de entrar e de sair da vida do outro. Foi embora. Agindo assim, impossibilitou que se criasse vínculo de dependência entre ele e o socorrido. Ele foi solidário de modo gratuito e libertador.

Belo Horizonte, MG, Brasil, 26 de agosto de 2013.
Facebook: Gilvander Moreira




[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutorando em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, SAB e Via Campesina; conselheiro do Conselho Estadual dos Direitos Humanos de Minas Gerais – CONEDH; e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.brwww.gilvander.org.brwww.twitter.com/gilvanderluis - Facebook: Gilvander Moreira
Obs.: Esse texto é a “6ª parte” do artigo “Seguir Jesus, desafio que exige compromisso”, de Gilvander Luís Moreira, publicado no livro  “RECRIAR O CAMINHO com as Comunidades de Lucas, uma leitura do Evangelho de Lucas feita pelo CEBI-MG, São Leopoldo, CEBI, 2013, pp. 48-77.
[2]    “A moeda denário era parte do sistema de cunhagem do Império Romano. “ Cf. D. E. OAKMAN, “The Buying Power of two denarii. A Comment on Luke 10:35” Forum 3 (1987) 35.
[3]    Fitzmyer, Lucas..., cit., v. 3. p. 287.
[4]    Fitzmyer, Lucas..., cit., v. 1, p. 416.

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