NA CARTA AOS ROMANOS: SUBMISSÃO ÀS AUTORIDADES (Rm 13,1-7)? Por Frei Gilvander Moreira1
Em setembro de 2025, nos 54 anos do mês
da Bíblia, refletiremos a partir da Carta do apóstolo Paulo aos Romanos,
escrita nos últimos anos da década de 50 do 1º século da era cristã. Abordaremos
aqui neste texto dois assuntos: 1) A Lei versus a gratuidade do amor de Deus;
2) Paulo em Romanos 13,1-7: submeter-se às autoridades?
Paulo denuncia o fechamento de certos
fariseus convertidos a Cristo, que continuam numa observância cega da Lei,
desprezando a gratuidade do amor de Deus (cf. Rm 3,21-31). Ninguém se salva a
si mesmo através da rígida observância de preceitos legais (Rm 9,14-24) e nem
compra de Deus postura misericordiosa.
Nenhuma lei nos salva, nem a lei
judaica. Viver e conviver como Jesus Cristo viveu, conviveu e lutou, por amor
ao próximo, é o caminho libertador e salvador. “A salvação vem pela fé”, afirma
e reafirma várias vezes o apóstolo Paulo na Carta aos Romanos, mas que tipo de
fé? Não uma fé dogmática e doutrinária que leva a pessoa a aceitar,
ingenuamente, o que dizem as autoridades religiosas, mas a fé que consiste em
um ato de total confiança na realização das promessas divinas (cf. Rm 4,23-24)
e produz uma disposição existencial que leva a pessoa a uma adesão, por amor a
Jesus Cristo e ao seu projeto de fraternidade universal e a abraçar, por amor,
a vivência do projeto de Jesus Cristo que irradia vida, amor, respeito, ética e
solidariedade.
Para Paulo, o DNA do Evangelho é uma
ótima notícia de salvação para toda a humanidade, quer sejam judeus, quer sejam
gentios ou de qualquer outro povo e cultura. Jesus veio para todos e todas,
também para todos os seres vivos da biodiversidade, o que devemos enfatizar,
atualmente, diante do colapso ambiental causado pelo sistema idolátrico do
mercado capitalista, que é brutal máquina de moer vidas.
Paulo em Romanos 13,1-7:
submeter-se às autoridades? O capítulo 13 da Carta aos Romanos se
subdivide em duas partes: a) Rm 13,1-7, que aborda como deve ser o
comportamento das pessoas cristãs diante das autoridades do império; b) Rm
13,8-14, que trata do amor ao próximo, amor mútuo, na vida da comunidade.
A afirmação de Paulo, na abertura de Rm
13 é, à primeira vista, muito estranha, ao exortar de forma contundente:
“Submetam-se todos às autoridades constituídas, pois toda autoridade vem de
Deus” (Rm 13,1). Para resgatarmos o provável sentido deste versículo, temos que
perceber que Paulo escreve a comunidades perseguidas, brutalmente, pelo poder
político e, por isso, indignadas com toda e qualquer autoridade, comunidades
que estão sob a tentação de não aceitar nenhum tipo de autoridade.
“Gato escaldado com água quente tem medo
até de água fria”, diz a sabedoria popular. O verbo ‘submeter’ indica relação
de subserviência, que não é o que apregoa Paulo. A melhor tradução é
“obedeçam”, o que não implica submeter-se, cegamente, a qualquer autoridade.
Paulo não defende obediência a qualquer autoridade, mas às “autoridades
constituídas”, ou seja, autoridades legítimas, o que excluí autoridades
tirânicas, ditatoriais, impostoras. Inclui, certamente, autoridades
democráticas, que se preocupam em coordenar a vida social segundo a vontade de
Deus. E qual é a vontade de Deus? Que todos/as construamos relações humanas e
sociais onde haja condições objetivas para que todos/as tenham vida em
abundância (Jo 10,10).
Em muitas outras passagens bíblicas se
exorta a não obedecer a leis injustas baixadas por autoridades.[1] Há
inúmeros exemplos na Bíblia em que povos oprimidos e injustiçados, “povos de
Deus”, que desafiam leis e governantes injustos. Os sacerdotes do templo
desafiaram a rainha Atalia quando esconderam Joás por seis anos, e até
executaram a rainha (2 Rs 11). O exército de Saul interpôs-se diante do rei
Saul para proteger Jônatas do injusto decreto de morte do rei (1 Sm 14,45).
Jesus não respondeu à pergunta do sumo sacerdote sobre se Ele era o Cristo,
embora o sacerdote lhe tenha ordenado que respondesse (Mt 26,62-63).
Segundo o Evangelho de Lucas, no segundo
envio missionário, em contexto conflituoso em que os/as discípulos/as estariam
como ovelhas no meio de lobos, Jesus ordenou que seus discípulos comprassem
espada, embora isso fosse ilegal de acordo com a lei romana (cf. Lc 22,36-38).
E o apóstolo Paulo relata como ele foi baixado dos muros da cidade de Damasco
em uma cesta, desafiando o governador sob o rei Aretas, que estava vigiando a
cidade para prendê-lo (cf. 2 Cor 11,32-33; At 9,23-25).
Devemos buscar um fio condutor na
interpretação dos textos bíblicos, que mostre unidade da mensagem bíblica.
Leitura fundamentalista, que “pinça” versículos isolados, pode nos levar a
interpretações antagônicas e contraditórias, à ideia falsa de que os povos bíblicos
de Deus atiram para todos os lados, em posições diametralmente opostas. Óbvio
que na Bíblia há palavra de Deus, mas nem tudo o que está na Bíblia é palavra
de Deus, pois é literatura escrita por mãos humanas, em contexto histórico e em
situações circunstanciadas.
Em Rm 13,1, observando todos os detalhes
do versículo inteiro, os textos anteriores e a continuidade da reflexão, Paulo
exclui subserviência a toda e qualquer autoridade, mas reconhece que a vida
social precisa de coordenação e gerenciamento, senão se instaura o caos social,
o que violenta a vida, principalmente dos mais enfraquecidos. Paulo está
animando as comunidades cristãs a reconhecerem que, algum tipo de autoridade
constituída de forma legítima é necessário e que as comunidades não podem
“chutar o pau da barraca” e “jogar fora a criança com a água suja”. Se umas
autoridades estão sendo opressoras, não podemos generalizar e dizer que
qualquer pessoa que assumir o poder político, exercerá de forma opressora sua
autoridade.
É importante lembrar que antigamente os
documentos da Bíblia não eram divididos em capítulos e versículos. Assim, esse
começo do capítulo 13 da Carta aos Romanos está situado no contexto mais amplo
dos versos anteriores que tratam do amor aos inimigos. Paulo estava afirmando:
“A ninguém pagueis o mal com o mal” (Rm 12,17). “Não vos vingueis de ninguém”
(Rm 12,19). “Se o teu inimigo estiver com fome, dá-lhe de comer...(...) Agindo
assim, estarás amontoando brasas sobre a sua cabeça” (Rm 12,20). E, aí,
imediatamente afirma: obedeçam às autoridades. Portanto, trata da relação com
as autoridades do império no contexto do amor aos inimigos, amor que deve ser
crítico, lúcido e perspicaz. O Evangelho de Jesus Cristo nos pede para amarmos
todas as pessoas, porém, não do mesmo jeito. Devemos amar os/as empobrecidos/as
e injustiçados/as nos colocando ao lado deles e delas para com eles/elas
empreendermos lutas coletivas concretas pelos seus direitos e devemos amar os
inimigos/opressores de outro jeito: fazendo o possível e o impossível para
retirar das suas mãos as armas da opressão e da exploração.
“Todos devem obedecer às autoridades
constituídas”, não apenas a classe trabalhadora, o povo, mas todos/as, sem
exceção, o que inclui a classe dominante e quem está na autoridade política. Em
linguagem nossa, todos/as, sem exceção, estão sob os ditames das leis
constituídas de forma legítima. E dizer que “não há autoridade que não venha de
Deus” significa negar a divinização do imperador, que é imposto como se fosse a
fonte da sua própria autoridade. Paulo está subvertendo a lógica imperial de
dominação e animando as comunidades cristãs a se rebelarem contra a ideologia
dominante, que considera o imperador como um deus. Para Paulo, o imperador não
é um deus, é um ídolo. Para Paulo, o Deus verdadeiro é o papai (abba, em aramaico, Rm 8,14-15) de Jesus
Cristo, o que o ressuscitou dos mortos e Jesus está vivo como Emanuel no nosso
meio nos inspirando e guiando.
Paulo reflete sobre as relações humanas
e sociais entre os governados e governadores. Em Rm 13,2, ele alerta que marcha
para sua própria condenação, quem se opõe às autoridades que agem como Deus
quer. Ou seja, benditas as autoridades quando são justas e éticas. Estas são
elogiadas pelo apóstolo Paulo.
Em Rm 13,3, Paulo pondera com sensatez:
Quem governa fazendo o bem, não há por que temer o povo governado, mas se faz o
mal, pode temer, pois poderá haver rebelião e revolta popular. O ditado popular
que diz “Quem não deve não teme” parece que se inspira na carta de Paulo aos
Romanos. Quem age de forma ética e justa não há por que temer nenhuma
autoridade.
Em Rm 13,4, Paulo alerta para a dimensão
pedagógica da autoridade política. Como não somos uma sociedade de anjos(as) ou
de pessoas santas perfeitas, é preciso existir a “espada”, símbolo do poder
coercitivo que deve ser restrito, segundo Paulo, para a correção de quem age
mal. Diz Paulo: “A autoridade é instrumento de Deus para o seu bem” (Rm 13,4).
Esta afirmação parece defender que, como no corpo humano, para que ele tenha
condições de vida, é preciso ter ossos que sustentem a estrutura dos aparelhos
circulatórios, nervoso, muscular..., assim também, não podemos defender, na
convivência social, uma anarquia radical e absoluta, uma sociedade sem governo,
pois será cada um por si e os mais fortes se imporão sobre os fracos e a
tirania será instaurada. Nesse sentido é que certo tipo de autoridade é
instrumento de Deus para a construção de seu reinado no mundo.
Em Rm 13,5, Paulo exorta que, a
obediência de todos/as às autoridades constituídas, não pode ocorrer somente
por medo de represália, mas, também, por uma adesão ética, que é o que assegura
princípios orientadores de uma convivência social justa, ética e
saudável.
19/08/25
Obs.: As videorreportagens nos
links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 – ELSA TAMEZ: CARTA AOS ROMANOS É
FASCINANTE, MAS DIFÍCIL DE SER COMPREENDIDA. URGE HISTORICIZAR PAULO
2 - CARTA AOS ROMANOS: LEITURA
ECOFEMINISTA de Rm 8. IVONI RICHTER REIMER-EQUIPE DE PUBLICAÇÕES/ CEBI-MG
3 - CARTA AOS ROMANOS: CONTEXTO, CHAVES
DE LEITURA, LIBERTAR PAULO. Por Prof. Dr. PEDRO LIMA VASCONCELOS
4 - CARTA AOS ROMANOS - parte 1
5 - Reflexão sobre a Carta de São Paulo
aos Romanos - Parte 1
6 - Mês da Bíblia 2025 - Carta aos
Romanos
7 - Carta de Paulo aos Romanos 01/06
8 - Carta de Paulo aos Romanos 02/06
9 - Carta de Paulo aos Romanos 03/06
10 - Carta de Paulo aos Romanos 04/06
11 - Carta de Paulo aos Romanos 05/06
12 - Carta de Paulo aos Romanos 06/06
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