Catar versículos bíblicos para justificar preconceitos? Por frei Gilvander Moreira[1]
Foto Reprodução de Redes Virtuais
Invocado sob muitos nomes, mistério de amor que nos envolve e perpassa, Deus, segundo a Bíblia, se revela na história[2], nas entranhas dos fatos e acontecimentos que fazem a história. Assim, para quem acredita em Deus, a caminhada e lutas de libertação de todo e qualquer tipo de escravidão se dá na companhia amorosa de Deus. A revelação de Deus se faz presente na transitoriedade humana, ou seja, no tempo e no espaço com a progressividade de um caminho com início, realização e o cumprimento em Cristo Jesus. Isso não significa dizer que seja um caminho sem tensões, retrocessos e avanços. O caminho da revelação divina se faz na história das lutas libertárias dos povos explorados e injustiçados e por meio da palavra que a interpreta e orienta. Nas relações humanas e sociais dos acontecimentos históricos a iluminação interior confere ao profeta/profetisa ou à comunidade de fé a inteligência de ler, à luz de Deus, os acontecimentos, seja pela palavra oral ou escrita, fazendo a leitura e a interpretação dos fatos e da realidade que nos envolve.
A revelação bíblica não é mágica. Ela
passa pela mediação humana não só porque a palavra chega
até nós por meio dos profetas/profetisas e dos/as apóstolos/as e, por ser
histórica, ela necessita da mediação para ser transmitida e atualizada para o
ser humano e a comunidade que a acolhem. A revelação é o entrelaçar-se de
movimentos históricos e sagrados da iniciativa livre e gratuita de Deus e das
reflexões do ser humano para compreendê-la e abraçá-la.
A revelação é dialógica e pessoal por meio do encontro de Deus com o ser humano,
que se coloca em uma atitude de escuta e de abertura ao mistério de amor que
nos envolve. É um diálogo profundo, vital; não só troca de conhecimentos. Deus
fala com o ser humano para libertá-lo e torná-lo humano-divino. Podemos dizer
que a revelação é, ao mesmo tempo, teológica e antropológica, porque revela o
mistério de Deus e a vocação/missão humana. Deus revela o seu desígnio sobre o
ser humano, a história, dá normas de conduta, explica os acontecimentos que são
dados ao ser humano para viver, conviver e lutar para que um projeto de vida
para todos/as se torne realidade: o reino de Deus a partir do aqui e do agora.
Deus se revela em uma comunhão de pessoas, em um diálogo de conhecimento e de
amor, no qual o ser humano é inserido pela fé, que é disposição existencial
para acolher e lidar com o mais profundo do nosso ser.
A revelação divina manifesta-se trinitária em que as três pessoas da
Trindade Santa estão na origem com modalidades próprias da revelação: o Pai tem
a iniciativa de buscar comunhão com o ser humano; Jesus Cristo é a revelação
plena do amor do Pai e do Espírito Santo, que interpreta e atualiza as
palavras, gestos e sinais que Jesus realizou. Jesus Cristo é revelador do Pai e
do Espírito Santo e de si mesmo, ao realizar o projeto do Pai/Mãe, repito,
mistério de infinito amor. Jesus é o revelado pelo Pai: “Tu és meu Filho amado, em ti me comprazo” (Mc 1,11) como também na
transfiguração: “Este é o meu filho
amado, em quem me comprazo, ouvi-o” (Mt 17,1-8). Em Jesus Cristo a
revelação encontra o seu cumprimento pleno. Enquanto no Primeiro Testamento a
espera de Cristo é incompleta e ainda não realizada, no Segundo Testamento
bíblico, mesmo que o Cristo seja a revelação máxima, é “ainda não”, será plena
só na escatologia, no fim dos tempos; enquanto estamos no tempo presente, resta
sempre uma revelação na fé.
A Revelação é sempre iniciativa de
Deus em busca do ser humano, a quem se revela de mil formas desde a criação do
universo nas ondas da evolução, do próprio ser humano e ao longo da sua
história. Ao registrar estas experiências de encontro com os/as hagiógrafos/as,
são estes/estas mesmos/as que reconhecem, novamente, que é Deus quem os
inspirou e conduziu para que escrevessem tudo aquilo que é da sua vontade, e
para a nossa libertação e salvação.
Como
se dá a inspiração dos textos bíblicos? No
documento do Concílio Vaticano II, Constituição
Dogmática sobre a Revelação Divina, Dei Verbum, os Padres conciliares
afirmam, com convicção, que todos os escritos da Sagrada Escritura foram
inspirados pelo Espírito Santo. Dizem eles: “consideram como sagrados e canônicos os livros inteiros tanto do Antigo
como do Novo Testamento com todas as suas partes. Todavia, para escrever os
Livros-Sagrados, Deus escolheu e serviu-se de homens – e mulheres - na posse
das suas faculdades e capacidades para que agindo neles e por meio deles,
pusessem por escrito como verdadeiros autores, tudo aquilo e só aquilo que ele
quisesse[3].”
Como esses livros foram escritos por
homens e mulheres, à maneira humana, quem interpreta as Sagradas Escrituras
deve investigar com atenção o que os/as hagiógrafos/as quiseram dizer e aprouve
a Deus revelar por meio deles e delas. Para isso, devem ser levados em conta os
gêneros literários para descobrir o sentido que os/as hagiógrafos/as, segundo
as condições de tempo e cultura, quiseram expressar. Havia entre pessoas de
Deus, profetas e profetisas, sacerdotes e sábios dos Povos da Bíblia (Jr 18,18)
que foram considerados mediadores da mensagem divina, cuja autoridade é
inquestionável. Óbvio que, como na busca do ouro é preciso peneirar o que está
junto com o ouro, mas não é ouro, ao ler um texto bíblico precisamos
interpretar, ou seja, peneirar o sentido que possivelmente é mensagem divina e
o que o/a autor/a colocou ali pelos seus condicionamentos culturais, sociais e
religiosos.
Quando os/as autores/as do Segundo
Testamento citam o Primeiro Testamento bíblico, referem-se aos seus autores e
autoras, aos quais conferem um valor divino. A Igreja reconhece também nas
palavras desses profetas[4] a
presença de um carisma semelhante ao dos antigos profetas (Lc 1,70; At 2,24).
As cartas do Apóstolo Paulo circulavam entre as comunidades, eram lidas e
refletidas por elas, conforme nos informam as próprias cartas (Cl 4,16; 1Ts
5,27).
Depois de considerarmos a Revelação
divina para a humanidade por livre iniciativa e por amor, lembrando que Deus
inspirou homens e mulheres ao longo da história, para registrarem a experiência
humana, social e religiosa que o povo fez com o mistério de amor que nos
envolve, não podemos esquecer que a Bíblia é uma biblioteca, 73 livros, ou
seja, a Bíblia é obra literária...
e como tal deve ser interpretada. É ingenuidade e erro grave dizer: “a Bíblia
basta ser lida e colocada em prática”. Toda leitura suscita e requer
interpretação, que precisa ser sensata e libertadora. Não podemos sair catando
versículos e citando-os para justificar nossos preconceitos e posturas muitas
vezes moralistas e fundamentalistas, o que recai em idolatria.
08/11/2023
Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam
sobre o assunto tratado, acima.
1 – Agir
ético na Carta aos Efésios: Mês da Bíblia de 2023. Por frei Gilvander (Cinco
vídeos reunidos)
2 - Andar no amor na Casa Comum: Carta aos Efésios
segundo a biblista Elsa Tamez e CEBI-MG - Set/2022
3 - Toda a Criação respira Deus: Carta aos Efésios
segundo o biblista NÉSTOR MIGUEZ e CEBI-MG, set 2022
4 - Chaves de leitura da Carta aos Efésios, segundo
o biblista PEDRO LIMA VASCONCELOS e CEBI/MG –Set./22
5 - Estudo: Carta aos Efésios. Professor Francisco
Orofino
6 - Carta
aos Efésios: Agir ético faz a diferença! - Por frei Gilvander - Mês da Bíblia/2023 -02/07/2023
7 - Bíblia, Ética e
Cidadania, com Frei Gilvander para CEBI Sudeste
8 - Contexto para o
estudo do Livro de Josué - Mês da Bíblia 2022 - Por frei Gilvander - 30/8/2022
9 - CEBI: 43 anos de
história! Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos lendo Bíblia com Opção pelos
Pobres
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela
FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia
pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em
Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de
“Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte,
MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br
– www.twitter.com/gilvanderluis –
Facebook: Gilvander Moreira III
[2]
Cf. MORALDI L. Rivelazione In: Nuovo Dizionario di Teologia Biblica, Edizione
Paoline: Torino, 1988, p. 1375.
[3]
CONCILIO VATICANO II. Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina. Dei Verbum, São Paulo: Paulinas, 2005,
p. 15.
[4] At
11,27; 13,1; 1Cor 12,28; 14,37; Ef 4,11.
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